Nomeado para o Óscar para o melhor filme estrangeiro, vencedor em cinco categorias dos prémios Fénix (oscars do cinema ibero-americano), O Abraço da Serpente é uma das mais poderosas obras do emergente cinema colombiano, que mergulha nas raízes dos povos pré-coloniais, em busca de uma essência mística, que só pode chegar de uma relação íntima com a natureza. Às tantas, numa discussão entre índios de tribos diferentes da Amazónia, um argumenta: “Se não soubermos ensinar os brancos será o nosso fim”. Obviamente, sobrestimaram a capacidade do homem branco para aprender.
A terceira longa-metragem de Ciro Guerra é baseada nos relatos do etnólogo alemão Theodor Koch-Grunberg e do botânico norte-americano Richard Evans Schultes, que se aventuraram pela floresta amazónica em épocas diferentes. Os seus diários é tudo o que resta de memória de tribos de índios entretanto extintas. E um dos objetivos de Ciro Guerra é resgatar a sua existência, de uma forma virtual e sentida, como só o cinema pode fazer.
O filme – um magnífico hino à natureza – inverte o ângulo de forma brilhante, transformando o colonizado em colonizador, na justa e inequívoca perspetiva contemporânea de que os índios tinham toda a razão. Assim, há invariavelmente um contexto de desigualdade nos dois cenários que coloca: uma dependência absoluta do explorador do índio, e nunca ao contrário, precisamente porque ninguém como o índio conhece a linguagem da natureza onde circulam. E essa natureza, mais do que os perigos da fauna circundante, está repleta da armadilhas místicas, que o homem branco, com as suas limitações civilizacionais, não tem a capacidade de desvendar. Na relação entre Karamakate e o botânico, numa deriva em busca da planta essencial, sobressai mesmo um conflito entre o racional e o místico. Scgutles nunca sonhou. Perguntam-lhe quantas margens tem um rio? Ele diz que são duas. Karamakate esclarece que qualquer crianças índia sabe que as margens do rio são mais do que muitas.
No caso de Theodor, a dependência é vital: o etnólogo está à beira da morte e sabe que só a planta o pode salvar. Por isso há uma luta pela sobrevivência na dependência total do índio.
O massacre das populações nativas pelos colombianos está omnipresente, em pano de fundo, como o insuportável ruído de um motor numa praia paradisíaca. Sabemos que permanentemente acontece, mas nem por isso Ciro Guerra sente a necessidade de repetidamente o mostrar.
O que sobressai nesta experiência mística, que vai onde O Renascido (Iñárritu, 2015) não conseguiu chegar, é um aviso sábio e ancestral do cuidado que temos de ter com o mundo. E mais ainda do que a intimidade com o habitat, o filme defende a simbiose do homem com a natureza, utopia que hoje parece irremediavelmente distante.
O Abraço da Serpente é rico em pormenores e de admirável qualidade sobre todos os aspetos. Notável a riqueza do som e da fotografia. Filmado a preto e branco, transmite a beleza da natureza circundante sem entrar em excessos estilísticos. A montagem flui na mesma direção do rio, numa eficácia cinematográfica que se torna deslumbrante sem ser exibicionista. As interpretações são de uma eficácia absoluta, numa coincidência perfeita entre persona e personagem.
O Abraço da Serpente, uma produção colombiana e argentina, pode ser visto como uma reconciliação através do cinema de um povo com o seu passado remoto, uma nota de culpa, ou um alerta elegante mas desesperado de retorno à essência. O verdadeiro choque de civilizações.