“A pintura é muito misteriosa”, disse Menez, numa entrevista ao JL, em dezembro de 1990, quando lhe foi atribuído o Prémio Pessoa, e teve a sua primeira retrospetiva na Fundação Gulbenkian, a par de duas outras mostras de tapeçaria e de azulejo. Um momento alto na sua vida artística, em que aceitou ser entrevistada, ao que por regra se esquivava. A pintora dizia não encontrar as “palavras certas”. “Acho que é a arte mais misteriosa”, acrescentou numa resposta curta, como quase todas as outras. “Não é que as coisas surjam sozinhas ou que eu tenha grande facilidade, pelo contrário, a pintura mantém-me sempre ocupada. Mas, realmente, não se sabe bem explicar.”
A sua pintura fala por ela. “A seu respeito falou-se já de ópera, de teatro, de poesia. É preferível talvez a sugestão de uma dança silenciosa, de formas em movimento, através de um jogo combinado de cor, luz e matéria.”, escrevia a historiadora de arte e curadora Maria Helena de Freitas (MHF), no texto do catálogo da referida exposição, que percorreu retrospetivamente a sua obra. “A pintura de Menez nasce do espaço e a partir dele se concentra ou deriva, Espaço, enquanto conceito vago de determinação de um envolvimento pessoal, reservado e distante, ou enquanto entidade plástica ordenadora de um conjunto de referências que, de modo indiferente, surgem abstratas ou figurativas.” E prosseguia: “Menez pinta uma realidade, que até na sua configuração mais exata, é em si mesma abstrata. Os objetos, as figuras, os enquadramentos, identificáveis ou não, servem-lhe como pontos de referência, são marcações no espaço de uma coreografia pessoal.”
Pintura, desenho, gravura, azulejo, tapeçaria: são 29 obras, criadas entre os anos 60 e 90, que agora permitem rever, nas suas múltiplas formas, a criação artística de Menez, na Casa das Histórias Paula Rego. Uma revisitação que surge no âmbito de um ciclo expositivo que pretende apresentar obras de artistas “cujas trajetórias se tenham cruzado, de uma forma ou de outra, com a obra de Paula Rego”, como adianta ao JL, Catarina Alfaro (CA), diretora e responsável pela programação da Casa das Histórias. E esse é, justamente, o caso de Menez, cuja mostra antológica se pode ver, no Piso Zero do museu, no Bairro dos Museus, em Cascais.
COSMOPOLITA E AUTODIDATA
Menez, Maria Inês Ribeiro da Fonseca, nasceu em Lisboa, em 1926. Neta, por parte materna, do marechal Óscar Carmona, primeiro Presidente da República durante a ditadura, desde 1926 até à sua morte em 1951, e filha de um piloto aviador, passou a infância e adolescência em vários países, seguindo as escalas do segundo marido da mãe, diplomata. Tinha dois anos quando saiu de Portugal e só regressaria, para se fixar por algum tempo, duas décadas mais tarde, depois de ter vivido em Buenos Aires, Estocolmo, Paris, Roma, Suíça. Casou aos 20 anos e teve três filhos.
Cosmopolita, tendo ainda vivido nos Estados Unidos, não frequentou escolas ou academias. Começou a pintar de forma autodidata, por volta dos 26 anos. Expôs pela primeira vez, individualmente, em 1954, na Galeria de Março, com o apoio de Ruben A., que chamou a atenção de José-Augusto França para o seu trabalho (ver texto de Maria Arlete Alves Silva). Eram guaches e sobre essas experiências iniciais escreveu Sophia de Mello Breyner Andersen: “Assim como quando o vento passa através das árvores as folhas repetem umas às outras uma frase impossível de interpretar, também aqui, através de espaços, espelhos, sombras, pontes e cidades murmura a misteriosa linguagem de enredos indecifráveis.”
Nos anos 60, em 1964 e 1969, como bolseira da Gulbenkian demandaria Londres, onde conviveu intensamente com Paula Rego, assim como com o seu marido, o pintor Victor Willing, “lovely people”, como Menez escrevia em cartas ao poeta Alberto de Lacerda, seu amigo desses anos, tal como Luís Amorim de Sousa (ver seu texto), Helder Macedo e a mulher, e Bartolomeu dos Santos. Nick Willing, filho de Paula Rego, um dos impulsionadores da presente exposição, recorda, aliás, Menez como uma “amiga da família”, quase uma “segunda mãe”. Uma das obras da exposição é, precisamente, uma aguarela que lhe foi oferecida pela pintora.
Em Londres, Menez frequentou, então, como aluna temporária, a Slade School of Fine Art, que anos antes Paula Rego também tinha frequentado. Uma primeira referência a essa amizade e convivência familiar entre as duas artistas que Catarina Alfaro, na sua investigação, encontrou, na correspondência de Menez com a poetisa Salette Tavares, data de novembro de 1963. “Comecei a desenhar na Slade School, onde sou aluna temporária e há cá uma pintora portuguesa chamada Paula Rego, que além de muito boa pintora, é muito bonita e simpática. É casada com um inglês, que também é pintor, têm uma casa muito acolhedora. Vou lá bastante e gosto muito de ambos”, escrevia.
Além da relação de amizade, as duas artistas acompanharam, ao correr do tempo, os trajetos uma da outra. “Nas cartas, Menez fala muito de ir ver as exposições da Paula Rego a Londres, a Bristol, e em Portugal, na Galeria 111. Havia uma relação muito próxima entre elas e de admiração mútua”, faz notar CA. E Victor Willing escreveu mesmo textos sobre a obra de Menez para catálogos das suas exposições.
PERCURSO PARALELO
Essa cumplicidade foi basilar no desenho da exposição de Menez, agora patente ao público. “Interessou-me que a escolha das obras fosse significativa da sua obra e, que ao mesmo tempo, transcrevesse o percurso comum a Paula Rego e a Menez, da abstração para a figuração”, sublinha, por outro lado, a diretora da Casa das Histórias, curadora desta antológica. “É curioso, que elas conhecem-se, antes de Londres, na II Exposição de Artes Plásticas da Gulbenkian, em 1961, e as duas destacaram-se aos olhos dos membros do júri e críticos de arte. Enquanto Rui Mário Gonçalves, por exemplo, considera Paula Rego a única e grande revelação da exposição, Menez é apontada como o ‘exemplo mais definido entre nós de uma diretriz atual da abstração’.” Teria o segundo prémio de pintura da exposição: “É extraordinário como as duas se destacaram dessa maneira, num mundo dominado por homens.”
No entanto, as grandes afinidades de Paula Rego eram com a chamada Escola de Londres, enquanto Menez estava mais próxima, inicialmente, da Escola de Paris, com uma ligação importante a Vieira da Silva e a Arpad Szénes, e um fascínio, nomeadamente, pelos impressionistas. “O percurso de ambas vai no sentido de uma aproximação a uma linguagem figurativa, mas que será muito diferente”, acentua CA. “A de Paula Rego tem um lado mais narrativo, a de Menez não”. E acrescenta ainda: “A pintura de Menez é mais fechada e enigmática, com qualquer coisa cenográfica, sobretudo nos últimos tempos.”
Um outro plano de aproximação das duas artistas é, como Catarina Alfaro escreve no seu texto do catálogo, intitulado “Uma Visão Táctil”, “o da sua relação com as temáticas da pintura clássica religiosa, sobretudo nas obras de Menez realizadas a partir dos anos de 1980 e, no caso de Paula Rego, no início da década de 1990 enquanto artista residente na National Gallery, em Londres, e que se estenderá a 2002, quando executa um conjunto de obras dedicadas ao Ciclo da Vida da Virgem Maria”.
E continua, no mesmo texto: “Ambas revisitam temas sagrados, Anunciações, Calvários, Crucificações, evidenciando a presença do feminino. A exploração destas temáticas tem evidentes reflexos no modo como passam a estruturar as composições, reposicionando-se perante questões técnicas essenciais da pintura e do desenho; a organização compositiva, definitivamente alterada, ganha uma dimensão cenográfica através da utilização da perspetiva na racionalização do espaço, criando cenas estáticas em torno das personagens femininas”, justifica. “É neste espaço cenográfico que se distribuem essas protagonistas com os seus atributos simbólicos, que se destacam, no caso de Paula Rego, pela solidez da sua humanidade ou, na pintura de Menez, pela sua irrealidade.”
Apesar destes paralelismos que guiaram a sua construção, a exposição não é um diálogo com o trabalho de Paula Rego, centra-se no de Menez. E o acesso às suas obras foi um dos problemas sentidos. Catarina Alfaro recorda que já em 1990, quando se realizou a grande exposição da pintora, na Fundação Gulbenkian, comissariada por Sommer Ribeiro e Maria Helena de Freitas, tiveram que pôr um anúncio no jornal para conseguir chegar a muitas das suas peças. “Menez teve muita aceitação por parte da crítica e do mercado de arte, foi um sucesso de vendas e muitas das suas obras foram adquiridas por instituições e é mais fácil chegar a essas coleções, mas não às particulares, porque não existe uma cartografia da sua obra”, diz.
ORIGINALIDADE E LIBERDADE
Reservada, discreta, com uma vida marcada pela tragédia, pela morte dos filhos, Menez teve na pintura momentos decisivos assinalados na exposição em que agora se dá a ver, de forma cronológica, um percurso artístico “diferente”. Desde logo, por não ter tido uma formação académica convencional, mas sobretudo, sublinha ainda CA, a sua pintura é profundamente “original e “livre”: “O facto de não nomear as suas obras, de não se identificar com escolas artísticas, revela uma constante liberdade de ação que é uma condição absoluta da sua originalidade. A sua própria personalidade reflete-se na sua pintura.”
É uma “compreensão da pintura como processo de afirmação pessoal, capaz de transmitir a sua visão do mundo”, escreve a propósito, noutro passo, a curadora e diretora da Casa das Histórias, continuando: “A sua obra foi, por vezes, associada a um certo sentimentalismo, decorrente de uma sensibilidade feminina, por possuir um carácter intimista que a torna indecifrável. Mas, como afirmou Salette Tavares, que foi quem melhor acompanhou a vida e a obra, da “Menez não há doçuras nem sentimentalismo nenhum. […] Não vai buscar soluções fora de si, de seu mundo, dos seus demónios e deuses.” “Por esta mesma razão, será desnecessário tentar encontrar o seu território de afinidades artísticas.”
Salete Tavares, uma “amiga muito atenta” e que escreveu muito sobre o seu trabalho, chamava a atenção, de resto, para a “fidelidade criadora” de Menez, o facto de não se tentar com vanguardismos, não os procurou, aconteceram na sua obra. “É difícil de enquadrar, foge a esses territórios do abstracionismo ou da nova figuração e é interessante perceber como se moveu, de uma forma tão desligada, na sua vida artística, mas foi consagrada”, afirma-nos ainda CA. “E há uma grande coerência na evolução da sua obra, mantendo os mesmos princípios, a importância da luz na construção do espaço, o jogo de ocultação e revelação, o interior e o exterior, entre a abstração e a figuração.”
PINTURA DE ESPAÇOS
O importante caráter da luz é também assinalado por Maria Helena de Freitas: “Se de início é possível verificar algum contraste entre a transparência dos guaches e a espessura dos óleos, o desenvolvimento do seu trabalho irá fundamentar-se num processo de materialização lumínica, particularmente conseguido nas primeiras telas dos anos 60. A luz apodera-se das formas, como as formas se apropriaram do espaço”, sustenta. “Menez parece proceder à reordenação do mundo a partir de acasos. Como se fosse da ordem do destino o encontro primordial de todos os elementos. Trata-se da criação de um espaço novo, um espaço-objeto em que surgem combinados elementos figurativos com formas abstratas.”
Um estado que poderíamos designar de “passagem”, no final dos anos 70, mas importa sobretudo verificar, segundo MHM, as “permanências ou as antecipações”. “Uma natureza-morta, um anjo, um coração, algumas topologias identificáveis, são sugestões figurativas com uma expressão idêntica às formas volumétricas que as acompanham e com que se articulam”, observa. “O espaço como objeto, o corpo como paisagem são formulações com um único sentido plástico — massas de cor, luz e matéria que se fazem e desfazem como aparições.” É neste enquadramento que algumas pequenas telas introduzem de uma forma persistente uma dimensão temática, aliada a uma situação figurativa mais definida.”
E seria depois, com as conhecidas representações do seu atelier, que mais se afirma a sua “pintura de espaços”, como nota ainda Maria Helena de Freitas no seu texto justamente intitulado “As Formas do Espaço”, pelo “cruzamento infinito de possibilidades visuais, pela capacidade de desmultiplicação que comporia”. “O Modelo e o quadro, o cavalete e a janela, o dentro e o fora, trata-se aqui da citação da sua própria pintura e dos seus referentes. À distância de qualquer envolvimento intimista ou psicológico, a pintora torna-se o objeto plástico da sua atenção e representa o cenário do espaço que habita. Recria-se num inventário de poses e atitudes, os possíveis gestos, os outros quadros, os lugares de solidão”, afirma MHF. “As figuras surgem com o olhar baixo, de costas ou propositadamente cortadas. É sempre uma perspetiva feita de desvios e declinações. Como se a autora se distanciasse e tomasse como ponto de vista a sua presença e como ponto de fuga o espaço aberto que a envolve. Simulando um espaço de exibição não se expõe. Esta pintura não é lugar de Intimidades mas de distanciamento. Sabemos serem seus o atelier, os livros, os pincéis, e o rio ao fundo. Mas é uma rede de gestos invisível que os une.”
Como sublinha Catarina Alfaro, as pinturas sobre o atelier, onde “se encontram os potes de cerâmica repletos de pincéis, os cavaletes, os livros abertos, as várias telas em diferentes fases de execução”, são “projeções do seu imaginário, extensões topográficas do seu modo de ‘habitar’ o espaço dentro e fora da pintura”. “O atelier abre-se para o espaço exterior — um jardim ou a janela que concentra o rio Tejo — através de espaços intermédios, salas que se fragmentam em sequência, ou pelo efeito desmultiplicador dos espelhos ou dos quadros dentro do quadro”. “Neste espaço enigmático habitam num isolamento dramático as suas figuras femininas, cuja gestualidade é, tal como a espacialidade, encenada.”
Para Menez, que “não gostava de teorias, nem de perguntas”, como afirmava na referida entrevista ao JL, eram importantes as “belezas meteorológicas”, de que falava Baudelaire, uma luz “especial”, as casas, tudo o que via. “É-se atento a tudo. Um pintor não é alheio ao que se passa à sua volta”, garantia. “Mas as ideias da pintura vêm de outro lado, de dentro.”
Um universo particular para redescobrir na Casa das Histórias, em Cascais, até 2 de outubro.