E a diferença é bastante simples. Por mais que haja sempre um ambiente nocturno a envolver a personagem, em histórias realizadas por criadores distintos
Batman pode ser um vigilante ou um detective, um herói (mais ou menos) equilibrado ou um psicopata. As aventuras de
Spirou oscilam entre o policial, a aventura exótica, a ficção-científica. Só
Tex, de resto o menos interessante, é sempre
Tex, mas mesmo aí há uma variação de estilos gráficos, comum também nos outros dois casos.
Com Blake & Mortimer pretende-se fidelizar por completo um público leitor, oferecendo-lhe clones das obras marcantes de Edgar Pierre Jacobs. Mantem-se o estilo de desenho, continuam as histórias entre a arqueologia e a ficção científica, os argumentos palavrosos, o estilo “very british”. Mantem-se, sobretudo, o excelente e imortal “Mau” Olrik. A “novidade” que se introduz é a um tempo tão ligeira e tão óbvia que se torna patética, sejam reflexões políticas sobre o colonialismo britânico, ou sociais sobre os direitos das mulheres. A questão é que não se pode mexer muito na estrutura ou Blake & Mortimer deixaria (ainda mais) de ser Blake & Mortimer…
No entanto A maldição dos trinta denários, a última aventura em dois volumes, trás alguma coisa de distinto. Não do ponto de vista de desenho, no sentido em que parece irrelevante comparar o trabalho do falecido René Sterne e da sua mulher Chantal de Spiegeleer no primeiro volume (Clone Número 1) do trabalho de Antoine Aubin/Étienne Schréder (Clone Número 2) no segundo. Um será mais rígido, outro mais parecido com Jacobs, mas isso é menor. São ambos profissionais e suficientemente evocativos do original, que é o que se lhes pede.
O argumento de Jean Van Hamme é que supreende, por entre a familiaridade. Esta última revela-se nos reflexos arquelógico-históricos ligados a O Mistério da Grande Pirâmide e nas citações geopolíticas associadas a O Segredo do Espadão. De resto, uma das “obrigatoriedades” na aproximação a estas novas aventuras de Blake & Mortimer pós-Jacobs é que tanto autores como críticos têm de fazer referência a pelo menos uma das obras clássicas da série… Já agora, no caso deste último díptico várias citações de aventuras de Tintin também surgem a espaços.
O principal motivo de estranheza relaciona-se com o forte misticismo religioso que Van Hamme injecta por entre a sua costumeira eficácia formulaica. A história põe os protagonistas na pista das trinta moedas de prata pagas a Judas Iscariote para trair Jesus Cristo. Moedas que terão, aparentemente, um forte poder maléfico inexplicado. Este é um cenário nada jacobsiano, no sentido em que o autor se orgulhava das suas “petites theories” científicas, que pesquisava antes de cada álbum (como já antes fizera no seu trabalho anónimo para Tintin). Mesmo que algumas fossem inverosímeis, essa semi-plausibilidade era uma característica da série, dos extraterrestres ao controlo da mente e de fenómenos metereológicos, passando pela robótica. Num aparte é engraçado notar que o “Mau-Mor” de A maldição dos trinta denários (ou seja, o que morre para que o crime resulte em castigo, mas Olrik possa sobreviver) afirme que pretende obter as moedas amaldiçoadas para se tornar no Senhor do Mal! Geralmente os futuros Ditadores mundiais não se auto-intitulam deste modo, deixando este tipo de classificação para os seus adversários…
Por outras palavras, e em resumo: mais do que Jacobs as sombras tutelares modernas em A maldição dos trinta denários são Indiana Jones e Dan Brown. E quem mais conseguirem citar com as mesmas referências.
Vale a pena? Para quem aprecia a série, porque não? Para quem, como é o meu caso, sempre achou o trabalho de Jacobs rígido, pesado e sobrevalorizado do ponto de vista narrativo (admirando embora a limpidez gráfica), e ainda por cima considera este tipo de argumento um disparate pegado, para quê?
Blake & Mortimer: A maldição dos trinta denários, por Jean Van Hamme, com René Sterne/Chantal de Spiegeleer (Vol 1) e Antoine Aubin/Étienne Schréder (Vol 2). 2009/2010. ASA (10/20)