A tendência cíclica da História faz com que algumas visões do passado se tornem subitamente pertinentes, em leituras regeneradas. A realizadora angolana Pocas Pascoal, na sua primeira longa-metragem de ficção, vem a Lisboa para filmar uma história dos anos 80, em que duas irmãs se refugiavam da devastadora guerra civil. Os tempos eram outros e Angola não era o país próspero e pacífico (relativamente) em que portugueses se ‘refugiam’ da crise económica, mas antes um país dividido e altamente perigoso. É neste contexto que encontramos duas irmãs, mandadas para Lisboa pela mãe para ficarem a salvo do conflito armado, sofisticadas, orgulhosas e sem nenhum interesse especial pelo país. É uma história sobre o crescimento, a mais violenta passagem para a idade adulta, mas também sobre a sempre difícil relação com o país acolhedor. Às tantas, uma das personagens exclama: “Antes morrer do que ser português”. A outra contesta: “Ser português é muito melhor, têm-se direitos, subsídios…” Em 1980, quando a ação se passa, a memória do colonialismo ainda está muito próxima, assim como os fantasmas da guerra civil, pelo que o ressentimento em relação à ex-metrópole é premente.
O filme é corajoso na sua abordagem, sem pruridos, revelando os seus naturais preconceitos, mas localizando-se bem na época, não só ao nível do décor, mas sobretudo emocionalmente. Lisboa é um purgatório amaldiçoado pelo qual as jovens, crescidas na euforia revolucionária, têm que passar. O Eden por elas idealizado é outro, a França, por onde passaram os seus pais, e onde a própria realizadora, Pocas Pascoal, hoje reside. Assim há sempre uma adaptação pesada a um meio, que nunca deixa de ser hostil, incompleto e por vezes incompreensível. Levanta-se a questão: onde é o refúgio do refúgio?
Apesar de ser um filme com algumas imperfeições, sobretudo derivadas de uma abordagem algo ingénua (natural numa primeira obra), opta bem por um olhar naturalista, cheio de bons pormenores e acaba por se tornar uma das mais relevantes obras do cinema angolano contemporâneo, ao mesmo tempo que permite aos próprios lisboetas um olhar diferente sobre a cidade.
Por Aqui Tudo Bem foi premiado no IndieLisboa e já se estreou em França. Tem agora exibição comercial no nosso país enquanto a realizador está prestes a concluir um segundo filme, com o título Menina.