É uma realidade dinâmica, em transformação, que se renova sem perder as bases. Isto, a propósito de dois grandes álbuns que marcam desde já o panorama atual da música portuguesa. Trigo orgânico de agricultara biológica, pepita de alto quilate. Por um lado, Infinito Presente, de Camané; por outro Romance(s), de Aldina Duarte.
Discos com abordagens diferentes, quase antagónicas, mas que comungam uma qualidade poética e musical. Se Romance tem um conceito forte e complexo, mas apresentado de forma extremamente clara. Infinito Presente caracteriza-se por uma quase ausência de conceito, uma diversidade enriquecedora e genuína.
Não há intérprete mais unanimemente considerado no fado atual do que Camané. É quase impossível não gostar dele, nem mesmo quem não gosta de fado. Ele respira autenticidade e facilmente se transcende, transportando-nos para esse raro plano etéreo quase religioso. Acreditamos em cada palavra que diz. Aliás, partilha essa qualidade com Carlos do Carmo (um dos seus mestres): uma dicção perfeita, quase ilustrativa, saem-lhe lágrimas da garganta quando fala de tristeza e desenha-se uma nuvem de rancor quando fala de ciúme.
Tudo isso, em versão humilde, de quem serve o fado com uma postura de anti-herói. Sem ares majestosos nem paternalistas. Mantém-se com a mesma humildade do miúdo que gravou um disco há 20 anos, Uma Noite de Fados, e que gaguejava de nervos quando tinha de falar em público. Em retrospetiva, apercebemo-nos de que Camané soube atravessar os mais inesperados caminhos, como os Humanos (onde reinventou Variações), ou os concertos de Outras Músicas, sabendo sempre voltar à casa mãe.
Quando é para cantar fado tradicional não facilita, sabe fazê-lo como ninguém. O trabalho com José Mário Branco, produtor desde o primeiro álbum em idade adulta, parte exatamente da busca de uma certa pureza. Tal como havia feito antes com Carlos do Carmo, José Mário Branco defende uma simplicidade nos adornos, para que não se perca a essência do fado que, segundo o seu conceito, é a voz e a palavra. Assim, opta por um uso contido da guitarra portuguesa, não permitindo que em situação alguma ela compita com a voz.
Este é o conceito basilar que se repete ao longo dos discos. Do primeiro ao último, sem exceção. Na frieza do estúdio (que tentou contornar no primeiro álbum) procura, através da repetição, os momentos únicos – aqueles em que o fado acontece, com uma preocupação extrema com as nuances da interpretação. São os pormenores que fazem os grandes fadistas e não os galanteios vocais.
Infinito Presente, título retirado de um poema de David Mourão-Ferreira, assemelha-se, em certa medida, a um Best of com gravações originais. Pois nele encontramos o conjunto das características que, separadamente, descobríamos em discos anteriores. São elas, por exemplo, o musicar de poemas, as letras originais, os fados tradicionais cruzados com outros contemporâneos, melodias de Alain Oulman, letras de Manuela de Freitas e um momento inesperado como um fado de Vitorino Salomé e outro com letra, imagine-se, do seu bisavô.
O álbum começa logo com uma boa surpresa: Camané interpreta Machado de Assis, numa mistura entre o Fado Solene e o Fado Mouraria. É mais um grande escritor trazido de forma inesperada para o seu fado. Segue-se uma forma repetida no disco: José Mário Branco musica David Mourão-Ferreira, incorporando mais uma vez no fado de Camané um dos principais poetas de Amália.
Acontece em Chega-se a Este Ponto, Paraíso e Infinito Presente. Depois de Sempre de Mim (2008), Camané volta a cantar Alain Oulman, desta vez com um poema de Manuela de Freitas. A escritora, de resto, parece assumir um papel ainda mais preponderante neste álbum, emprestando o seu talento em temas de natureza variada.
E se Camané é muitas vezes apontado como discípulo de Amália, o momento mais deslumbrante ou arrepiante do disco é sem dúvida Quando o Fado Acontece (acontece mesmo!), em que arrisca, e bem, interpretar o ex-libris da grande Maria Teresa de Noronha: o Fado Pintadinho. Com uma letra de Manuela de Freitas, Camané consegue trazer o tema para o seu estilo, com arte nas subtilezas.
O disco segue, de resto, para um surpreendente Quatro Facas, com poema de Manuel Alegre. E, mais à frente, descobre-se que ainda há tesouros adaptáveis ao fado tradicional no baú de Pessoa, com Aqui está-se Sossegado. O álbum termina com a força do contrabaixo de Carlos Bica (cala-se a guitarra e a viola), sobre o fado tradicional Triste Sorte (João Ferreira Rosa/ Alfredo Marceneiro/Fado Cravo). E depois disto só apetece ouvir o álbum novamente.
Ou que se alterne com o novo álbum de Aldina Duarte, sem dúvida um dos discos mais surpreendentes do ano. Aldina Duarte é uma fadista com os pés bem assentes na tradição. Sempre com grande inteligência, é uma estudiosa do fado, com refinado gosto poético, que tanto serve para escolher os poemas certos para adaptar a fados tradicionais, como para escrever as suas próprias letras (nada vulgares), como para desafiar os poetas que mais admira. E aqui, realça-se, a colaboração com Maria do Rosário Pedreira.
Não possuindo o virtuosismo vocal de Mariza ou o volume de Ana Moura, Aldina Duarte descobriu o caminho certo para o seu fado, deixando claro que a qualidade do intérprete está muitas vezes mais ligada à contenção do que ao exibicionismo vocal. Os seus trabalhos discográficos são ricos nessas subtilezas discretas e comoventes. Sempre com uma grande preocupação com a poesia, Aldina lançara em 2011, Contos de Fados. Assim este Romance(s) parece uma sequência lógica.
Um grande disco em que a fadista serve fado tradicional e novo fado em discos separados, não para agradar a gregos e a troianos, mas porque assim lhe apraz fazer. Um conceito tão forte, ousado e inteligente que, por si só, torna o disco enorme. Aldina Duarte junta-se a Maria do Rosário Pedreira para cantar um romance em fado. Ou seja, em romance conta-se uma história de faca e alguidar, bem fadista, ao longo de 13 fados tradicionais, com letras de Maria do Rosário Pedreira (a que se acrescenta A Arte do Fado, uma espécie de epílogo).
O resultado é magnífico, porque junta as emoções poéticas do fado a um desenho narrativo consistente. Tal como os velhos discos de rock sinfónico, este álbum é feito para ser ouvido do princípio ao fim, com atenção a cada palavra. Não obstante, os fados não perdem leitura autónoma, porque são entendidos como pedaços de vida transcritos em instantes emocionais.
É de sublinhar a excecional capacidade de criação narrativa/poética de Maria Rosário Pedreira, porque a história, com a banalidade desejada, não só está bem cantada como está extraordinariamente bem contada.
Como se isto não fosse por si só surpreendente e digno de registo, no segundo disco dá ideia que o produtor Pedro Gonçalves (dos Dead Combo) tem carta aberta para cometer todas as loucuras. E comete.
É um arrasadíssimo álbum de fado experimental, com a entrada de outros instrumentos e até mesmo de eletrónica, em que, apesar da estranheza, intensifica-se o sentido dramático da história, aproximando-se mesmo de uma interpretação para teatro. Até pelo bom uso das vozes dos convidados especiais, entre outros, Camané, Ana Moura e Filipa Cardoso.
Este segundo disco não pode passar despercebido pela sua ousadia musical a nível de arranjos, e é um bom ponto de reflexão sobre o que é o fado. Quais as suas fronteiras e os seus limites? Podem e devem ser ultrapassados? Apesar dos dois discos se distinguirem radicalmente ainda que mantenham os mesmos temas, isso não quer dizer que sejam destinados a públicos distintos.
Se é verdade que para um público mais conservador o segundo disco é inatingível (talvez até chocante), para o público geral, de mentalidade mais aberta, é plausível apreciar ambas as propostas, talvez em ocasiões diferentes, mediante a disposição do dia.
Os álbuns de Camané e Aldina Duarte demonstram que no fado há uma teia de caminhos diversos, e que, aos poucos, os fadistas (e sobretudo as fadistas) libertam-se do peso da herança de Amália, e sem negarem influências e contextos, encontram a sua própria voz. E é tudo o que podemos desejar: um fado de qualidade, com propostas originais e autênticas, elevado a património da alma de quem o ouve.