O Alienista, de Machado de Assis, grátis com a VISÃO desta semana
Ironia e melancolia. Foram estes os principais filtros através dos quais Machado de Assis olhou o mundo. Harold Bloom, um dos maiores críticos literários do século XX, chamou-lhe um escritor milagre pela capacidade de ultrapassar o seu tempo e a sua geografia, com as suas circunstâncias sociais, religiosas, políticas e de raça, e de ser universal ao falar da condição. O medo da morte, o amor – na sua consumação, frustração ou traição – e uma espécie de alienação face ao mundo são os seus grandes temas, tratados com uma nostalgia que contamina tudo: a de quem sabe da sua finitude. A isso, aquele que é considerado o maior escritor brasileiro de sempre, escolheu responder literariamente com uma gargalhada desconcertante e, por vezes, quase triste.
Filho de escravos libertados, Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro a 21 de junho de 1839. Cresceu pobre e nunca pode frequentar a universidade. Soube, o entanto, usar os seus dotes intelectuais para ser aceite em circuitos onde dificilmente alguém com as suas origens entraria. Aos 49 anos, quando a escravatura foi abolida no Brasil (1888), já tinha escrito seis dos seus nove romances – entre os quais Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), um dos seus romances maiores a par com Dom Casmurro (1899) –, quatro coletâneas de poesia, nove peças de teatro, muitos dos seus 200 contos, e uma vasta obra ensaística e jornalística, com destaque para a crónica e a crítica literária. Foi um escritor de todos os géneros e em todos estava o toque de Midas. “O génio da ironia ofereceu-nos poucos exemplos à altura do escritor afro-brasileiro Machado de Assis”, escreveu Bloom em Génio (Temas e Debates, 2014), sobre os 100 autores mais influentes da história da literatura, designando-o o mais ilustre seguidor, no “Novo Mundo”, de Laurence Stern, o mestre da ironia, com a sua obra-prima Tristram Shandy (1759).
Foi um inovador. O seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, onde conta na primeira pessoa a vida de um homem a partir da sua chegada à eternidade, ou seja, desde a sepultura, é precursora do realismo no Brasil e um caso excecional de domínio da linguagem e das emoções, com o escritor a interpelar muitas vezes o leitor, contaminando-o com a ironia com que a personagem olha, desde essa sua eternidade, a vida que viveu de forma quase passiva.
É uma espécie de livro-charneira na obra de Machado de Assis. Antes dele, o escritor que fundou a Real Academia de Letras do Brasil estava mais próximo do romantismo. Em livros como Ressurreição, A Mão e a Luva, Helena ou Iaiá Garcia, respeitou os convencionalismos da época para romper na segunda e brilhante fase da sua carreira. Há, assim, um antes e depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas, com o escritor a tratar com uma familiaridade desconcertante a condição mortal do Homem, usando para isso uma primeira pessoa que toma o leitor como cúmplice dos seus atos e pensamentos. Como Brás Cubas, a contar a hora da sua morte: “…Expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira de mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios. Acresce que chovia…” Classificado como um livro niilista, pela atitude passiva com que Brás Cubas viveu, o romance fez escola em grande parte por isso mesmo e por, apesar disso, criar essa intimidade com o leitor. Romancistas americanos como John Barth ou Donald Barthelme reclamam a influência de Assis, ou os brasileiros Olavo Bilac e Carlos Drummond de Andrade.
O romance mais popular de Machado de Assis, e obra a disputar protagonismo e mérito com Brás Cubas é Dom Casmurro. Publicado em 1899, é o último título da chamada trilogia realista de que faz ainda parte Quincas Borba. Nele, Bento Santiago, viaja desde a sua juventude até ao final da vida e narra os tempos no seminário e seus amores com Capitu, o ponto central do livro que terá tido influências de Shakespeare, em particular de Otelo, no modo como trata o ciúme, mas com a ironia típica de Assis. É, além disso, um fresco sobre a vida social e política do Rio de Janeiro de fim do Império que o escritor satiriza, em particular na moral e nos costumes.
O génio de Assis é propício a que se use muita adjetivação para qualificar o seu trabalho. Nada, no entanto, se sobrepõe ao prazer que é lê-lo. “Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu… Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada”; “E com uma letra bem pequena, lá estava escrito no seu epitáfio: Tentou ser, não conseguiu; tentou ter, não possuiu; tentou continuar, não prosseguiu. E nessa vida de expetativas frustradas tentou até amar… Pois bem, não conseguiu, e aqui está!”
O escritor mulato, monárquico que viveu a passagem para a República e foi casado durante 35 anos com a portuguesa Carolina Augusta, é tão contemporâneo hoje como então, mas a distância permite-nos talvez notar ainda melhor a ironia refinada e a atenção aos detalhes que fazem dele um extraordinário praticante da língua portuguesa e das suas nuances.