Válter Fonseca, 35 anos, ainda não tinha concluído o internato no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, quando, em 2018, foi desafiado a chefiar o Departamento da Qualidade na Saúde da Direção-Geral da Saúde (DGS). Ponderou durante meses, mas aceitou trocar a adrenalina do serviço de urgência, com que sonhara desde pequeno, por um gabinete com vista para a Alameda Dom Afonso Henriques, em Lisboa. O cenário, aparentemente mais confortável, tornou-se, afinal, parecido com o da medicina de emergência. Muitas das ideias que trazia ficariam congeladas, devido à pandemia Covid-19, e Válter Fonseca teve de concentrar-se na produção de cerca de 160 normas de resposta ao vírus SARS-CoV-2 e na coordenação da Comissão Técnica de Vacinação, sempre sob elevado escrutínio público. No seu gabinete, colocou uma placa em que se lê que “a dificuldade leva a destinos belos” e enquadrou-a devidamente para que a mensagem fosse percetível nas reuniões, via Zoom, com a equipa. A duas semanas de terminar o mandato, não se arrepende da escolha que fez, mas admite que o destino não é todo “belo”: falta uma visão para o sistema de saúde que seja comunicada de forma inequívoca e falta investimento nos serviços, na organização e em literacia, sempre com a preocupação da qualidade em mente, para dar confiança aos cidadãos.
Como um médico fascinado com o serviço de urgência acaba fechado num gabinete, ainda antes de terminar o internato?
Quis ser médico desde sempre, e o meu percurso foi muito linear até maio de 2018. Ainda não tinha acabado o internato no Hospital de Santa Maria, que está ligado a toda a minha carreira, como aluno, médico e professor, quando fui chamado aqui [à DGS] pelo dr. Alexandre Diniz, o antigo diretor do departamento que me sugeriu que o substituísse. Eu já trabalhava como consultor científico da DGS, mas não estava à espera. Iniciei um período de reflexão bastante prolongado, com a minha família, e acabei por decidir sair da minha zona de conforto. O primeiro ano foi mais para conhecer a equipa e estabelecer uma visão, mas em 2020 tudo mudou.
E como?
Quando um médico é confrontado com uma situação nova, a primeira ação é pegar num livro e saber o que há sobre o assunto, mas o máximo que havia escrito eram situações virais com alguma proximidade. Nunca tínhamos vivido nada assim. Durante este tempo, passámos por muitas dificuldades, e uma das maiores foi o escrutínio público das decisões que tomávamos, porque até então o normal era o processo de decisão ser protegido.
Estive envolvido sobretudo na vacinação contra a Covid-19 e no suporte à criação de normas de resposta à pandemia, que são o nosso legado para o futuro, um instrumento de transformação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que continua a carecer de investimento.
Agora, já com algum distanciamento, a equipa fez o melhor que podia com o pouco conhecimento que detinha, nos primeiros tempos da pandemia, para elaborar as normas ou, em algum momento, considera que ela pode ter-se dispersado face ao ritmo e aos olhares críticos de todo o País?
O escrutínio público pode desmotivar muito as equipas e levar as pessoas a desistir, mas isso não aconteceu. Nós tínhamos o dever de dizer a verdade, de ser isentos e de acreditar naquilo que estávamos a fazer, e isso aconteceu. Foi como pilotar um avião: há turbulência, mas o piloto mantém a rota, porque acredita que vai chegar ao destino. Produzimos mais de 160 documentos durante a pandemia, e o escrutínio também nos tornou mais exigentes.
Até quando estima que iremos pagar a fatura da pandemia?
É cedo para conseguir prever até quando. O que podemos dizer é que a nossa capacidade de gerir a pandemia é hoje muito diferente da do início e que a solução passa por nos mantermos atentos e não baixarmos a guarda, porque a pandemia ainda não acabou.
A DGS está a trabalhar na revisão das normas de utilização de máscaras, nos transportes públicos, nos serviços de saúde, e a adequar a estratégia da vacinação às recomendações veiculadas pela Organização Mundial da Saúde, na semana passada, no sentido de preparar a segunda dose de reforço da vacina para a população mais vulnerável?
A DGS, nesta fase, está preparada para os desafios do próximo outono-inverno. A forma como vamos gerir as medidas de proteção individual, como as máscaras ou os casos que vão surgir, e a estratégia de vacinação serão pilares fundamentais desse planeamento. Quanto à vacinação, a DGS apresentou a estratégia para os próximos tempos, há pouco tempo, e vamos continuar a trabalhar no sentido de proteger ao máximo as pessoas.
A virologia conquistou um papel na medicina que será fundamental no futuro?
Mais do que a questão da virologia, parece-me que temos de estar muito atentos às doenças infecciosas emergentes. A maior parte delas é viral, mas há outra área das doenças infecciosas que não pode ser esquecida e que tem um impacto muito significativo no sistema de saúde: a resistência aos antimicrobianos.
Que lições nos deixa o combate a este vírus?
A pandemia ensinou-nos que não é possível trabalhar em saúde sem conhecimentos em comunicação. Se não conseguirmos ser efetivos a comunicar, então não conseguimos implementar nada junto de ninguém. E isto é algo em que temos de apostar mais, logo no ensino pré-graduado dos profissionais de saúde.
Mas o principal legado da pandemia está em fazer diferente. Aprendemos muito, mas há uma inércia própria do sistema, às vezes das próprias pessoas, que é mais convidativa do que se ter uma atitude disruptiva. Ninguém tem dúvidas de que a saúde não pode continuar a ser gerida com as regras do passado. Não podemos deixar que a inércia fale mais alto do que um espírito disruptivo. A nossa prioridade deve ser recuperar a confiança das pessoas no sistema de saúde, sempre a pensar na qualidade.
Longas listas de espera, para consultas, exames e cirurgias, e urgências encerradas não serão o cenário ideal para se transmitir confiança. Como se altera isto?
Antes de mais, sendo transparentes e explicando qual é a nossa visão para o sistema.
Uma das críticas que mais ouvimos fazer a quem gere é a falta de visão, de um plano. Para si, existe uma visão clara?
Temos de construí-la. Acho que ainda não existe. Ainda não está totalmente decidido para onde queremos ir. No caso deste departamento, há uma visão para a qualidade da saúde; mas uma coisa é a visão do departamento, outra é a visão para o sistema de saúde. Porém, estas duas coisas não podem estar de costas voltadas. A qualidade deve ser a antecâmara de qualquer decisão em saúde.
Que caminho deveria ser seguido, na prática, para se melhorar o sistema para os cidadãos?
É verdade que a discussão entre a visão e a execução às vezes é um bocadinho teórica. Uma visão sem execução é uma alucinação, mas não podemos executar sem primeiro pensar. Claro que numa situação de catástrofe, nós entramos num comboio para onde quer que ele vá, mas normalmente entramos num comboio porque queremos que ele nos leve até ao nosso destino. Tem de haver uma comunicação clara sobre onde queremos chegar e sobre como lá queremos chegar para termos um sistema de saúde que funcione.
Para melhorar o sistema de saúde, é preciso melhorar a informação e a literacia das pessoas, implementar mudanças culturais e educacionais, em fases muito precoces da vida, ensinar como funciona o sistema e onde me devo dirigir quando tenho um problema. Aprendemos pouco sobre gestão na escola, e sobre gestão da saúde não aprendemos praticamente nada. Isto aplica-se também à formação dos graduados em saúde. Depois, não podemos olhar para a saúde como compartimentos estanques, e a tal visão para a saúde tem de ter como base os princípios da gestão da qualidade. Senão, é estar em contraciclo.
Quais são esses princípios?
A eficiência do sistema, a segurança das pessoas e os cuidados centrados no cidadão.
Na semana passada, soubemos que Portugal registou, em junho, uma taxa de excesso de mortalidade de 23,9%, a pior da União Europeia, segundo o Eurostat. Os pilares que nomeou estão a ser postos em causa? A qualidade da saúde está ameaçada?
A taxa de excesso de mortalidade é naturalmente um indicador para o qual olhamos com preocupação, mas também com a serenidade de quem sabe que as análises e as respostas não são ainda conhecidas. Por isso, a solução está em continuar a trabalhar de uma forma muito exigente para melhorarmos o mais possível a saúde das pessoas.
Que motivos poderão estar na origem deste número?
Têm sido apontadas várias hipóteses para explicar o fenómeno, mas eu tenho uma formação científica e só devo falar com conhecimento de causa. Senão também não estou a contribuir para a confiança das pessoas. Não posso dizer que motivos são esses, porque, como disse, não estão estudados.
Esta taxa tem crescido progressivamente, desde janeiro de 2021, seguindo uma rota contrária à dos outros Estados-membros da União Europeia. O estudo das causas no nosso país não deveria ser acelerado?
O mundo é hoje muito mais rápido. Isso também ficou bem patente com a pandemia: os tempos de reflexão tiveram de ser reduzidos ao mínimo possível para se garantir uma resposta. Temos todos a noção de que existe urgência na decisão, mas, para que os tempos possam ser encurtados, é preciso investir nas instituições competentes para fazer este tipo de análise. Não podemos exigir mais rapidez com os recursos que existiam numa altura em que a rapidez não era exigida.
Está a dizer que falta financiamento à DGS para fazer o seu trabalho.
Temos de ter noção de que investir na saúde é investir em cuidados no dia à dia, mas isso por si só não chega. A prestação de cuidados assenta num vasto conjunto de atividades de suporte que, se falhar, compromete os cuidados diretos. Queremos respostas mais rápidas, sim, mas não podemos perder a qualidade. Então, precisamos de mais investimento, e investimento não é só dinheiro: é recursos, equipamentos, compromisso e organização. É tornar a saúde uma prioridade.
Com esses constrangimentos, compensou sair do hospital para ocupar um cargo de gestão?
Sem dúvida que valeu a pena. A experiência deste tempo foi absolutamente transformadora para mim enquanto pessoa, enquanto gestor e enquanto médico. Nunca deixei de ser médico todos os dias em que aqui estive, desde que aceitei [o cargo], em 2018. Considero que sou uma pessoa comprometida com o serviço público. No final deste mandato, tenho uma história para contar, um legado, mas também uma vontade muito grande de fazer mais e de ter espaço para ser disruptivo. Penso que, além da pedra lançada, ficam alguns exemplos de execução concreta do caminho que eu acredito que nos pode levar a um virar de página na saúde.
Continua a encontrar espaço para ser disruptivo no SNS? Vê-se a voltar para o Santa Maria, por exemplo?
Não voltarei para o Santa Maria a partir de setembro, mas não excluo a possibilidade de regressar à prestação de cuidados diretos. Também penso que o que aprendi me obriga a colaborar num espaço e num contexto diferentes.