Um bom dia é acordar cedinho pelas cinco e meia da manhã e encontrar os animais todos lá. Tenho 50 ovelhas, só uma negra, e cinco porcos. Umas já deram filhos, outras estão prenhas. Divido-as todas, mães para ali, prenhas para ali, ovelhas que ainda têm de engravidar para outro lado… e começo por ordenhar todas.
As que têm filhotes eu só ordenho uma vez ao dia, as outras duas ou três vezes, de manhã e de tarde. Vamos percebendo como está cada uma, a cada dia. Se a teta começa a descer, dizemos piano, piano e ordenhamos dia sim, dia não, temos de a deixar descansar. Isto porque se puxamos muito pela teta da ovelha, e lhe tirarmos demasiado leite, o leite perde a qualidade, é por isso que têm de repousar. Se a teta inchar, tem de se ordenhar porque está cheia, se tem filhos temos de deixar sempre um pouco para os filhotes.
Uma ovelha fica grávida aí uns cinco meses, tenho quatro grávidas agora, não dá para ter todas grávidas ao mesmo tempo, se não, não dá para fazer tudo à mão, até era bom se fossem menos de 50, porque com 50 tenho de pedir ajuda ao meu sobrinho para não fazer tudo sozinho, ele também já as conhece todas, sabe quais têm de repousar, as que estão grávidas, as que ainda amamentam… e vai tudo andando.
E é assim que começo o dia. Depois passa o camião ao fim da manhã e leva o leite, vê quantos litros temos, diz-nos a quanto está o litro, paga-nos pelos litros que lhe damos. Umas vezes tenho mais, outras menos. É diferente todos os dias.
E não faço mais nada a não ser ordenhar e levar as ovelhas para o matadouro. Dantes pagavam bem pela lã mas agora não dão nada, só tosquiamos as ovelhas quando vem o calor, lá para maio ou junho, por vezes mais tarde, depende do tempo, não tosquiamos uma ovelha se ela tem frio, não é verdade? Não faz sentido, ficavam doentes.
Há uma semana no ano em que não entrego o leite ao camionista. Nessa semana levo o leite para casa para fazer o queijo para toda a família. Com estas regras todas da Europa, já não vale a pena fazer queijo em casa para vender. Há pessoas que fazem o queijo e depois vão a uns sítios onde podem pedir aquele carimbo, o certificado, e assim já podem vender o queijo, mas eu não faço isso, prefiro fazer o queijo só para mim e para os meus. Eu gosto de fazer queijo.
No outro dia esqueci-me lá em casa de um bocado sem o embalar, em cima da mesa. Quando dei por ele, o queijo tinha envelhecido, apodrecera e tinha vermes por todo o lado. Eu fiquei a olhar para aquilo (não sei bem por que fiquei a olhar para aquilo). Olhei, olhei, fiquei a observar o queijo e os vermes por horas. Acho que foi num daqueles dias que correm tão bem que temos tempo para estar a olhar sem fazer nada. E foi assim que descobri que o mundo começou numa cozinha como a minha, num estábulo como o meu, onde ordenho as minhas ovelhas, depois de deixar coalhar o leite, e de me esquecer de embalar o queijo, depois dos vermes crescerem e se tornarem anjos.
Havia um moleiro em Itália que se chamava Menochio, e que já sabia disto tudo no século XVI, e já tinha contado a muita gente. Foi por isso que foi interrogado pela Inquisição várias vezes. Era um moleiro que sabia muito, um moleiro que viajava, conhecia outros mundos, outras paragens, outros pães, outros queijos. Naquele tempo ele já tinha ido à Grécia, ao Egipto, à Albânia, à Áustria, e de cada vez que ele saía não havia pão na sua aldeia, assim como não há leite na minha se não ordenho as minhas ovelhas. Menochio também fazia queijo, mas como estava sempre a viajar, por vezes o queijo para lá ficava, no moinho dele, só, esquecido, por muito tempo, como o meu na minha cozinha, e coalhava, criava vermes, e dos vermes nasciam anjos que depois foram amassados para moldar homens, mulheres, bichos, plantas. E ele viu isso como eu vejo agora e contou à aldeia toda.
Há um livro sobre isto, e eu vi isto tudo noutro dia a acontecer na minha cozinha, ao almoço, mesmo antes de ir limpar os estábulos, e de ajudar as ovelhas mais pequenitas a andar, antes de apanhar a lenha, arrumar um pouco, dar de comer de novo a todas de tarde. A parte do dia que eu gosto mais é quando trato dos animais e lhes dou de comer, de cuidar deles.
E faço isto tudo sozinho. Quando vendo os animais para o matadouro, vendo-os ao quilo, pego nos animais, ponho-os na balança e o senhor diz-me quanto é o quilo. Se a ovelha está na fase da ordenha ela custa mais, aí uns 100€, está mais pesadita, mas no verão elas emagrecem e custam aí uns 80€ cada uma no matadouro. E uma pessoa vai vendo, não é?
Já estou a juntar dinheiro para comprar outras 20 ovelhas. Porque não? Com o dinheiro desta peça ainda compro mais umas…
Eu comecei a trabalhar nisto um bocado por um acaso, trabalhei para outros pastores, começou com um amigo que me disse, olha estão a preparar lá um novo espaço não queres vir? E eu fui, precisava de trabalho, o meu pai já está reformado, a minha mãe era mãe… e tinha de começar a fazer alguma coisa… Se não trabalhasse nisto acho que gostava de trabalhar num banco, para ganhar muito dinheiro, mas é melhor tolerar as ovelhas que as pessoas, a solidão da vida de pastor não me assusta, eu entendo-me com as minhas ovelhas, os bichos não fazem mal uns aos outros se não tiverem razão para isso, nem mentem… já as pessoas…
Mas no inverno faço outras coisas, não quero ficar parado no inverno e não se pode fazer muito no campo. Já trabalhei em bares e restaurantes e na receção de um hotel, ganha-se um pouco mais e ocupamos o tempo.
Um dia quero ter 200 ovelhas, já pus os papéis para tratar das máquinas da ordenha e mudar tudo, mas quando isso acontecer não posso sair para ir fazer peças… porque este trabalho não tem horário, uma ovelha também come e também dá leite ao fim de semana, não é? Aos domingos, no natal, nas festas, ano novo, ano velho, não dá para ter um horário, todos os dias é segunda feira. J
Nota: texto escrito a partir de entrevista com Giuseppe, pastor sardo e performer no espetáculo Selvagem, de Marco Martins, a estrear a 25 de março no grande auditório da Culturgest.