Professora no Institute for Global Prosperity do University College of London, Noreena Hertz tem dedicado os últimos anos da sua investigação ao tema da solidão, que, no seu entender, não só tem efeitos na saúde como também na economia e na democracia. Recentemente, publicou O Século da Solidão (Temas e Debates, 424 págs., €19,90), um ensaio que tem tanto de estimulante quanto de abrangente e que chama para a atenção da importância de conceitos como bondade, compaixão e comunidade no pensamento económico. Pare, escute e olhe.
Vivo rodeada de pessoas, em casa e no escritório, familiares, amigos e colegas. Ainda assim, posso ser uma solitária?
Claro que sim. Podemos sentirmo-nos sozinhos rodeados de pessoas. Da mesma maneira que podemos passar longos períodos sozinhos e não nos sentirmos sós, até podemos estar contentes por termos algum tempo só para nós… É possível sentirmo-nos sozinhos numa multidão de pessoas, nas cidades, por exemplo, mas também numa má relação ou num mau casamento. Solidão e proximidade com os outros não estão necessariamente correlacionadas. Porque a solidão é um sentimento, um sentimento de desconexão.
A solidão é um sentimento ou um medo, o medo de estar sozinho?
Não, penso que é mais um sentimento, um desejo de se sentir conectado. Um solitário é alguém que gostaria de se sentir ligado, alguém que deseja ser visto, alguém que se sente invisível, que não se sente ouvido, que se sente ignorado.
Que responsabilidade tem a tecnologia, que é excelente para fazermos determinadas coisas, nesse sentimento?
Quanto a isso, a investigação é muito clara: até a presença de aparelhos, que são desenhados para ser tão viciantes, como se fossem slot machines, induz o isolamento. Com eles, tornamo-nos menos ligados dos que vivem à nossa volta. Quando têm um smartphone na mão, as pessoas sorriem menos umas para as outras. Há estudos que nos dizem que, quando existe um telefone em cima da mesa de jantar, mesmo estando este desligado, um casal sente-se menos ligado, menos empático. Julgo que conseguimos, conscientemente, fazer pequenas coisas para lutar contra esta adição. Por exemplo, ao fim do dia, tento pôr o telefone em sítios onde não consigo alcançá-lo, de maneira a estar mais presente para o meu marido e para a minha família. Uma vez por semana, também costumo tirar uma sabática digital. E, se falarmos em redes sociais, é aí que vemos a real dimensão da solidão. Toda a investigação nos confirma que, por estarem nas redes sociais, as pessoas não só se sentem menos solitárias como se acham significativamente mais felizes. Cerca de 40% das pessoas dizem que estar no Facebook é tão bom quanto ir ao psicólogo.
Na sua opinião, é um mito pensarmos nos mais velhos como sendo pessoas solitárias. Afinal, não são eles os mais esquecidos nas nossas sociedades?
Claro que existe um problema profundo de solidão nos mais velhos. No Reino Unido, dois em cada cinco pensionistas dizem que a televisão ou o animal de estimação é a sua principal companhia. No Japão, o grupo demográfico que está a ir para a cadeia são os reformados: preferem estar presos a estar sozinhos. Porém, temos tendência para afirmar que os mais velhos são a geração mais solitária, e isso não é verdade. A geração em que as pessoas se sentem mais sozinhas é, na verdade, a mais nova. Quatro em cada cinco indivíduos da faixa etária 16-24 anos, no Reino Unido, sentem-se sozinhos frequentemente ou algumas vezes. Um em cada cinco millennials admite não ter um único amigo. Cerca de 50% das crianças e pré-adolescentes entre os 10 e os 15 anos confessam sentir-se sempre sozinhos ou, pelo menos, frequentemente. Estes dados são muito impressionantes. Em suma, toda a gente pode sentir-se sozinha, novos/velhos, ricos/pobres… Mas, em termos proporcionais, os mais novos são os mais solitários. E tudo isto também acontece em Portugal, apercebi-me disso quando vi os dados.
Impõe-se a pergunta sobre o impacto da pandemia nessa tendência: é mais uma das que foram aceleradas no último ano?
Há cerca de quatro anos que faço investigação sobre esta questão. Estava mesmo a acabar de escrever o meu livro quando, em março de 2020, a pandemia começou a desenrolar-se. Então, pedi aos meus editores mais algum tempo e, até ao fim de julho, cosi cirurgicamente algumas referências à Covid-19. O que me parece incrível é que eu não tive de retirar nada, as tendências já estavam identificadas: mesmo antes da pandemia, uma em cada dez pessoas já se sentia sozinha e 40% dos trabalhadores já se sentiam sozinhos no escritório.
Tem dados referentes a estes últimos meses?
No final de maio, estatísticas oficiais apontavam para que, atualmente, cerca de 50% da população se sinta sozinha.
Atribuímos demasiadas responsabilidades à pandemia?
Claro que a pandemia é a crise partilhada mais significativa que tivemos nas últimas décadas, pelo menos, no mundo desenvolvido. Mas a pandemia não pode ser a resposta para tudo, parece-me mais interessante pensarmos de que maneira é que acelerou tendências que já existiam. Acredito também que possa vir a mudar alguns aspetos. Do ponto de vista histórico, temos observado que, após crises de dimensão considerável, os governos tentaram mudar o curso das coisas. Por exemplo, no Reino Unido, depois da II Guerra Mundial, foi criado o Serviço Nacional de Saúde. Nos EUA, depois da Grande Depressão, foi implementado o New Deal. Portanto, estes momentos de crise foram usados como oportunidades para, não apenas reconstruir, mas construir melhor. É essa a minha esperança.
A resposta económica da administração Biden acalenta-lhe essa esperança?
A administração Biden está a seguir a cartilha de Roosevelt. Com o seu gigantesco pacote de estímulos fiscais, mas também com a sua agenda de mudança positiva num grande número de frentes: salários baixos, direitos laborais, alterações climáticas… Não sei como é a situação em Portugal, mas um pouco por toda a Europa temos visto governos a intervirem incrivelmente na economia. Tenho esperança de que vejam essa intervenção como um investimento verdadeiro no bem-estar dos cidadãos.
Nos últimos anos, com o neoliberalismo vigente, o foco esteve tão centrado no ‘eu’ que perdemos o sentido do bem comum
No livro, também argumenta que as políticas neoliberais das últimas décadas contribuíram para o mundo solitário que construímos. Poderão os Estados vir a desempenhar um novo papel no pós-pandemia?
Essa é uma questão muito interessante. Um dos aspetos que temos vindo a observar é, justamente, o regresso ao nacionalismo económico. Os governos dos vários países têm dado prioridade aos produtos nacionais, pressionando também as empresas para contratarem trabalhadores nos próprios países. Penso que se trata de uma nova tendência revelada pela pandemia. Há também o problema de termos renunciado, como não víamos há anos, a muitas dimensões daquilo que é a nossa liberdade. Julgo que tem de existir um trade-off entre liberdade e fraternidade. E isso também pode ser disruptivo na medida em que, nos últimos anos, com o neoliberalismo vigente, o foco esteve tão centrado no “eu” e no que “é bom para mim” que perdemos o sentido do bem coletivo, do bem comum.
O que pensa de medidas como a que, no Japão, criou um ministro da Solidão?
A experiência no Japão ainda é muito recente e por isso é difícil tirar conclusões. Mas posso falar do Reino Unido, onde há dois anos também foi criada a pasta da Solidão. Não me parece que a experiência esteja a correr bem. Em primeiro lugar, porque se trata de uma pasta muito nova, é muito complicado ter peso e poder. Em segundo lugar, por causa do orçamento, que é relativamente negligenciável. Por fim, das minhas conversas com a titular do cargo, parece-me que surgiu também o problema do alcance da própria ação.
É um cargo apenas simbólico?
Muita desta solidão é estrutural. E grande parte deve-se ao facto de, desde 2008, com a crise financeira, os governos de todo o mundo terem desinvestido nas infraestruturas da comunidade: parques públicos, bibliotecas públicas, clubes de jovens, centros de dia… Penso que os governos têm de enfrentar o problema da solidão muito seriamente, por causa dos seus efeitos na saúde. É provavelmente o nosso maior problema e não estamos a falar dele… A solidão é tão má para a nossa saúde quanto fumar 15 cigarros por dia.
Mas defende que a solidão tem efeitos na economia e na democracia.
Sim, a solidão tem efeitos na economia. Não apenas por causa do peso financeiro sobre o sistema de saúde, mas também porque trabalhadores solitários são menos produtivos, estão motivados e mais propensos à desistência.
Como acreditar que o recrudescimento da extrema-direita se deve também à falta de integração que as pessoas sentem nas comunidades onde vivem?
Quanto a isso, não tenho dúvidas. O populismo de extrema-direita é parcialmente atraente para as pessoas que se sentem sozinhas porque, hoje, os populistas de extrema-direita fomentam o sentimento de comunidade, ao contrário dos restantes partidos. Se pensarmos nas manifestações dos apoiantes de Trump, naqueles cânticos e naquelas roupas cheias de slogans, vemos como tudo aquilo cria uma espécie de teatro, uma encenação de comunidade. Se pensarmos em Salvini e na Liga Norte, observamos que eles têm encontros, jantares e usam a retórica da família na sua linguagem. Os populistas de extrema-direita têm, definitivamente, um sentido de comunidade mais eficaz do que os outros partidos.
Também tendem a ver o mundo mais hostil.
Como escrevo no livro, são como os ratos na gaiola. Quando chega um rato novo, o rato mais antigo tende a ser mais agressivo com o que está a chegar. Os populistas de extrema-direita também jogam com isso: fomentam o sentido de comunidade, mas também atuam como se o mundo fosse um sítio hostil, repelem os estrangeiros e os migrantes, fomentam o medo pelo outro.
Um dos conceitos que propõe no livro é o da bondade, que pouca relevância tem para as visões económicas mais tradicionais, digamos. Receia ser confundida com uma espécie de pregador?
[Risos.] A história da economia está cheia de pensadores credíveis que falaram sobre economia, mas também incluíram conceitos como o da bondade nos seus textos. Começando, desde logo, por Adam Smith, o pai da economia e do mercado livre que, além de ter escrito A Riqueza das Nações, também escreveu A Teoria dos Sentimentos Morais, onde falou exaustivamente da importância de cuidar dos outros, da compaixão, da comunidade. Há uma tradição de pensadores reconhecidos e inteligentes para os quais a economia não existe no vácuo. E para quem o capitalismo e o cuidar dos outros, mais do que poderem ser conciliáveis, devem ser conciliáveis. Na minha carreira de economista, fui ficando cada vez mais consciente de que ser um bom economista é compreender isto verdadeiramente.
Falta-me fazer uma pergunta, óbvia: já se sentiu sozinha?
Na escola primária, tive uma colega que, como dominava o recreio, não me deixava jogar à macaca. Senti-me muitas vezes excluída. Mais tarde, no princípio dos anos 90, logo a seguir ao fim da União Soviética, estive na Rússia, num local muito remoto onde não conhecia ninguém. Trabalhava para o Banco Mundial, numa fábrica. Como não havia hotéis, dormia num sanatório. Estava sozinha naquele edifício enorme, comia trigo serraceno três vezes ao dia e, quando queria ligar para Inglaterra, tinha de pedir a chamada com 24 horas de antecedência [risos]. Agora, ao fazer a pesquisa para este livro, fiquei muito mais consciente das minhas relações e da importância dos laços fracos na minha vizinhança. No meu dia a dia, faço questão de falar com o meu carteiro, de ir à livraria do meu bairro e de comprar lá os meus livros, de conversar com o empregado do meu café…