Não acreditamos que Iain Forsyth e Jane Pollard tenham passado noites a fio à beira da cama de Nick Cave, à espera do melhor dia para captar o seu despertar. 20 000 Dias na Terra é um falso documentário. Ou melhor, alterna a construção documental com momentos reais, numa interessantíssima zona de ambiguidade. Se assim não fosse, nunca teríamos a imagem de Nick Cave a despertar, nem a ir à casa de banho. Pouco importa que tal não seja real – até pode ter sido filmada à tarde, em vários takes, em dias diferentes -, encontramos Nick Cave a fazer de Nick Cave: a pessoa e a sua máscara, em prol de uma tese. Só assim o mito não fica destruído. Pelo contrário, é reconstruído mediante a sua vontade, perante o seu absoluto controlo.
E nesse controlo Nick Cave, que também assina o argumento, apresenta-se, antes de mais, como escritor. Tal não significa que crie preferencialmente na sua máquina de escrever azul. E que todas as manhãs vista o seu fato janota e arranje as sobrancelhas impecavelmente. Mas condiz com a personagem.
Mais do que um escritor, Nick Cave é o criador de um mundo. Nesse mundo, negro, soturno, conflituoso, Deus existe. Fora da máscara Nick Cave não é crente, confessa. Houve uma altura, conta às tantas, em que tomava drogas pesadas e sentava-se nos bancos da Igreja, à espera que algo acontecesse, ou para contrabalançar o bem com o mal. Com o tempo, deixou de tomar drogas e de ir à Igreja, não necessariamente por esta ordem. Quando lhe perguntam qual é o seu maior receio, Cave responde: “A perda da memória”. A reencarnação não o consolaria. É nas memórias que busca a informação para construir esse seu mundo. O seu dia-a-dia, diz, é simples: acorda, escreve, come, escreve, vê televisão, brinca com os filhos, escreve.
Nick Cave dá-se a conhecer por si próprio a viva voz. Viajamos com ele a um ‘entrevistador’ que funciona como psicanalista, que extrai memórias da infância, da relação com o pai, da vida na Austrália. Cruzamo-nos com fotografias que nos levam aos tempos de escola, aos Boys next Door e depois ao Birthday Party e finalmente a Suzanne, a sua mulher.
Encontramo-lo em trânsito, em conversas no carro, reflexões sobre o mar e a atmosfera, com os cúmplices habituais. O principal é Warren Ellis, arranjador dos últimos trabalhos de Cave, com o qual testa as canções: há uma que lhe lembra Lionel Richtie. Assim também encontramos Cave músico, ao vivo ou nas gravações em estúdio, com um coro infantil. E por caminhos menos óbvios, transforma-se num retrato complexo e extraordinariamente completo.
20 000 Dias na Terra não se recomenda apenas aos muitos admiradores do trabalho de Nick Cave. É uma lição de como fazer um documentário biográfico contornado os vícios e os formatos do género.