“Putin está a ficar velho e frágil, e a sua grande ambição é ficar na História russa como o homem que recriou o império ou a URSS numa nova forma”

“Putin está a ficar velho e frágil, e a sua grande ambição é ficar na História russa como o homem que recriou o império ou a URSS numa nova forma”

A 23 de fevereiro, Andrei Kurkov era “apenas” um dos mais aclamados e populares escritores ucranianos, traduzido para cerca de 40 línguas. A 24 de fevereiro, dia da invasão russa, tornou-se um soldado de informação, usando a sua notoriedade para viajar pelo mundo a alertar para a situação no seu país, a manter viva a chama internacional de apoio a Kiev.

Portugal integrou este périplo, a cavalo da promoção de Abelhas Cinzentas (Porto Editora, 372 págs., €18,80), o primeiro dos seus livros traduzido para português, que conta a história de um apicultor ucraniano que não abandona a sua casa, numa aldeia na terra de ninguém, durante a guerra no Donbass. É esse o ponto de partida para uma conversa sobre o conflito, que entretanto alastrou, e sobre as relações entre os dois países, com alguém que tem uma perspetiva privilegiada – Kurkov, considerado há muitos anos um inimigo pelo regime russo e cujas obras estão banidas no país, nasceu há 61 anos em Leningrado (hoje, São Petersburgo) e mudou-se aos 2 anos para Kiev, mantendo o russo como língua materna.

Sergei Sergeich, a personagem principal de Abelhas Cinzentas, é baseado numa pessoa que tenha conhecido quando esteve na terra de ninguém, no Donbass? Ou é a representação de pessoas a tentar viver o mais normalmente possível em circunstâncias anormais?
Fui muitas vezes ao Donbass antes da guerra e, em 2015, viajei ao longo de toda a linha de frente. Sergei não foi criado a partir de um protótipo concreto. É uma imagem coletiva, um típico representante do Donbass. Na verdade, o livro não começou por ser muito bem recebido na Ucrânia porque me acusaram de ter feito dos separatistas heróis. Mas os refugiados do Donbass disseram-me que tinha mostrado a mentalidade e atitude do povo. Não quer dizer que seja uma imagem negativa ou positiva. Eles são como são.

Como é possível que aquelas pessoas vivam ali, com o medo constante da morte? Como é que alguém consegue adormecer sem saber se uma bomba lhe cairá em cima durante a noite?
Certa vez, estava em Severodonetsk, a sete quilómetros da frente de batalha, e uns amigos convidaram-me para um restaurante arménio. Lá dentro, não se ouviam as explosões. Mas, quando os meus amigos queriam fumar, vínhamos todos cá fora e, enquanto conversávamos sobre a vida, havia explosões ao fundo. As pessoas acostumam-se a viver em tempos de guerra. Lembro-me também de que as crianças de Donetsk sabiam dizer que tipo de projétil tinha acabado de explodir, a partir do som da explosão. As pessoas desta região têm uma mentalidade coletiva, como na URSS e na Rússia. São politicamente passivas e tentam integrar-se na multidão. São fatalistas. Na verdade, elas tinham de optar por um de dois medos – ficarem em casa no meio de uma guerra ou saírem de casa e tornarem-se refugiadas sem uma perspetiva de futuro, sem saber se alguém as ajudará. Quem ficou era muito apegado à sua terra e só pensava que, pelo menos ali, tinha proteção. A casa era a sua fortaleza.

O humor é uma constante nos seus romances, e Abelhas Cinzentas não é exceção. É uma maneira de transmitir o absurdo da guerra ou de trazer alguma normalidade à guerra?
O humor, nos tempos difíceis, é um remédio. Funciona como uma proteção psicológica, que ajuda as pessoas a permanecerem sãs, a não entrarem em pânico. É também um sinal de resistência. Se fazemos piadas quando a nossa vida está em perigo, mostramos que não temos medo.

É difícil encontrar humor em eventos tão trágicos?
No início da guerra, pensei que tinha perdido o sentido de humor e que nunca mais iria sorrir ou rir. Mas, lentamente, o humor regressou. Não por dentro, mas porque via muita gente que era capaz de brincar com a situação, mesmo quando se encontrava na linha de frente. O humor está a desempenhar um papel muito importante. Por exemplo, corre agora uma piada a propósito das ameaças nucleares de Putin: “Os ucranianos estão prontos para o fim do mundo? Sim, estão, e também têm planos para os seis meses depois disso.”

Muitas pessoas pensaram que a Ucrânia cairia em semanas, talvez até dias. Os ucranianos comuns assumiram o mesmo, no início?
Muitos ucranianos, sim. Mas não aqueles que foram a correr juntar-se ao exército. A parte mais ativa da população começou por acreditar que a Ucrânia sobreviveria e, depois, fez por isso. Entre 2014 e 2022, mais de 400 mil ucranianos voluntariaram-se para ir combater no Donbass, para lutar pela Ucrânia. Esses estiveram sempre prontos para esta guerra. Treinaram sempre com a certeza de que a Rússia atacaria novamente e tentaria ocupar todo o país.

Para os russos, a estabilidade sobrepõe-se à liberdade. Para os ucranianos, a liberdade é mais importante do que a estabilidade

A Ucrânia sobreviverá como nação, se perder? Isto é uma luta pela sobrevivência?
O principal inimigo dos russos é a identidade ucraniana, que é feita de história, cultura e linguagem. A identidade bielorrussa, por exemplo, praticamente já não existe, graças à Rússia e a Lukashenko, que fez o que Putin queria. A língua bielorrussa quase desapareceu, e quem a fala é considerado um membro da oposição. A língua ucraniana teria o mesmo destino se os ucranianos não tivessem resistido às tentativas russas de apagar a nossa identidade, primeiro em 2004, na Revolução Laranja, depois em 2014, na Euromaidan, e agora, em 2022. Com a guerra, o que há hoje é uma cisão profunda entre a identidade russa e a ucraniana. E a mentalidade e a língua ucranianas estão a recuperar território que estava perdido para a identidade russa e soviética.

Quais são as principais motivações de Putin para provocar esta guerra? Imperialismo? Medo de que um vizinho próspero e democrático lembre aos russos que também eles podem sonhar com o mesmo?
Tudo isso. Mas a razão principal é outra: a pandemia. Ele passou mais de dois anos isolado, no bunker, a ler coisas de chauvinistas russos como [Alexander] Dugin. E está a ficar velho e frágil, e a sua grande ambição é ficar na História russa como alguém que voltou a tornar a Rússia grande, o homem que recriou o império ou a URSS numa nova forma. Ele não quer saber dos russos que morrem na guerra nem da economia. Só quer ser recordado. Há dez anos, Putin citava frequentemente Ivan, o Terrível, um czar que toda a gente temia. Entretanto, começou a mencionar Pedro, o Grande, e eu percebi porquê: após a batalha de Poltava, onde o exército russo conquistou o Hetmanato ucraniano [território cossaco], Pedro, o Grande, assinou o primeiro decreto a proibir a literatura e a igreja ucranianas. O ódio aos ucranianos e a ideia de que eles são traidores dos eslavos russos vêm daí.

Durante muito tempo, ucranianos e russos, como povos, eram indistinguíveis aos olhos de muita gente no Ocidente. A verdade é que os ucranianos conseguiram revoltar-se duas vezes e mudar o destino do seu país, em 2004 e 2014; os russos não. Porquê?
Devido à diferença de mentalidade, que assenta na História. Os ucranianos foram independentes até 1654, quando [o líder cossaco] Bohdan Khmelnytsky pediu ajuda aos russos contra a Polónia. Esse foi o início do fim da independência. Mas, na Ucrânia, nunca houve uma família real. Os ucranianos elegiam os seus chefes de Estado, do exército, os oficiais superiores. Estão habituados a ter o direito de votar e de dizer do que gostam e do que não gostam. São também muito anárquicos. Não respeitam as regras, não respeitam sequer aqueles que elegem. A melhor prova disso é o facto de existirem mais de 400 partidos políticos registados. Para um ucraniano que queira entrar na política, é mais lógico fundar o seu próprio partido político do que juntar-se a outro. Essa é uma mentalidade diferente da dos russos, que sempre viveram em monarquias. Mesmo na União Soviética, tiveram seis secretários-gerais, cinco dos quais foram “reeleitos” até à morte. Para os russos, a estabilidade sobrepõe-se à liberdade. Para os ucranianos, a liberdade é mais importante do que a estabilidade.

Antes da guerra, uma percentagem considerável de ucranianos tinha o russo como idioma principal. É o seu caso. Isso está a mudar? As pessoas estão a passar para o ucraniano, como reação à invasão?
Uma parte dos intelectuais tem-no feito. As pessoas comuns nem por isso. São muito apegadas à sua língua quotidiana. Mas há escritores que costumavam escrever em russo a dizer que nunca mais o farão. Portanto, sim, a língua russa vai ficar mais pequena. Por exemplo, os jovens de hoje são bilingues, mas agora, se querem estar na moda, falam ucraniano. Eu, se falo com falantes de ucraniano, falo em ucraniano; de russo, em russo. Aprendi ucraniano nos tempos soviéticos, mas a minha língua materna é o russo e tenho o direito de escrever os meus livros na minha língua materna. No entanto, também já escrevi um livro em ucraniano e escrevo artigos e histórias infantis em ucraniano.

Putin disse que queria proteger os direitos dos falantes de russo, mas isso está a ter o efeito oposto…
Para começar, a maioria das vítimas civis no sul e no leste da Ucrânia, incluindo Mariupol, mortas por mísseis russos, são falantes de russo e russos étnicos. Só por isso, já há menos russófonos na Ucrânia. Além disso, a reação na Ucrânia é que agora ninguém está interessado em literatura russa ou cultura russa – podemos dizer que estão canceladas pela maioria da população jovem.

Há uma narrativa russa de que o governo ucraniano estava a violar os direitos dos cidadãos de língua russa.
A narrativa é sobre a lei estatal de idiomas e sobre educação apenas em língua ucraniana. Mas o idioma é o principal marcador com que se pode traçar a linha entre a Rússia e a Ucrânia. A língua foi protegida porque a Rússia estava a tentar apoiar narrativas pró-russas na Ucrânia, usando falantes de russo, professores de língua russa. Nos últimos 20 anos, eu próprio sugeri diferentes formas de legalização para o idioma russo. Mas nunca me senti discriminado como escritor. Os meus livros foram e são publicados em russo e em ucraniano. Ninguém foi proibido de usar o russo, mesmo com as leis que obrigavam ao uso de ucraniano em todos os documentos judiciais.

E essas medidas de proteção do ucraniano não são recentes…
Sim, começaram logo em 1991, após o colapso da União Soviética. Quando o secretário-geral do Partido Comunista da Ucrânia, [Leonid] Kravchuk, se tornou Presidente, foi implementada uma regra para preencher todos os documentos em ucraniano. E os meus pais nunca aprenderam ucraniano. Já em 1992, era eu que lhes preenchia os formulários em ucraniano. Não há nada de novo nisto.

Mesmo em Kiev, a maior parte das pessoas, no dia a dia, fala russo. É até comum uma pessoa falar com outra em russo e a resposta vir em ucraniano, e vice-versa.
Sim, é uma coisa normal em Kiev. Sempre foi assim.

Como se explica que certos círculos ocidentais, ideologicamente muito distantes da visão conservadora e tradicionalista de Putin, defendam os seus argumentos? É antiamericanismo? Nostalgia da União Soviética?
Depende. Na Índia, há muita nostalgia da União Soviética. Mas são sobretudo sentimentos antiamericanos. Para muitos, a Rússia era o antídoto para os EUA, a única força que lutava contra o domínio americano. E, claro, a Rússia financiava partidos de extrema-esquerda e extrema-direita na Grécia, em França, em Itália e em muitos outros países.

Como vê a guerra a acabar?
A Rússia pode tentar congelar a linha de frente para recuperar forças e preparar-se melhor, comprar mais armas à Coreia do Norte e ao Irão e atacar novamente. Mas a Ucrânia não vai deixar. A melhor solução seria a morte de Putin e a mudança de regime. É improvável, mas o inesperado pode acontecer. A força, na Rússia menos interessada nesta guerra, são os russos que perderam as suas contas bancárias, iates e aviões privados. Se forem estes a vencer a guerra pelo poder após a morte de Putin, a guerra será interrompida e poderá haver algum tipo de negociação. Mas se o poder cair nos serviços secretos ou nos generais do exército… Bom, esses não querem saber das sanções. São suficientemente ricos, e a sua riqueza está dentro da Rússia.

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