Vamos ficando mais e mais divididos entre a folia de ainda vivermos e o exercício da saudade. Estes lugares de regresso às grandes festas íntimas são jogos de diferenças intermináveis onde apontamos o que perdemos e ganhamos. Em cada ano, como em mais uma fotografia, medimos as crianças, como crescem, o quanto se esticam para serem também adultas, e com isso procuramos dissipar as ausências. Quantos netos são precisos para encher o lugar vazio de um avô?
Quero sempre que as festas de família sejam a reiteração da força de estarmos juntos, de valermos uns pelos outros, de não nos estranharmos. Se toda a vasta multidão houvesse de nos preterir, que sobremos sempre juntos, seguros de nosso brio, de nossa estima, sem vacilar. Porque é neste reduto onde fundeámos nossas âncoras e é por ele que mais nos aliciam os princípios, a gula de beleza, a persistência da ternura, a amplitude da imaginação, o esforço da fidelidade ou a opção incondicional pelo amor.
Estas festas são para isto. Um cerco de identidade e afeto que se reafirma para incluir aqueles que não são inteiramente o outro. São a nossa própria multiplicidade. A nossa plural existência. O que nos justifica e nos leva à gratidão.
Jantamos por motivos diferentes da fome. Jantamos pela oficina simbólica da partilha. À mesa dizemos que o que ali se leva é de todos. Estamos como iguais, partes diferentes para a construção da igualdade possível. E escutamos o que dizem os miúdos e rimo-nos. Contamos como era antigamente enquanto o antigamente se vai tornando cada vez mais distante e surpreendente até para nós. No desafio de fazermos sentido e termos sempre a razão do afeto, mantemo-nos úteis para a consciência e para grandeza humana de cada um.
Tive sempre medo da família. De como se pode gostar demasiado e sofrer demasiado. Qualquer perigo, qualquer perda, parece deitar por terra o infinito dos sentidos. Por ser insuportável. Em tantas ocasiões me tornei avaro de abraços e beijos e não quis reconhecer as minhas fragilidades. Prefiro ser um bocado bruto como quem está em fuga. As minhas festas foram sempre um bocado em fuga. Não me deixo apanhar porque, por dentro, já entendi estar preso há muito.
As festas em tempo de tristeza são cruéis. As mais cruéis das ocasiões. Porque se auscultam as alegrias vizinhas, os ruídos e os rituais dos que vão a caminho franco da primavera, e nós desprezamos subitamente todas as flores e todos os passarinhos, o sol clareando de dia para dia. Este é mais um ano de separações, esperas e adiamentos. Com isto, sinto que se ensaiam as famílias para teatros que não abrirão tão cedo. Vamos estudando os textos, mudando os textos, o que dizemos e escrevemos uns aos outros, sem prever muito bem a conversa de quando nos reencontrarmos de verdade.
Passaram pesarosas à minha janela as pessoas de outra casa. Apercebi-me do quanto vinham esparsas e demoravam. Seguiam como para chegar a lugar nenhum. De algum modo, iam entre vivos e mortos, tão presentes os mortos, ainda mal admitidos no mundo dos espíritos. Foi a única família que vi inteira, junta, já sem tretas para com a pandemia. Sem etiqueta. Uma família inteira que ia no contrário da festa. A cumprir o silêncio e a gravidade. Fiquei a saber que cancelaram o casamento dos miúdos novos. Cancelaram-se. Este ano já não lhes presta serviço.
Foi em que pensei quando me vieram agora perguntar acerca da Páscoa. Que sorte temos em poder perguntar sobre se ainda correremos riscos pela Páscoa, pelo aniversário da menina, pelo dia da poesia, a chegada dos franceses, o primeiro calor para a praia. Que sorte ainda podermos perguntar, mesmo que não tenhamos resposta. Mesmo que não saibamos que resposta dar, o que devemos dizer ou fazer.
Sem festa
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