Não deve ter sido só hoje, mas hoje mentiram-me. Eu assisti sem me mover no espaço. Sem respirar. Perguntei novamente. A sensação foi ligeiramente incómoda. Tentei lembrar-me das razões que me levavam a aceitar este emprego todos os dias. O cérebro lembrava-se de qualquer coisa como: segurança, mais 50€ por mês, um contrato, e a inscrição na nova escola do meu mais velho que necessita de mais apoio e que está muito melhor desde que o mudámos. O cérebro lembrava-se, mas o corpo não. O corpo anda inchado. Anda sem apetite. Ou com muito apetite, a meio da noite.
Não deve ter sido só hoje, mas hoje a pergunta surgiu com maior clareza na cabeça e o veneno espalhou-se pelo corpo que não se lembra para o acordar: Se eu me for embora daqui vou sentir falta de alguma coisa? Esperei pela resposta. Senti a cura das ideias quando aparecem pela primeira vez. Fui à pasta dos calendários. Contei as horas extraordinárias. Troquei tudo em folgas. Comecei a contar os dias para o fim do contrato.
Terminei o dia mais cedo e saí do escritório para me enfiar na cinemateca. Não há muitos lugares onde nos podemos esconder do que nos acontece. O filme era de Kurosawa, Ikuru. A história de um burocrata com uma doença terminal que decide questionar-se sobre o sentido da vida. A certa altura, num jantar de despedida com os seus colegas de trabalho, um deles comenta: É muito fácil manter um lugar, basta não te mexeres.
Saí do filme sem vontade de ir para casa, hoje é o dia em que estão todos fora. O João trabalha no turno até às cinco da manhã, e os filhotes ficam sempre com a avó de sexta para sábado.
Não deve ter sido só hoje, mas hoje o governo em que votei traiu-me. Jogou ao bilhar comigo. Colocou as urnas dos votos à frente das urnas dos mortos, as contas do ábaco à frente das contas de vidro, o braço de ferro à frente do braço que abraça, carrega, segura, ajuda, ensina, conduz a mão a desenhar a história e a reescrever a lei. E eu assisti. E pensei: era isto que Hume dizia quando afirmava que causa e efeito são apenas um hábito e que não temos como prever onde uma bola vai bater quando lhe acertamos com um taco numa mesa de bilhar?
Passo por uma livraria. Não há muitos lugares onde possamos conversar sem abrir a boca que não sejam ruidosos. Compro o Livro das Mutações, de I Ching. As lojas entretanto fecharam, os cafés e os jardins enchem-se de jovens. Decido ir para casa aquecer qualquer coisa do dia anterior.
Não deve ter sido só hoje, mas hoje sinto-me claramente dividida. Vivo fechada numa torre de pele como se fosse de marfim. Prometi a mim mesma que nunca mais jogaria xadrez. Se a vida não tem só reis, rainhas, bispos, cavalos e peões, então os jogos também não deveriam ter. Tenho de fazer qualquer coisa. Tomar alguma decisão que afete de forma mínima mas irreversível o curso dos meus dias.
Chego a casa. Abro o livro que comprei numa página ao calhas enquanto aqueço os restos do jantar de ontem.
Morder com êxito é útil ao exercício da justiça.
Penso: para que estas instruções sejam fiáveis, devo proceder com verdade e não com razão. Para o exercício ser justo devo ser maior do que a causa que me move ou a causa deve ser maior do que o meu movimento?
Devo Ter alguma coisa entre os maxilares, indica o Livro das Mutações.
Mas não é fome o que tenho. É angústia. Concluo que os dias estão cada vez mais cheios e, no entanto, encolhidos. A noite chega cada vez mais cedo. O dia tem cada vez menos cores. Decido que vou sair de novo de casa e levar comigo o Livro das Mutações marcado na combinação 21. O Trovão e o relâmpago combinam-se num padrão. Simbolizam o morder.
Não deve ter sido só hoje, mas hoje falei de uma pessoa que não me lembro de mencionar há mais de 20 anos e dez minutos depois tinha uma notificação numa das minhas redes sociais a confirmar que essa pessoa reagira, pela primeira vez, a uma história minha.
As coisas ouvem-nos, as máquinas ouvem-nos, as empresas comerciais são todas ouvidos. Isto está tudo ligado e não é pelas forças do Universo. Desinstalo as aplicações das redes sociais no telefone. Limpo o caixote do lixo do ambiente de trabalho do computador. O histórico de todas as pesquisas na Google.
Leio a Componente 2 do yin – morder através da carne tenra, de modo que o nariz desaparece. Dominar com força firme.
Atravesso a rua e vou ao teatro. Compro um bilhete para ver Infomaníaco de André e Teodósio. Não há muitos lugares onde se possa ser outro sem ter de ser escutado. Saio de casa porque posso, não porque quero ou me apeteça. Entro no teatro por hábito. A escuridão acompanhada ainda me oferece conforto. Apagam-se as luzes. O espetáculo vai começar. A plateia serve de cenário a um homem de meia idade que se move de forma estranha. Sem parar. Fala dele, fala de mim, fala do que lhe aconteceu a ele, ao universo, ao fio que a avó lhe deu, às células e aos organismos, à Via Láctea e repete: hoje o dia passa, hoje o dia é o dia de ontem, hoje é também há dois mil anos, hoje é também 1911, e 2001, e 2006 e 2021. O homem não para de falar nem para de se mexer e, no entanto, ele não está ali. Ele dissolve-se na energia daquele tempo que se passa comigo. E ele explica: Eu antes queria rebentar com isto tudo, queria chegar a um teatro e rebentar com isto tudo. Ele hoje é a explosão que não tem detonador. Isto está tudo ligado, diz ele. Mas é ele que está todo ligado, como se ele não fosse ele mas algo maior do que ele, enquanto eu estou ligada a algo que me faz mirrar.
Componente 3 do yin – morder carne seca chegando ao veneno. Há um certo embaraço, mas não há culpa.
Não tenho culpa, mas também não tenho razão, penso. E o homem continua a mexer-se e a sua energia contagia-me. Lembro-me que o meu corpo não se mexe há muito. Nem em direção ao amor, nem na direção do trabalho, nem na direção do outro, nem na minha direção. O meu corpo há muito é arrastado pelo chão, preso por um pé com uma corda que está amarrada a um cavalo desenfreado sem cenoura à frente.
Chegar ao veneno significa estar fora do lugar.
O espetáculo termina e eu fico na dúvida se deveria aplaudir a minha desintegração moral e física perante este homem que me provou que está tudo ligado e é muito maior do que o que ocupa os meus dias. Regresso a casa para ler o Livro das Mutações como se fosse um romance.
Componente 4 morder carne seca e com osso, descobre uma flecha de ouro. É vantajoso ser diligente, é bom presságio ser constante e íntegro, quando ainda não se alcançou distinção.
Tudo verdades infomaníacas. Abro um caderno e decido escrever tudo o que me vem à cabeça. Quando já não sei o que escrever aponto a componente 5 da mutação do trovão e do relâmpago.
5 mordendo carne seca descobre ouro amarelo. Se for constante no perigo, não haverá problema. Ser constante no perigo significa encontrar o que é justo.
Deito-me com uma estranha sensação de dia cumprido e até tenho a sensação de estar a sorrir. Amanhã chego mais cedo ao trabalho e mudo a secretária para a frente da janela. Amanhã, não sei se voto no mesmo. Amanhã será hoje com mais dois mil anos de ouro e perigo para exercitar.