“Não acredito que os novos proletários possam mudar o mundo ou que o possam mudar para melhor. Não acredito na revolução”

“Não acredito que os novos proletários possam mudar o mundo ou que o possam mudar para melhor. Não acredito na revolução”

Diz ser um “velho idiota” que, “sem ilusões sobre o futuro”,  se define ideologicamente como “liberal-democrata”, porque ainda lida muito mal com as desigualdades e a pobreza. Filho de judeus polacos que sobreviveram ao Holocausto, o historiador Shlomo Sand nasceu num campo de refugiados, na Áustria, e, ainda criança, emigrou com a família para a bíblica e milenar cidade de Jafa, em Israel. Aos 16 anos, após ser expulso da escola, foi trabalhar para uma fábrica e teve a sua “primeira desilusão” com o proletariado, sentindo-se explorado pelos operários adultos. Aos 21, como soldado raso, descobriu o valor da vida e testemunhou as misérias da Guerra dos Seis Dias, em Jerusalém Oriental. Aos 25, conclui o Ensino Secundário e percebe que os estudos lhe dão oportunidades que nunca imaginara. Aos 30, já licenciado, e depois de ter participado em mais um conflito militar (Yom Kippur), está em França, com uma bolsa, e fica deslumbrado com “a revolução portuguesa e Otelo Saraiva de Carvalho”. Aos 40, doutorado e recrutado pela Universidade de Telavive, inicia uma carreira académica que lhe valeu prestígio e reconhecimento, proporcionais às polémicas por si criadas. Uma das principais ocorreu em 2008, quando publicou Como o Povo Judeu Foi Inventado, uma desconstrução de alguns dos mitos fundadores do seu povo. Há uma década, em Como a Terra de Israel Foi Inventada (Edições KKYM+P.O.R.K), critica o movimento sionista e faz saber que renunciava ao seu estatuto de judeu, em defesa de um Estado laico cujos cidadãos tenham os mesmos direitos reconhecidos, independentemente das religiões ou etnias. Durante a pandemia, escreveu a Breve História Mundial da Esquerda, uma obra, recém-chegada ao mercado português (Livros Zigurate), que é capaz de surpreender e de abalar as convicções de muita gente.

Qual foi o seu principal objetivo, quando começou a escrever este livro, em 2021, e já se faziam sentir os efeitos da pandemia?
O objetivo ou a motivação?

Ambos…
Já estou numa idade [77 anos] em que tenho de ser pragmático. Apesar de todas as tragédias que a esquerda criou ao longo da História, continuo a sentir-me de esquerda, porque, como explico logo no introdução, sempre fui a favor da igualdade. Não uma igualdade absoluta, mas é parte de mim, porque venho de uma família bastante pobre. O meu pai era estalinista, inscreveu-me no partido [do qual foi porteiro noturno, em Jafa] quando era adolescente. Já cortei com o comunismo há bastante tempo, mas as questões da igualdade… Não suporto ver as pessoas na miséria, sofro imenso com isso. Especialmente em Israel, em que a maior parte dos pobres é árabe. Diria que isto foi a motivação. E perguntava a mim próprio – que sentido faz, hoje, ser ainda de esquerda?

Qual a resposta que deu a si próprio?
Costumo passar uma parte do ano em Nice, em França. Há menos de dois anos, cruzei-me com uma manifestação contra as restrições e as vacinas, por causa da Covid-19. Estava na rua e fiquei surpreendido com aquela multidão a cantar slogans contra o Estado e a negar a doença. Fiquei chocado! Achei tudo irracional. Aqueles protestos nada tinham que ver com anarquismo, com anarcossindicalismo, com a Comuna de Paris.

Está a dizer que essas pessoas, em Nice, não podiam ser de esquerda?
Já lá vamos. Além dos slogans e das palavras de ordem, esses manifestantes tinham bandeiras francesas.

A bandeira nacional?
Sim, a bandeira tricolor. Não era uma simples coincidência. Nessa altura, Jean-Luc Mélenchon [líder da extrema-esquerda francesa] tinha já proposto um novo movimento que deveria banir as bandeiras vermelhas e da União Europeia. Esse protesto perturbou-me imenso. Nunca tinha visto nada de semelhante em Israel ‒ contra o Estado e em nome da liberdade. Foi um dos fatores que me levou a escrever o livro. Como historiador, sabia, por exemplo, que a peste negra, no século XIV, acelerou mudanças políticas e sociais. É o princípio de um novo mundo. E questionava-me, o que está a Covid-19 a acelerar? Estava um pouco obcecado.

Conseguiu resolver o problema?
Tinha já refletido sobre a esquerda e a forma como tem vindo a definhar. Um dos grandes mitos da esquerda era a igualdade, que remonta ao século XVII, no Reino Unido. Não me parece que essa noção existisse antes. Na Antiguidade, os escravos queriam livrar-se dos seus donos. No entanto, como ocorreu com Spartacus [o famoso gladiador que liderou uma revolta contra Roma, no século I a.C.], queriam emancipar-se para depois escravizarem outros.

Explica que, em hebraico, escravo [éved] tem a mesma raiz linguística que trabalhador [oved]. Quando vê ‒ em Telavive, Nice ou Lisboa ‒ pessoas com mochilas de plástico às costas, de bicicleta, a distribuir comida, considera-as escravas? Acha que são o lumpenproletariat [o subproletariado sem consciência política e de classe] de que falava Karl Marx?
No tempo de Marx, o lumpenproletariat era bem diferente do que existe hoje. Ele não tinha grande confiança nestes grupos sociais. Podemos estabelecer algumas afinidades, por não sabermos o que pretendem fazer amanhã, no futuro. Contra quem se vão virar. Pode ser contra o poder instituído, o poder do Estado, do capital. Ou podem virar-se contra pessoas que são ainda mais fracas do que eles: os imigrantes.

São todos vítimas do sistema?
Sem dúvida. Posso criticar-lhes o comportamento político, por se virarem contra os seus pares, por serem racistas, mas não os culpo por serem um produto do sistema. Os privilegiados, os que têm melhores salários, não os reconhecem ou não lhes dão oportunidades de ascender socialmente. Marx não acreditava que o lumpenproleriat fosse capaz de mudar o mundo. Eu também não acredito que estes novos proletários possam mudar o mundo ou que o possam mudar para melhor.

Por lhes faltar consciência de classe?
Ao longo da História, os mais desfavorecidos podem revoltar-se contra a ordem estabelecida, sem que isso conduza necessariamente a melhorias de vida. A esquerda viveu da utopia, de muitos mitos. Marx acertou em muitas coisas que escreveu sobre o capitalismo, mas enganou-se sobre vários aspetos.

Desde a sua fundação que Israel se comporta como uma nova Esparta. Duvido que um Estado judaico possa continuar a existir eternamente no Médio Oriente

Como assim?
Ele era um homem muito inteligente e sabia que o proletariado não era suficientemente capaz. Como é que quem não tendo o controlo das máquinas poderia controlar a sociedade, o Estado? Estava enganado. Só que o proletariado do final dos anos 90, e deste século XXI, é, digamos, mais moderado por querer igualdade sem haver uma catástrofe.

Por não defender ou não acreditar na revolução?
Nós ainda somos os filhos e os netos de Robespierre e de Lenine, da Revolução Francesa e da Revolução Russa –  ambas nos deram valores e ideais muito nobres, mas, na realidade, eram revoluções das elites. Neste mundo pós-industrial do Ocidente, o proletariado mudou completamente. E a esquerda encolheu cada vez mais.

A que se deveu o encolhimento?
Todas as dinâmicas de produtividade mudaram por completo. A estrutura de produção deslocalizou-se para o Oriente. Na Europa e nos EUA passaram a existir novas relações de força económica e política. A capacidade para unir e mobilizar grupos sociais distintos esvaziou-se. Não encontramos solidariedade nas sociedades hi-tech. Quem está no topo da pirâmide salarial não tem nenhuma solidariedade com quem está na base, com os mal pagos, com os desfavorecidos, com os imigrantes.

Permita que lhe pergunte se isso é pessimismo ‒ ou cinismo…
Não, cinismo não! Adoro a minha família, os meus netos. Após décadas a estudar fenómenos históricos, quero sublinhar o seguinte: sou pessimista sem ser fatalista.

Qual é a diferença?
Os pessimistas dizem que vamos comer merda. Os fatalistas dizem que nem isso vamos encontrar. De uma coisa tenho a certeza – se nós não lutarmos, tudo será muito pior. Vejamos o que está a ocorrer em Israel. As diferentes esquerdas perderam em toda a linha [nas legislativas de novembro de 2022]. A extrema-direita e os partidos religiosos tornaram-se muito fortes e chegaram ao poder. No entanto, no último mês, fiquei deveras surpreendido por haver tanta gente disposta a reagir a este cenário político.

Afinal, ainda há fenómenos que surpreendem e dão esperança ao intelectual subversivo ‒ como muitos israelitas classificam Shlomo Sand…
Considerar que um professor universitário pode ser subversivo é um contrassenso. A situação em Israel é tão má que muitas pessoas, que nunca se tinham envolvido em ações para mudar alguma coisa, têm muito mais força e influência do que eu, que estou velho e cansado.

O senhor é um livre-pensador provocador. Neste livro, argumenta que o nascimento da esquerda dá-se no Reino Unido, em 1649, e não em França, em 1789. E que a globalização trouxe mais igualdade em países como a China. Pretende continuar a ser um historiador-caça-mitos?
Talvez seja o meu destino. Em 1968, quando os tanques soviéticos entraram em Praga, para mim foi o fim. Deixei de acreditar nos ideais comunistas. Achei logo que era preciso destruir o mito do socialismo no Bloco de Leste.

O seu percurso pessoal teve mesmo influência neste livro…
Antes de o começar, ponderei escrever uma autobiografia, a minha mulher não deixou [risos].

O futuro da esquerda passa pelas alianças políticas de que, há quase um século, já falava Antonio Gramsci [filósofo que foi um dos fundadores do Partido Comunista italiano]?
Talvez seja possível haver mudanças através do que ele chamava de “Bloco histórico”. Desta vez, com três componentes diferentes: os assalariados de alta tecnologia (com rendimentos elevados, e que têm um papel crucial por liderarem uma área-chave, a Inteligência Artificial), os grupos com salários mais baixos e os movimentos ecológicos.

Termina o livro com uma “conclusão melancólica” e a distinguir os “pessimistas da inteligência” e os “otimistas da vontade”. Porquê?
A racionalidade coloca-me do lado dos pessimistas. Só que o desejo de um mundo melhor faz com que ainda tenha algum otimismo. Israel mostra-nos que tudo pode piorar. A mistura de nacionalismo e religião, no poder, pode ditar o fim de uma sociedade liberal e democrática. Tenho muito medo pelos árabes. E receio igualmente que haja uma guerra contra o Irão.

Há décadas que Israel, direta ou indiretamente, está envolvido em conflitos militares.
Desde a sua fundação que Israel se comporta como uma nova Esparta [cidade-estado da Grécia Antiga, conhecida pelo seu militarismo]. A estrutura da consciência nacional é espartana. Ganhamos [militarmente] todas as guerras, mas elas nunca têm fim. Acabo de escrever um novo livro sobre o assunto. Duvido que um Estado judaico possa continuar a existir eternamente no Médio Oriente. E falo de Martin Buber, de Hannah Arendt, de Gershom Scholem [todos grandes pensadores judaicos do século XX] que não acreditavam no Estado judaico.

Como é que ainda se define ideologicamente?
Liberal-socialista ou liberal-democrata, graças a Carlo Rosselli, o antifascista italiano [1899-1937] que também pertence à geração de Gramsci. No meu livro, demonstro que o liberalismo, o pluralismo político, a partilha da autoridade, a separação de poderes, são ideias que não nasceram à esquerda. São fruto da oposição da nova burguesia do século XVIII contra o absolutismo e a aristocracia.

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