Numa colecção de artigos do escritor, compositor e pintor Alberto Savinio (1891-1952), que foram publicados à posteriori (1977) sob o titulo Nuova Enciclopedia, este cita Schopenhauer para justicar o seu empreendimento “enciclopédico”, embora sob o signo do fragmentário, ao referir uma pequena história de filosofia que está editada nessa obra de ensaios coligidos que é os Parerga e Paripomena. Aí Schopenhauer declara algo parecido com isto: há que devorar os filósofos com a própria boca, e não saborear comidas mastigadas por bocas alheias. No fundo, no que respeita a pensamentos, textos e opiniões, devemos fiar-nos ao que nos sabem as coisas, porque nem todos temos os mesmos gostos, ainda que possamos, tal como os estudiosos mais dedicados, incorrer com frequência no equívoco ou na apressada deglutição.
É com algum pretenciosismo e petulância que me aproximo das traduções dos grandes textos, mesmo quando não sei patavina sobre as linguas em que estão escritos, sobretudo nos casos de Homero, da Bíblia ou dos textos védicos. A disciplina da tradução, ingrata e frustrante, pratiquei-a intermitentemente ao longo dos anos, mais por experiência do que por vocação – coisas da antologia grega em segunda mão, alguns textos “hindús”, etc. Simultaneamente pratiquei a indisciplina da refutação, da paródia, da colagem e da mistura de textos com bastante despudor – tenho uma apetência desvairada pelo “misreading” e pela assumida “misinterpretation” – creio que há na natureza um horror à pura repetição, e julgo que já me livrei de qualquer certeza interpretativa, embora ame a polémica com excessiva ganas.
No príncipio do verão passado, já muito sonolento, senti uma abrupta curiosidade pela Bíblia de Ferrara, escrita em ladino, o idioma dos hebreus ibéricos, que não é própriamente o “espanhol” e que me parece contaminado também pelo português e provávelmente outras falas locais da Hispania. O relativo desinteresse por este texto, e pelas virtudes da sua tradução devem-se ao facto de supostamente seguir um modelo programático da “palavra a palavra”, quase interlinear. O livro foi lido, e se calhar continua a ser lido, pela diáspora dos hebreus ibéricos, ao longo dos séculos, acompanhado do confronto com o “texto original”. Espinosa tinha-o na sua Biblioteca (consta na lista dos seus livros), e juntamente com as obras de Santes Pagnino, autor de um Thesaurum e de uma magnifica tradução latina da Bíblia que foi seminal para as traduções da época, sobretudo as protestantes. Estas seriam as obras traduzidas mais “confiáveis” para um exame crítico do velho testamento em confronto com o texto hebraico, quando Espinosa se dedicou a escrever o “crítico” Tratado Teológico-Político.
A minha curiosidade, nada teológica, e muito sonolenta, quanto ao texto de Ferrara, foi a de traduzir seguindo-lhe a sintaxe “original” deveras esquisita: Porém adoptei um critério “ritmico-oral” que copiei em parte do tradutor Henri Meschonnic, sem no entanto consultar a sua tradução, ou a dos seus imitadores (como a Biblia da Bayard, católica, dita dos poetas, ou o pequeno troço em português “do brasil” do poeta Haroldo Campos). O resultado foi este:
em príncipio
criou deus
aos céus e à terra
e a terra era vã e vazia
e havia escuridade
sobre as faces do abismo
e o espirito de deus movia-se
sobre as faces das àguas
e disse deus
seja luz
e foi luz
e viu deus a luz
que boa
e apartou deus
entre a luz e entre a escuridade
e chamou deus à luz dia
e à escuridade chamou noite
e foi tarde e foi manhã
dia um
E por aí adiante. Tudo muito claro mesmo na sintaxe. Deus está mesmo com letra minúscula na primeira edição de Ferrara, embora neste caso as dúvidas de um diligente tradutor se tornem sombrias: devemos colocar Elohim, como vem no hebraico, ou traduzir Elohim como “o deuses”, induzindo a um mono-politeísmo do criador, como lá está? Por outro lado agrada-me a ideia de começar com um “em princípio”, porque todo o mito é uma hipótese, e também porque o Genesis (ou melhor o “Bereshit”) apresenta 2 versões completamente distintas da criação – mas provávelmente é um meu “misreading” da leitura de Ferrara (“en princípio”)… ou talvez não…
A partir daí desatei a traduzir. Fiquei víciado. Quiz traduzir a Bíblia toda (Novo Testamento incluído) não só numa versão, como em várias – a partir de inumeros textos. Mas mesmo as versões interlineares me parecem traiçoeiras. Constatei que a Bíblia protestante espanhola, dita de Reina Valera declara que usa o texto de Ferrara como a principal referência. Também Ferreira de Almeida copia a versão espanhola consultando a edição de Ferrara porque o vocabulário desta é mais parecido com o português e de uma maior naturalidade, pese o pendor arcaísante. Ao contrário dos biblistas tenho profundas dúvidas de que Ferreira de Almeida tenha aprendido e dominado o hebraico “súbitamente”, e o confronto da sua versão com a de Valera e a de Ferrara mostra a clareza das suas fontes. Também seria interessante comparar a Bíblia de Lutero e a de Tyndale com a obra de Pagnino para perceber opções de tradução e as profundas implicações de sentido que nos chegam deste eurudito. O facto de o concílio de Trento ter obrigado os fiéis católicos a só poderem ter acesso à (bela) tradução de São Jerónimo, dita a Vulgata, serviu também para mascarar a “originalidade” das traduções protestantes.
Passei da Bíblia para outros textos – quiz, literalmente, dar múltiplas e imprudentes versões dos Clássicos – de Homero, de Hesíodo, de Ovídio, dos alexandrinos, de Catulo, de obscuros poetas renascentistas, etc. Tentei traduzir traduções de traduções – como a tradução por um português do Cancioneiro de Petrarca em castelhano (também editada pelos de Ferrara). Atirei-me aos dadaístas, aos quais não posso ser fiel se não traduzir dadaísticamente (e como é que isso de faz?) – e comecei a ter um material disperso, fragmentário, vasto e por vezes disparatado. No fundo esta foi a minha “vida”, tal como a vida dos tradutores é viverem as traduções e a maneira de mudarem textos. Cada tradutor mostra a sua autobiografia nas traduções. Muitas dessas autobiografias são vidas exemplares.
Acabei por não seguir nem Schopenhauer nem Savinio – e acabei a reaproveitar restos de comida já fora do prazo para pratos supostamente novos… ou velhíssimos… Não sou um pseudo-poliglota mas as linguas e as transformações dos falares (e “escreveres”) umas nas outras deixam-me a salivar – a mudança mental, mimética, fisiológica é enorme e o que se dá é algo maravilhoso e mágico (ah! a banalidade destes adjectivos!). E no entanto é um pequenino passo, tal como o é o desenterrar (ou descongelar!) textos e pô-los outra vez a passear pelo mundo. Neste sentido a acessibilidade da “literatura” e arredores é hoje prodigiosa e pode ser imensamente fecunda, pese a crise editorial e o não dar eventualmente dinheiro.
Os textos existem para gerar mais textos, de preferência intensos. A maneira mais directa é a tradução – e mesmo as acéfalas máquinas de tradução fazem um (cada vez menos) equívoco trabalho que pode dar resultados compensadores, depois de revistos e corrigidos. O remix e o cut & paste podem proporcionar uma literatura duvidosa e superficial, destituída de experiência – mas desde sempre foram usados pelos melhores para os seus fins caprichosos e intensos. Eu sou daqueles que acredita que qualquer prática poética ou artística passa inevitávelmente pelo corpo e pela consciência, os quais não consigo separar (não acredito em consciência incorpórea nem em corpos inconscientes que estejam vivos).
Os tempos são difíceis porque também há uma fecundo entusiasmo no ar. O que nos precede é demasiado excitante, e, consequentemente, stressante. Teremos que fazer opções, porque o stress será cada vez maior, a quantidade de coisas a que temos acesso mais desmesurada, a gestão das nossas vidas mais complicada, e a decepção com a recepção cada vez mais frustrante. Gertrude Stein considerava que para se ser génio era preciso ter estado muito tempo sem fazer nada. A maioria dos criadores visíveis acha que não há um minuto a perder entre a produção e a gestão da divulgação. Não sei quem tem razão. É provável que o stress nos impeça de saborear o òcio, que não tem necessáriamente que ser um “bios theoretikos”, uma vida de pensamento. Acho que vou pensar nisto…