Nunca tendo tido em Portugal edição coerente
, As Cidades Obscuras é um bom exemplo de BD que chama primeiro a atenção pelo desenho, para depois surpreender com argumentos surreais que questionam as coordenadas (estéticas, políticas, culturais, sociais) de um mundo ligeiramente desfasado do nosso.
As Cidades Obscuras é uma obra notável que vive, não tanto de histórias, mas da implementação dos Conceitos que lhes servem de ponto de partida, como as dualidades Fachada/Substância, Ordem/Caos, Inovação/Tradição. Focadas por um desenho limpo e operático (referenciando os séculos XIX-XX) que opõe a vertigem monumental de diferentes arquitecturas às interrogações (pessoais e civilizacionais) do argumento. Os autores definem meticulosamente cada Cidade Obscura enquanto catalizador para diferentes reflexões, e muitas vezes as personagens parecem perdidas e tipificadas no seu simbolismo, com a Cidade a garantir a densidade de caracterização, não como um palco, mas no sentido de verdadeiro ator. No entanto, como muitas séries marcantes,
As Cidades Obscuras sofreu com o seu próprio sucesso e, curiosamente, com o facto de, após álbuns isolados unidos por uma filosofia gráfica e narrativa, se ter tornado uma verdadeira série, com auto-referências e personagens recorrentes (quer humanas, quer Cidades). A vontade clara dos autores em usarem a sua voz para tratar temas mais identificáveis e vistos como “úteis”/actuais e em usar cidades demasiado “reconhecíveis” (Pâhry, Brüsel) sem perder o cunho surreal tem sido também motivo para um equilíbrio instável nos últimos álbuns.
No mais recente A Teoria do Grão de Areia (díptico completado recentemente pela ASA) o Tema é a relação Oriente-Ocidente (Conhecido/Desconhecido, se se quiser), e o modo como um pequeno incidente causado por um misto de exploração-desrespeito provoca o desabar de um caos inexplicado sobre Brüsel/Bruxelas, um caos que se alimenta de si mesmo, escalando até ao limiar do colapso. Se o simbolismo do deserto invasor é por demais óbvio, os autores tentam aliviar esse desequilíbrio global com desequilíbios mais individuais e narrativas paralelas onde cruzam outros projectos, como a homenagem ao arquitecto Victor Horta e à sua Maison Autrique. O desenho a preto sobre fundo creme de Schuiten, liberta o branco “puro” para pontuar a invasão do quotidiano pela estranheza, mas é a inteligente opção pelo formato italiano (“deitado”) que constrange uma tendência natural do autor: os edifícios tentam libertar-se em altura, mas chocam nos limites da página, vincando a sensação de claustrofobia.
A abordagem Ocidental ao Oriente em BD é balizada pela presença ou ausência de aberturas, no limite entre a empatia com a causa palestiniana (por exemplo em Palestine e Footnotes in Gaza de Joe Sacco), e o distanciamento mais frio e “prático” (por exemplo na série Léna, de Pierre Christin e André Juillard). No anterior díptico de Schuiten e Peeters (A Fronteira Invisível, onde a cartografia e a dualidade Mapa/Território era um pretexto para glosar os Balcãs) a abordagem surgia ancorada numa estranheza com um cunho de Conhecível, porque Europeia. Em A Teoria do Grão de Areia Schuiten e Peeters ficam-se pela perplexidade ingénua e superficial, a (boa) vontade de compreender por entre o inexplicável. A relação desfasada entre o mundo das Cidades Obscuras e o seu espelho “mundo real” é, de resto, abertamente sugerida como um paralelismo da relação Oriente-Ocidente, uma metáfora sobre as metáforas. Mais evidente é a homenagem de pureza branca ao invasor, mas que simultaneamente o transforma em caos a controlar. Mantendo as devidas distâncias com o Desconhecido a partir do momento em que, como sucede aqui, este deixa de ser apenas decorativo e folclórico.
A Teoria do Grão de Areia (2 volumes). Argumento de Benoit Peeters, desenhos de François Schuiten. ASA, 120 pp., 17,50 Euros.