Como vai? Há muito que não a via! Bom, agora por estes dias ninguém vê ninguém, já é uma sorte encontrarmo-nos aqui à porta da escola. Vai por aqui? Eu também. Desde março que estou a trabalhar de casa, mas não nos podemos queixar, não é? Tanta gente que anda aí em condições bem piores, ao menos temos trabalho. Mas é uma chatice. Nós lá no escritório encontramo-nos uma vez por mês, na rua, fazemos um passeio conjunto, só para sabermos uns dos outros, mas está a ver, agora com este frio e estas chuvas, ninguém passeia coisa nenhuma, fazemos o quê? Dizemos olá e seguimos! E sabe, não sei se lhe acontece também, mas já nem nos telefonamos, não temos muito a dizer uns aos outros. Mantenho o contacto dois ou três amigos que vejo desde o início disto tudo e de resto… perdi o rasto de todos! Vejo só a família e mesmo assim, não visito os meus pais há três meses, vou até à janela da minha avó e falo um bocadinho com ela todas as quintas feiras, deixo-lhe lá dois sacos de compras, mas, coitada, já nem percebe muito bem o que se passa, nem porque está fechada, pergunta-me sempre porque não entro para tomar um cházinho, faz-se sempre um bolo de iogurte que não levo para não lhe entrar em casa, diz-me que a vida não é para ser feita a correr, queixa-se que eu nunca tenho tempo para ela, e o que é que eu lhe vou dizer, assim, aos gritos, do passeio para a sua janela? Não, vó, não leve a mal, é só uma epidemia, deixe estar que isto já passa? Como é que eu lhe explico não pode ir buscar a neta à escolar às quartas feiras? Enfim…
Ainda assim… temos sorte… a escola ainda está aberta… e as nossas filhas ainda são old school, não estão em casa agarradas aos ipads e aos whats apps e essas coisas. Gostam de desenhar, de brincar na rua, de fazer perguntas. E felizmente estão ainda naquela idade entre a infância e a adolescência, ainda gostam de estar connosco, já não são tão pequenas assim que desatem a trepar pelas paredes por estarem fechadas em casa, nem estão naquela idade em que odeiam estar a viver com os pais e só pensam em sair. Consegue imaginar ter outra vez 16 anos no meio desta epidemia? Eu teria enlouquecido. Com essa idade eu vinha a casa dormir e mesmo isso…Tenho amigos com filhos adolescentes e contam-me que os miúdos estão a ser constantemente apanhados a beber na rua com os amigos, a namorar às escondidas atrás de igreja com o telemóvel aos berros, em festas ilegais nas garagens dos prédios… A Elsa tem três miúdas e todas as semanas tem um polícia à porta. A mais velha, já pagou três multas! Era uma miúda tão gira e está a ficar tão revoltada…
Aos governantes é que eles não passam multas, não é? Podem portar-se mal à vontade que ninguém os chama à responsabilidade. Isto que se está a passar é muito grave. Dizem que estão a tomar estas medidas todas em nome da segurança mas já viu no que nos estamos a tornar? Quando sairmos desta epidemia estaremos a viver já noutra sociedade. Viu esta confusão toda com as livrarias? Reclamamos todos que não deveriam estar fechadas e qual é a solução dos governos? Proibir a venda de livros nas grandes superfícies! Então o problema não era não termos acesso aos livros? E os teatros? Estão fechados, ninguém pode ir ver uma peça, ficamos todos em casa a devorar séries na Netflix e o que é que o governo faz? Queixa-se que há sobrecarga das redes e autoriza as empresas de telecomunicações a bloquear as plataformas de vídeo jogos e de youtube para salvaguardar a boa comunicação dos hospitais e dos serviços do Estado.
As pessoas sentem-se sozinhas? Comprem androids que lhes façam companhia e não apanhem covid, façam sexo online que é mais seguro, façam meditação gratuita oferecida por celebridades. E nós, o que fazemos? Agradecemos as soluções e até temos vergonha se não concordarmos de cada medida. Não vemos outra hipótese. Quando dermos por nós não temos escolas, temos edifícios vazios onde uma máquina recebe os nossos filhos, lhes dá um código de barras que lhes dá acesso aos trabalhos de casa, escolhidos à medida para cada um de acordo com parâmetros decididos por algoritmos. Quando dermos por nós, são as máquinas que decidem a profissão dos nossos filhos, como ocupam o seu tempo livre. Já decidem para muitos de nós com quem casamos, com quem falamos, que música ouvimos. Já andam a falar aí de termos uma diretora por cada cinco escolas, dizem que não vale a pena ter mais, para quê? Não está lá ninguém!
Está a imaginar como vai ser, não está? Vamos ter alguém sentado em casa a olhar para um computador cheio de pastas virtuais e a arrumar os nossos filhos em ficheiros amarelos, verdes, azuis, vermelhos, e a contabilizar os pontos que tiveram em matemática, a ciências, a geografia, a decidir numa tômbola de algoritmos para que escola podem ir os nosso filhos no secundário, para fazer o quê, para quem e por quanto tempo. E sem darmos por isso, os miúdos vão passar a aprender só aquilo que cabe em números e em estatísticas. Vão crescer separados dos adultos, separados dos seus próprios corpos que não reconhecerão, separados de profissões que não cabem em ecrãs mas que ainda são aquelas que os alimentam e lhe constroem as casas onde vivem. E um dia, o grande sistema para o qual estamos todos a contribuir agora sem reclamação não vai aguentar com tanta informação e vai colapsar, vai de certeza colapsar, vamos perder toda a informação.
E depois? Como vai ser? A senhora diretora não vai saber quem é o António, ou a Joana, ou a Maria, porque só sabe quem é o o nº 232 do ficheiro amarelo, ou o 456 do ficheiro verde, e sem isso, a senhora diretora das cinco escolas nem sabe em qual das escolas está a nossa filha, nem sabe o que fazer. E depois? Como vai ser? Os miúdos não vão saber desenhar, pintar, construir um armário, plantar um jardim, saltar um muro, jogar à bola, e vão fazer o quê? Aprenderam apenas a seguir quem não vai saber conduzir sem confirmar primeiro num relatório automático enviado não se sabe bem por quem ou pelo quê! Estamos a ensinar os nossos filhos a obedecer sem pensar, a cumprir sem perguntar, a consumir sem saber de onde vem o que lhes chega a casa sem esforço.
Desculpe-me o desabafo, tudo isto me põe muito nervoso, acontece debaixo dos nossos olhos. Assistimos ao fim de uma sociedade pela qual lutámos, aceitamos a mudança subreptícia em silêncio e a achar que é para o bem da humanidade. Qual humanidade? Estamos a educar os nossos filhos para serem o quê, neste mundo? Escravos?
A escola do futuro
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