Estão tão entusiasmados que quase não conseguem falar de outra coisa. “É já esta semana que vamos para Cabo Verde”, diz José Gomes. “Faltam só seis dias”, completa Edna Francês. “Oh professora, quando lá chegarmos não vamos logo dormir, pois não?”, pergunta Júlio Junior. A todos a professora Ana Josefa Cardoso, 43 anos, natural da ilha de Santiago, responde em crioulo com a mesma calma e o mesmo sorriso que têm caracterizado o seu trabalho com esta turma, agora no 4.º ano A, da Escola Básica n.º 1, de Vale da Amoreira, no concelho da Moita. A viagem à ilha de Santiago, em Cabo Verde, de que nenhuma das crianças consegue parar de falar aquando da visita do JL/Educação, é o corolário de um projeto que começou no ano letivo de 2008/2009.
Na sua origem esteve o ILTEC, Instituto de Linguística Teórica e Computacional, que desenvolveu um trabalho sobre a diversidade linguística na escola portuguesa, chegando à conclusão de que, para além do português, o cabo-verdiano e o mandarim eram as segundas línguas mais faladas. Como nos explica a professora Ana Josefa Cardoso, licenciada em Português/Francês, com mestrado em Relações Interculturais e a doutorar-se em Linguística, pela Universidade Nova de Lisboa, foram pensadas duas turmas bilingues em português/cabo-verdiano, e em português/mandarim. O projeto foi apoiado desde logo pela Fundação Calouste Gulbenkian.
Cada turma teria que preencher vários requisitos, a começar pelo facto de ser um trabalho para quatro anos, ou seja, teria que se tratar de uma turma de 1.º ano. E não podia constituir-se apenas de alunos de origem cabo verdiana ou chinesa. Era forçoso haver uma mistura. Por outro lado, alguns dos alunos deveriam falar a língua em casa, mas outros não. O equilíbrio tinha que existir entre todas as variáveis. Além disso, haveria um grupo de controlo, outra turma do mesmo ano, monolingue, cujos resultados académicos se pudessem comparar. “Só foi possível encontrar um grupo com estas características para o caso do cabo-verdiano, por acaso, na escola onde sou efetiva”, conta Ana Josefa Cardoso.
Encontrada esta turma mista, um dos passos seguintes, foi uma reunião com os pais e encarregados de educação para explicar todo o trabalho que ia ser realizado. A turma teria duas professoras, Ana Carina Ferreira, como titular, e Ana Josefa Cardoso, para o cabo-verdiano. Todos os conteúdos seriam dados nas duas línguas e nenhuma língua era proibida em tempo algum. “Depois de saberem todos os pormenores os pais, surpreendentemente, aceitaram a ideia com entusiasmo”, recorda Ana Josefa Cardoso. “Confesso, que no início, tive muitas dúvidas. Trabalho com as crianças insistindo bastante na sua autonomia e para isso é preciso ‘perder’ muito tempo. Julguei que com o ensino do cabo-verdiano não o ia conseguir. Mas enganei-me, eles desenvolveram-se de uma forma muito mais completa. Ganharam mais cedo mais responsabilidades e acredito que cresceram melhor”, assevera Ana Carina Ferreira, 38 anos, professora há 11. Aliás, os resultados curriculares destes alunos, quando comparados com o grupo de controlo, são consideravelmente superiores.
“Acho que somos uma turma especial. Todos falamos duas línguas e isso é muito bom. Quando chegarmos a Cabo Verde vamos poder comunicar com todas as pessoas e com os colegas da escola de lá. Se não soubéssemos a língua, eles falavam e nós não percebíamos nada”, diz Inês Portugal. Inês refere-se à turma de 4.º ano da Escola de Flamengos, no concelho de São Miguel, com a qual, ao longo dos anos, têm vindo a corresponder-se através de cartas, mas também de vídeos que colocam no youtube. Está previsto que o grupo possa acompanhar a turma de Vale da Amoreira durante a visita a Santiago.
“Vai ser muito giro conhecer os colegas de Cabo Verde. É bom falarmos duas línguas porque aprendemos mais. Há muitas palavras parecidas, mas também há diferenças e é preciso ter muita atenção”, avisa Telma Fundões. “O mais difícil no cabo-verdiano é escrever. Foi complicado aprender o ‘k’ e o ‘y’ e também que o ‘u’ substitui muitas vezes o ‘o’, mas com o tempo aprendemos tudo”, resume Íris Formas.
Rabidantes somos nós
No quadro, Jessica Brito escreve, a giz, cuidadosamente: “Sumáriu. Lison n.º 66. Leitura di kapitlu “Pilorinhu di somada tenplu di rabidantis”. Que é como quem diz: Leitura do capítulo “Mercado da Assomada templo das rabidantes”. Integrado na obra Minina di Sol, de Gabriel Raimundo, este volume visita muitos dos lugares que a turma vai conhecer em Santiago e por isso foi escolhido para o treino da leitura. “Ao longo do tempo tive alguma dificuldade em encontrar materiais que pudesse utilizar nas aulas. Construí muita coisa de raiz e baseei-me sobretudo em histórias tradicionais escritas por autores cabo-verdianos como Tomé Varela da Silva, Eugénio Tavares ou Humberto Lima”, explica Ana Josefa Cardoso.
“Kuse ki é rabidantis?”, pergunta, de jato, a professora, ou seja, “O que são rabidantes?”. Depois de uma troca de impressões, a turma conclui: vendedoras. “Então, rabidantes somos nós porque vendemos muitas rifas”, diz, rápida e risonha Edna Francês, referindo-se a uma das várias atividades que a turma desenvolveu para angariar fundos para a tão ansiada viagem. E foram muitas: além das rifas, vendas de bolos, sorteios… As professoras dinamizaram-se e conseguiram inúmeros apoios para chegarem aos cerca de 16 mil euros necessários para a viagem. Desde logo a Gulbenkian, passando pelos ministérios da Educação, Cultura e Comunidades cabo-verdianos, pela Assembleia Nacional de Cabo Verde – “Mais de 50% do financiamento veio daquele país”, refere Ana Josefa Cardoso -, pelo ACIDI, Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, pela Câmara Municipal da Moita, Junta de Freguesia de Vale da Amoreira, pela ANIME, projeto de animação e formação da Quinta do Conde, entre muitos outros. Também a companhia aérea de Cabo Verde (TACV) fez uma tarifa simbólica, bem como o grupo Oásis, proprietário do Hotel Oásis Atlântico Praiamar, onde os 18 alunos e professores vão ficar instalados.
“Acho que muita gente pensou que esta viagem era uma utopia. Desde o início que sempre acreditei que era possível. Para a maioria destes alunos é a primeira vez que saem do Vale da Amoreira. Há aqui enquadramentos complicados que fazemos tudo por contrariar”, diz Ana Josefa.
Areia de Santiago
As aulas em cabo-verdiano dividem-se, embora sem grande rigidez, por alguns temas. À segunda-feira é dia de ‘novidades’, ou seja, os alunos têm que partilhar com os colegas, em crioulo, alguma notícia recente; à terça, treina-se a leitura e a escrita; à quarta, focam-se as ‘questões do mundo’; à quinta, exploram-se temas variados; e finalmente, à sexta, avalia-se o trabalho realizado. “A professora Ana Josefa faz coisas divertidas e a professora Ana Carina também. As aulas são todas diferentes e eu acho que isso é bom”, refere Daniela Piedade.
Uma das “coisas divertidas” que fizeram foi o poema dedicado à Primavera a que chamaram Mudjer Mistériu (Mulher mistério), que começa assim: “No dia 21 di Marsu/ txinga uma mudjer formós/ pa undi el ta pasa/ tudu fica maravilhozu” (No dia 21 de março/ chega uma mulher formosa/ por onde ela passa/ fica tudo maravilhoso).
“Maravilhosa e espetacular” é como Janice Gonçalves, 9 anos, acha que vai ser a viagem que se aproxima. “Sonhava em ir a Cabo Verde. Os meus pais são de Santiago, mas eu nunca lá fui. É uma grande oportunidade”, diz.
O programa da viagem inclui visitas à Cidade Velha, ao Parlamento, ao Museu Etnográfico da Cidade da Praia, ao Mercado da Assomada, ao Tarrafal, ao Parque Natural da Serra da Malagueta, além de um encontro com o escritor Tomé Varela da Silva – cujas obras os alunos foram lendo ao longo destes quatro anos.
A aluna Miriam Furtado já sabe tudo o que vai levar na mala. E há, pelo menos, uma coisa que, no regresso, vai estar de certeza na sua bagagem: “Areia da praia para a minha tia que nasceu em Santiago e nunca mais voltou. Quero trazer-lhe o cheiro do mar”.