Nos dias que se seguiram ao incêndio de 15 de outubro, José Tavares percorreu o rasto que o fogo deixou na região de Tondela de máquina fotográfica na mão, apontando à paisagem desoladora e à destruição da floresta. “Um registo para memória futura”, diz o designer gráfico e cenógrafo da companhia Trigo Limpo Teatro ACERT, para nos contar a história da fotografia de uma casa abandonada, a meio caminho que segue para lado nenhum, que agora integra uma coleção de 10 postais criada com um objetivo simples: passar a mensagem de que nada pode ficar igual depois dos incêndios deste ano em Portugal, e fazê-la chegar a outras pessoas.
À fotografia de José Tavares, juntam-se outras duas: a de uma flor que nasce miraculosamente na terra queimada, de Carlos Fernandes, natural do Caramulo; e a de uma árvore consumida pelas chamas, numa paisagem rodeada de eucaliptos, de Miguel Valle de Figueiredo, ex-diretor de fotografia da revista Volta ao Mundo, nascido em Tondela. “Convidámos pessoas que ou têm raízes nesta região ou colaboram com a ACERT”, explica José Tavares. É o caso da jornalista freelancer Sara Figueiredo Costa que se fez valer das palavras em dois postais. “Juntas, câmaras, municípios, governos, associações, instituições… tudo isso são espaços onde podemos e devemos entrar e perguntar pelas árvores que arderam, pelas casas que se desfizeram em cinzas, pelos animais perdidos”, lê-se num deles. Já na ilustração de Tiago Sami Pereira, a esperança vive num pequeno vaso que guarda uma flor de pétalas amarelas.

Sílvia Leão, 45 anos, faz parte dos Amanita Bunker, grupo de amigos que em novembro lançou a coleção de 10 postaiso
Uma mensagem em forma de postal
A coleção de 10 postais é uma iniciativa dos Amanita Bunker, grupo de seis amigos que partilham o gosto e o interesse por cogumelos silvestres (amanita é um fungo de chapéu vermelho e pintinhas brancas, explique-se já o nome). Para contar melhor a história, chamamos à conversa Sílvia Leão. “Participamos desde 2014 no Festival dos Míscaros de Alcaide, aldeia do concelho do Fundão, com uma banca de degustação de cogumelos silvestres, onde as pessoas podem também aprender a identificar espécies, participar em conversas à volta dos saberes populares e do conhecimento científico dos fungos”, começa por contar a enfermeira de 45 anos. “Com os incêndios, não tínhamos cogumelos para levar à edição deste ano do festival, que acontece sempre em novembro. E decidimos, por isso, montar uma cozinha na rua onde preparámos um risotto feito com cogumelos desidratados que tínhamos guardado e distribuir os postais, como forma de chamar a atenção das pessoas de que face ao que aconteceu, é preciso fazer alguma coisa. Porque os incêndios – e estes períodos de seca também – vão continuar a acontecer”, acredita. “É urgente que a sociedade repense o seu papel, que não passa só pela limpeza do terreno em volta da casa ou em fechar a torneira, enquanto lavamos os dentes”.
Sílvia Leão mora em Tondela e trabalha no hospital da cidade. Também faz acompanhamento dos alunos da Escola de Enfermagem de Viseu, e não raras as vezes cruza-se com os camiões que andam a abastecer a cidade neste último mês e meio. De Alvarim, aldeia onde nasceu e vive a mãe, conta que os bombeiros nem sequer lá conseguiram chegar. “Não morreu ninguém”, diz-nos a enfermeira que passou a noite de 15 para 16 de outubro em claro, sem nada saber da mãe e do irmão, que tinha ido em seu socorro. “Quem, com sorte, não ficou sem casa, abre a porta e só vê negro em volta. E isso é muito confrangedor. As pessoas vão demorar muito tempo a retomar a normalidade.”
No postal da autoria de Anabela Marisa Azul, bióloga e investigadora na Universidade de Coimbra, lemos “As árvores não crescem sós”. E a ilustração de Envide Nefelibata, nome artístico de Ruben Gomes, membro fundador e diretor plástico da companhia Teatro e Marionetas de Mandrágora, desassossega-nos o espírito e põe-nos a pensar. “Estou-me a cagar prò que se passa neste país. A minha casa não ardeu nem sou um labrego bronco que ficou sem galinhas e porcos. Sinceramente quero lá saber da natureza e do que ‘deixamos para os nossos descendentes’… não vou andar por cá para me preocupar com essa porra. Não é verdade?”.
Para entrar em contacto com os Amanita Bunker visite aqui a página no Facebook aqui
VISITE AQUI O SITE – “Uma Redação com o Coração no Centro de Portugal”
Vamos ter uma redação itinerante no Centro do país durante todo o mês de Novembro, para ver, ouvir e reportar. Diariamente, vamos contar os casos de quem perdeu tudo, mas também as histórias inspiradoras da recuperação. Queremos mostrar os esforços destas comunidades para se levantarem das cinzas e dar voz às pessoas que se estão a mobilizar para ajudar. Olhar o outro lado do drama, mostrar a solidariedade e o lado humano de uma tragédia. Para que o Centro de Portugal não fique esquecido. Porque grande jornalismo e grandes causas fazem parte do nosso ADN.