Há uma fábula muito filosófica – embora não pareça – que Lobo Antunes costuma contar. É a de um ratinho que tem por costume ir urinar ao mar. Outro ratinho, intrigado, pergunta-lhe: “Mas por que raio fazes isso?” E ele responde-lhe: “Olha, sempre acrescenta qualquer coisinha”. É muito difícil acrescentar uma gotinha que seja aos Maias, trave mestra da literatura portuguesa, que consta sempre das listas dos melhores romances nacionais de sempre, obra-prima de Eça de Queirós, um dos grandes da Europa. Nem que se tente adaptá-lo ao teatro, à televisão ou ao cinema (como agora fez o realizador João Botelho, com estreia a 11 de setembro, em versão longa, 187 minutos, no Cinema Ideal, e curta, 137 minutos nos restantes cinemas), reinventá-lo ou mesmo “continuá-lo”… É o que acontece aos clássicos, continuam, tempo atrás de tempo, com coisas para dizer, para descortinar e para repercutir. Ainda que usem bigodes arqueados aos cantos da boca, sobrecasacas e cartola. E houve gerações e gerações de queirosianos eruditos que prosseguem a dissecá-lo, desvendá-lo, interpretá-lo, a perpétuá-lo e a encontrar-lhe novos focos de actualidade.
E o que tem de prazeroso em se escrever um texto sobre Os Maias, é que se nos torna autorizado não contar a história toda e não nos abstermos de desvendar o enredo. Supostamente (e saliente-se bem o advérbio) todos os portugueses escolarizados o terão lido no ensino secundário, embora por muitas vezes se suspeite que esta obrigatoriedade seja pouco praticada. Seja como for, é legítimo assinalar-se à partida – sem correr o risco de se tornar spoiler do filme – os dois mistérios, ou dois twists, ou antes as várias “máscaras” que envolvem a Maria Eduarda, a misteriosa mulher loura, que faz a sua primeira aparição no Hotel Central, em Lisboa, “com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita”, e o seu caniche de pêlo cinzento. Primeiro: ela não é uma senhora respeitável (para os padrões da época) e casada com o brasileiro Castro Mendes, mas uma mulher que ele acolheu, pagando – facto que transtorna imenso Carlos, o herdeiro da fortuna dos Maias, mas cujo infortúnio, o seu amigo Ega tenta desdramatizar, simplificar e amenizar: “Carlos até aí tivera uma bela amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconvenientes uma bela amante…”. Mas esta primeira revelação, ou a primeira máscara que se desprega do rosto ou da identidade de Maria Eduarda, durante uma das cenas mais tensas do livro, através de um diálogo exemplarmente bem carpinteirado, é apenas o aviso profético de que outras máscaras se seguirão, uma espécie de antecâmara da tragédia: a de que Carlos e Maria Eduarda são irmãos. Num capítulo (o XVII), magistralmente doseado, que Eça compõe como uma cena de cinema, com a hesitação do descoroçoado Ega, sabedor de tudo, numa hesitação em revelar a verdade que iria destruir a existência do amigo – bem mais atroz do que se Maria o tivesse traído com o caricato Dâmaso, raciocina-, com um relógio que pinga os minutos, a intervenção do pragmático e zeloso procurador Vilaça, que interrompe, a todo o instante, a pungente situação, para ir procurar o seu chapéu – um genial expediente queirosiano de alívio cómico, o absurdo mesquinho do quotidiano a intrometer-se na fatalidade do incesto… Segue-se o mais perturbador mistério de todo o romance: porque é que Eça pôs Carlos, atormentado de dor e desventura, a dirigir-se de novo ao leito de Maria Eduarda, e dormir com ela, sabendo-a sua irmã. Consciente do incesto, sem inocência. É este um dos mistério, uma espécie de ambiguidade perversa, que Eça deixou ainda a “comichar” cérebros do século XXI.
Eles vaiam por nós
Publicado em 1888, com 990 páginas, Os Maias levou oito anos a ser burilado por Eça, que vivia fora de Portugal e, à distância, expôs no romance toda a sua pendência desconsolada por um país obsoleto e estagnado, ridicularizando demolidoramente parlamentares, poetas medíocres e jornalistas. A ironia deste romance é que os porta-vozes dessas críticas são eles próprios, João da Ega e Carlos da Maia, não mais do que uns janotas, ociosos, pedantes, indolentes e parasitas da sociedade. Que têm sempre uns livros para publicar que nunca chegam a escrever (As Memórias de um Átomo ou o Lodaçal). Ou um consultório escrupulosamente decorado, muito bem ataviado, mas que não recebe doentes.
“O que domina como objecto de reflexão é Portugal, personagem, oculta por detrás das personagens visíveis. Um país aparentemente sem remédio, um país que as elites não são capazes de salvar” (Jacinto Prado Coelho); “Livro niilista, livro desesperado mesmo, Os Maias são o dobre a finados duma nação retratada com vitriólica ironia e vingativa sátira” (João Medina).
Recebido com muitas e severas reservas, à época, é hoje considerado “a mais perfeita obra de arte literária que ainda se escreveu em Portugal, depois de Os Lusíadas” (Gaspar Simões) ou “expressão estética excepcional da consciência desistente da geração intelectual a que Eça pertenceu” (Isabel Pires de Lima).
E esta é uma das formas como se pode rever os Maias, buscar a sua dramática actualidade, nesta adaptação de João Botelho, numa reverência muito respeitosa (talvez demasiada) , que coloca o texto literário a prevalecer sobre a linguagem cinematográfica, e todos os exteriores ao abrigo de qualquer anacronismo – e de qualquer realismo também : foram filmados num grande hangar em Azeitão, com telas de grandes dimensões pintadas pelo artista plástico João Queiroz. Assim, passam as personagens, não só através da Lisboa novecentista, cruzada por transeuntes, pregões, fadistas, caleches e pelo famoso “americano”, mas também das bermas do Douro, Sintra, Itália e Paris. Tudo isto sem sair dos estúdios de Azeitão.
Encontramos o Portugal de agora (em crise política, económica e de identidade) sobretudo nas palavras de desalento e desistência. Desde a petulância de Ega e Carlos, que acham que “isto aqui é uma choldra” a um mestre-de-obras republicano, a desbarretar-se e a deixar arrastar os trabalhos, enquanto filosofa sobre a solução para “desatravancar” o país desta “cambada”, destas “cavalgaduras”: “Um navio fretado à custa da nação, em que se mandasse barra fora o rei, a família real, a cambada dos ministros, dos políticos, dos deputados, dos intrigantes…”.
Talvez um wishfull thinking do realizador que selecionou, não seguramente por acaso, esta passagem bastante discreta, do IV capítulo. E todo o filme está apinhado de desdém, descontentamento, desencanto, maledicência e injúrias às elites do país e até – porque não reabilitar esta expressão?- à “literatura latrinária” (Alencar). E não se pergunte por quem as personagens dos Maias vaiam. Porque elas, ainda hoje, vaiam por nós.
Porque “isto aqui é um chiqueiro (Dâmaso); ou porque “o que o país precisa é da invasão espanhola” (Ega); ou porque a “a desgraça de Portugal é a falta de gente. Isto é um país sem pessoal. Quer-se um bispo? Não há um bispo. Quer-se um economista? Não há um economista. (…) Quer-se um bom estofador? Não há um bom estofador… “. (Conde de Gouvarinho). Deste, dizia Ega, tinha todos os requisitos para ser ministro: “Tem voz sonora, leu Maurício Block, está encalacrado e é um asno!”. Um dos seus males, queixava-se o próprio, era a “falta de memória”: lera como todo o homem público devia ler os 20 volumes da História Universal e não lhe restou nada na lembrança – “escapou-se-me”.
Dos portugueses diz-se :”Esta raça perdeu o músculo e o carácter (…) É a mais fraca e cobarde raça da Europa”. Carlos afunda-se no seu drama incestuoso e vai viajar, Ega boceja e também vai viajar. Quando regressam ao chiqueiro, à choldra, ao lodaçal, dez anos depois, Ega expõe a Carlos a sua teoria da inutilidade de todo o esforço: “Se me dissessem que ali em baixo estava uma fortuna (…) eu não apressava o passo… Não! Não saía deste passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o único que se deve ter na vida”. Não vale a pena correr “nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder…” Carlos aprova mas lembra-se de um banquete combinado, com um painho e ervilhas. De súbito vêem a lanterna vermelha do “americano” (uma carruagem sobre carris puxada a cavalos) e desatam a correr desesperadamente: “Ainda o apanhamos!”.
Em movimento
Depois de várias adaptações ao teatro (a última foi da encenadora Filomena Oliveira e Miguel Real, em 2010, para a Éter e a de António Torrado e Rui Mendes, no Trindade, em 2009), e à televisão (uma minissérie brasileira com co-produção da Globo e que passou na SIC), foi a vez de João Botelho ousar dissecar tijolo a tijolo este monumento da literatura e construí-lo outra vez, com imagem e som. Mas não cometeu grandes ousadias nem transgressões que possam causar alguma agitação na ortodoxia literária queirosiana. Pelo contrário, filma-o com as palavras exactas do autor, seguindo o alinhamento de Eça, não prescindindo até de algumas personagens secundárias que, mesmo reduzidas a uma linha ou duas de guião, estão lá. É o caso da corte de Maria Eduarda: a filhinha Rosa, o cão, a ama inglesa Miss Sara e a criada francesa e confidente, Melanie. E até o gato afagado pelo velho Afonso da Maia comparece. Com uma precisão imensas nos detalhes do décor – são excelentes os interiores do “Ramalhete” ou da “Toca” (Quinta dos Olivais) – e dos figurinos (as cartolas cabem mesmo na cabeça dos actores), vai de certa forma ao encontro das preocupações de Eça, um mestre na sugestão de ambientes e na descrição das toilettes. Aliás, o lindíssimo genérico desvenda-nos logo a perspectiva algo decorativista, e assumidamente operática, do filme: a casa, os figurinos desenhados, as fotos dos actores como num casting, peças de roupa de época, ornamentos, desenhos, cartas, e entre tudo isto, as folhas já amarfanhadas e riscadas do próprio guião. Com recurso ao preto e branco (para captar o passado de Afonso e Pedro da Maia), Botelho vale-se de uma câmara quase estática, de travellings discretos, de planos de conjunto, de ausência de campo/contra-campo, e de uma voz off (Jorge Vaz de Carvalho), algo aleatória – ora serve para fazer progredir a narrativa ou para sublinhar certas passagens. Com um orçamento de mais de um milhão de euros (ICA, Câmara Municipal de Lisboa, Agência Nacional do Cinema do Brasil), o filme conta com meia centena de actores, entre ele Graciano Dias (Carlos da Maia), João Perry (Afonso da Maia), Pedro Inês (um fortíssimo João da Ega) e a brasileira Maria Flor (Maria Eduarda). Esta última talvez a mais desinvestida personagem do filme, tão contrastante com a prestimosa descrição de Eça: “Flor de uma civilização superior, faz relevo nesta multidão de mulheres miudinhas e morenas”; divina, esplêndida, sublime, sensata e doce, que citava Dickens e à cabeceira da cama tinha a Interpretação dos Sonhos. É pena, até porque José-Augusto França a já considerou a “heroína por excelência do romance português”.
De resto, há sempre o gosto dos reencontros e dos reconhecimentos. Não só com os espaços, como o Ramalhete, a Quinta nos Olivais ou a Vivenda Balzac, o Grémio Literário, o Hotel Central, o São Carlos, o Teatro da Trindade, onde se passa aquele lastimoso sarau, com pianistas medíocres e poetas lacrimejantes, o Hipódromo… Mas também com personagens íntimas, como o ridículo e cobarde Dâmaso (Hugo Mestre Amaro), o zeloso Vilaça (Filipe Vargas), o romântico Alencar (Pedro Lacerda) ou o medíocre Gouvarinho (Adriano Luz)… E com todas aquelas frases que já fazem parte do nosso espólio: “Tenho a alma numa latrina, preciso de um banho por dentro”. E todo este decadentismo tão novecentista e tão século XXI e tão nosso. E tão estéril como o amor de Carlos por Maria Eduarda.