Convento da Boa-Hora a partir de 1677, após ter sido o Pátio das Comédias desde 1633, foi transformado em Tribunal em 1843, no reinado de D. Maria II – e nele funcionaram as varas criminais e os juízos correcionais da comarca de Lisboa até 2009, ou seja: durante 166 anos. Agora, há 13 que está votado ao abandono, não se tendo concretizado (felizmente…) vários destinos que chegaram a para ele serem anunciados. É neste contexto que um advogado e artista, fotógrafo, João Miguel Barros, lançou uma petição defendendo as ideias e o destino para a Boa Hora que expõe e desenvolve no texto a seguir. Álvaro Laborinho Lúcio, o juiz-conselheiro que dirigiu o Centro de Estudos Judiciário, foi ministro da Justiça e agora é escritor, escreve apoiando a proposta, que engloba um Museu no qual a história do sinistro Tribunal Plenário deve ter um lugar destacado – e sobre ele escrevem a historiadora, Prémio Pessoa, especialista no período da ditadura, Irene Flunser Pimentel, e o escritor, também advogado, Mário de Carvalho, que como preso político nele foi “réu”. A fechar, recordam-se dois poemas de José Carlos de Vasconcelos, que ao tema dedica ainda o seu com. na p. 3.
1. Quem sobe a Rua Nova do Almada a caminho do Chiado, não se apercebe da imponência e dimensão do antigo tribunal da Boa Hora, cuja porta principal dá para o Largo da Boa Hora. Desde 2009, data em que os tribunais criminais que aí funcionavam foram transferidos para o Campus de Justiça, no Parque das Nações, até hoje, que a Boa Hora está encerrada e em processo de contínua degradação.
O antigo tribunal da Boa Hora foi entretanto adquirido pelo Ministério da Justiça, em janeiro de 2013, com o propósito de o afetar a serviços judiciários e à instalação de um futuro Museu do Judiciário. Sem resultados. Apesar das boas intenções, os Governos seguintes foram igualmente incapazes de concretizar qualquer projeto para o local, apenas contribuindo com a sua inação para a continuada degradação do espaço.
2. Defendi que a Boa Hora fosse entregue ao Judiciário em 2013, muito motivado pela ideia de se criar e aí instalar o Museu do Judiciário. Num artigo publicado em 2018 mudei de opinião e comecei a sustentar que a Boa Hora deveria deixar a tutela do Judiciário e ser devolvida à cidade, por nada ter sido feito desde 2009 e pela sua localização privilegiada na Baixa de Lisboa.
Essa a razão para o recente Manifesto intitulado “Por uma BOA HORA ao serviço da cidade” (www.boahora.org), que conta com adesões já muito significativas e relevantes, no qual se defende que as instalações do antigo tribunal devem ser capacitadas e requalificadas para aí serem instalados o Museu do Judiciário, recuperando o antigo “tribunal plenário”, um centro de Indústrias Culturais e Criativas, e um centro de Incubação de Ideias Inovadoras. Vamos por partes.
3. Propõe-se a criação na Boa Hora do Museu do Judiciário, em rigor um museu nacional da história judiciária portuguesa (e não apenas um museu da Boa Hora), que não fique sob tutela judiciária, mas que integre a rede nacional dos museus.
Para isso seria importante preservar a sala onde se realizaram durante o Estado Novo os julgamentos plenários, mas ir muito além disso, e ocupar os espaços adjacentes desse segundo andar do antigo Convento. O projeto obriga a um esforço de sistematização e inventariação de um espólio significativo e alargado, de âmbito nacional, para integrar objetos judiciários com valor museológico e que se encontram dispersos por arquivos, por alguns tribunais, em especial em zonas reservadas dos Tribunais Superiores, e por outras instituições, tais como a Polícia Judiciária, os Serviços Prisionais, e o Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses. Parte desse trabalho começou a ser feito pela Secretária-geral do Ministério da Justiça, mas foi interrompido.
Fundamental seria, também, centralizar nesse Museu do Judiciário importantes e simbólicos processos judiciais da história portuguesa (e não apenas os realizados nos tribunais da Boa Hora), para serem expostos e, depois, digitalmente apresentados e explicados aos visitantes. Exemplos não faltam: Regicídio, Camilo e Ana Plácido, Alves dos Reis, Ballet Rose, Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, Dona Branca, Capitão Roby, isto sem referir processos emblemáticos como os de Mário Soares, Álvaro Cunhal e outros presos políticos. Ou seja, esses (e outros) processos serviriam para falar da história judiciária e, devidamente contextualizados na época, falar da História de Portugal. Material de trabalho e estudo não falta para honrar a nossa Memória e os valores da Democracia e da Liberdade.
Fica um desafio: por que não anunciar a primeira pedra do Museu do Judiciário durante as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril?
4. Outro uso defendido pelo Manifesto é a afetação da Boa Hora às genericamente denominadas Indústrias Culturais e Criativas. O conceito é genérico, talvez impróprio. Mas o que importa realçar é que se pretende para o espaço da Boa Hora uma acentuada afetação cultural, com ateliers e residências artísticas, polos de promoção de museus de várias zonas do país, centros de formação e a criação de espaços para a realização de exposições. Quem conhece o claustro do antigo Convento, facilmente imagina que nele espaço pode funcionar uma feira de arte regular e outras iniciativas, e que ao seu redor podem acolher-se e concessionar-se lojas de interesse cultural (livrarias, objetos de design, pequenas galerias, peças de autor, etc.).
A afetação cultural é essencial e predominante no projeto que se expõe, e a Boa Hora deveria esforçar-se por implementar uma prática curatorial eclética, permitindo a presença dos consagrados, mas dando igualmente oportunidades aos emergentes e jovens artistas.
5. Finalmente, um terceiro uso previsto pelo Manifesto é o da criação de um centro de Incubação de Ideias Inovadoras, aberto a startup e micro empresas de inovação e base tecnológica, criando-se um ambiente propício à investigação e ao debate orientado para os desafios do futuro.
O Ministério da Justiça comprou 8.120 m2 do antigo Tribunal. Afetou uma área muito pequena aos Registos e Notariado, que tem uma entrada autónoma pela Rua Nova do Almada e que poderia manter-se no local.
Quem conhece o antigo Tribunal sabe que os cerca de 8.000 m2 remanescentes tem um potencial de ocupação elevado, e uma parte importante desse espaço pode adequar-se facilmente a este propósito de características mais empresariais e de investigação.
Nunca é demais apoiar a criação de clusters que permitam o empreendedorismo, em especial o jovem empreendedorismo, dando aos novos a oportunidade de consolidarem projetos inovadores em fase de lançamento. A entidade que viesse a gerir a Boa Hora deveria ter condições para disponibilizar espaço apropriado a esse efeito, que pode existir, e deveria criar parcerias institucionais e académicas para explorar o potencial dessas iniciativas.
6. O Manifesto não o diz, mas tem implícito a recusa de aproveitamento do Boa Hora para fins hoteleiros ou similares, como há uns anos foi equacionado. Mas não é incompatível com os fins apresentados, bem pelo contrário, a instalação na Boa Hora de cafés e de alguma restauração, em especial se ajustada ao conceito proposto e de acordo com um plano global que venha a ser delineado para todo o espaço.
Na verdade a ideia subjacente ao Manifesto tem uma unidade e coerência, se bem que repartida por três usos diferenciados. E essa unidade obrigaria a que fosse delineado e aprovado previamente um plano de utilização e de pormenor de espaços, de modo a conferir harmonia e coerência global ao projeto da nova Boa Hora.
7. A ideia é, em síntese, criar no antigo tribunal da Boa Hora um centro plural afeto à cultura, ao conhecimento, ao empreendedorismo inovador e à investigação, gerido por uma única entidade de capitais públicos (devido às atribuições de utilidade pública que devem estar subjacentes à gestão da Boa Hora), mas com autonomia administrativa, jurídica e financeira, não ficando na dependência hierárquica ou subordinada de nenhum ministério, sob pena de perder eficácia e agilidade operacionais.
8. É, contudo, importante encarar a realidade: a Boa Hora está encerrada desde 2009 e tem vindo a degradar-se continuadamente. Em 2013, quando foi adquirida pelo Ministério da Justiça, estimava-se que seriam necessários 10 milhões de euros para obras de manutenção, ou seja, sem fazer no espaço as benfeitorias necessárias a um qualquer programa funcional. Obviamente que essa verba está ultrapassada pelo tempo e pelas circunstâncias.
Anunciaram-se fundos importantes da Europa que estão a ser alocados para a recuperação de muitos edifícios classificados e espaços equivalentes. Seria bom que o Governo equacionasse o resgate da Boa Hora como sendo uma missão importante e de interesse nacional. Este projeto bem o merece!
9. A terminar, uma nota marginal, mas a propósito. Por mais discursos inflamados e laudatórios que se façam, somos um país que não valoriza suficientemente a Cultura, como merece. A prová-lo está a verba prevista para o Ministério da Cultura, no último Orçamento do Estado, apresentado pelo Governo cessante.
É preciso reforçar a dotação orçamental da Cultura, tendo em vista a vastidão de atribuições que lhe estão cometidas. E é necessário criar uma Lei do Mecenato, que não existe, fazendo-a aprovar na Assembleia da República, e que seja um incentivo ao investimento privado na cultura, não apenas pelas grandes empresas, mas também pelas pessoas das classes médias e pelas pequenas e médias empresas, permitindo-lhes afetar uma parte do encargo que lhes cabe no pagamento dos seus impostos, até um determinado limite, para iniciativas culturais previamente aprovadas e listadas pelo Ministério da Cultura.
Temos de criar uma força motivadora e reformista para a democratização da cultura em Portugal e para a criação de novas responsabilidades e novas acessibilidades. Por uma vez que não se cumpra Fernando Pessoa quando disse “Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o céu.”