Os mistérios fascinaram desde sempre o ser humano, sendo, porventura, o futuro o maior deles. Longe vai o tempo em que, nas salas de cinema, milhares de jovens sonhavam com um então distante 2001, feito de naves espaciais e viagens interestelares, assinado por Stanley Kubrick. Meio século mais tarde, o futuro sonha-se de pés bem assentes na Terra, ao som das vozes de Greta Thunberg, David Attenborough, Bill Gates ou do Papa Francisco. São estes os nomes apontados por Martin Rees, cientista premiado na área da cosmologia e da astrofísica, como os agentes da mudança, os grandes influenciadores da nossa era. No seu último livro, Sobre o Futuro, Perspetivas para a Humanidade (Desassossego, 208 págs., €16,60), o cosmólogo, astrofísico e membro da Câmara dos Lordes sublinha que é urgente salvar a casa comum sem deixar os mais pobres para trás. Em entrevista à VISÃO, falou dos principais desafios que enfrentaremos até ao final do século e de que forma a Ciência e a tecnologia podem ser utilizadas para construir um futuro melhor.
Começo por lhe devolver uma questão que coloca em Sobre o Futuro. Como deveríamos responder aos desafios do século XXI e estreitar o fosso entre o mundo como ele é e o mundo em que gostaríamos de viver?
É um fosso profundo… Neste momento, com a tecnologia que temos, já poderíamos oferecer uma vida bastante decente aos 7,8 mil milhões de pessoas que habitam o Planeta e não estamos a fazê-lo: há ainda cerca de mil milhões de pessoas subnutridas a viverem na pobreza extrema no Hemisfério Sul. Portanto, trata-se de levar os políticos dos países mais ricos a perceberem que só é do seu interesse priorizar a ajuda internacional, porque, se tivermos um mundo desigual e, por exemplo, a África subsariana, onde a população ainda cresce a um ritmo muito acelerado, ficar para trás, podemos estar perante a receita para um descontentamento e perturbações generalizadas e, consequentemente, migrações em massa.
Já se começam a sentir ecos desse descontentamento?
Ao contrário do que acontecia há 100 anos, os países mais pobres têm agora smartphones e internet e já começaram a perceber o que estão a perder. Vai ser muito difícil estreitar o abismo entre as nações desenvolvidas e as que se encontram em vias de desenvolvimento, mas é do interesse dos países mais ricos assegurarem-se de que os mais pobres não ficam para trás. Para isso, basta alterarem políticas, porque a tecnologia necessária para oferecer uma vida digna a todas as pessoas já existe.
Governar o mundo hoje é uma tarefa mais complexa que no passado…
O facto de o mundo estar interligado, e de já não podermos governar um país separadamente sem nos preocuparmos com os restantes, bem como o poder, substancialmente maior, que têm hoje pequenos grupos, são fatores que tornam a administração do mundo muito mais difícil do que era no passado. Há duas questões em relação às quais nos devíamos preocupar. Uma delas é que o século XXI é único e perigoso em relação aos restantes 45 milhões de séculos que a Terra já atravessou, porque uma espécie, a humana, está a deixar uma pegada muito pesada no Planeta, que afetará o futuro do mesmo a longo prazo. A outra é que estamos a desenvolver tecnologia poderosa e, se no passado eram precisos exércitos para governar, hoje em dia, poucas pessoas suportadas por empresas de bio ou cibertecnologia podem ter muito poder e causar perturbações de grande dimensão.
Os países mais desenvolvidos têm maior responsabilidade em assegurar uma administração sustentável deste mundo?
Sim, porque, por exemplo, as emissões de CO2 existem a uma escala global e não faz sentido reduzi-las na Europa, se continuarem a ser produzidas noutros sítios. É importante assegurarmos que nações como a Índia ou continentes como África têm acesso a energia livre de carbono, porque se estes países construírem centrais elétricas a carvão exercerão grande pressão sobre todos os esforços que fizermos na Europa para atingir a neutralidade nas emissões de carbono até 2050. A fim de ajudá-los a dar este salto, é essencial que as energias renováveis custem menos do que as centrais a carvão. É por isso que penso que devíamos ter um grande programa de desenvolvimento de baterias e energia solar e eólica nos países desenvolvidos, que permitisse tornar estas energias mais eficientes e baixar o seu custo.
De forma realista, será possível descarbonizar a produção de energia nos próximos 20 anos?
Nos próximos 20 anos, acho que não. Na Europa, talvez consigamos reduzi-la para metade. Mas, mesmo assim, penso que será difícil chegar ao zero daqui a 30 anos, que foi a data apontada pela maioria dos países europeus. Em certas áreas económicas e industriais, como o combustível dos aviões ou a produção de cimento, é extremamente difícil evitar a produção de CO2. É um grande desafio, mas, de novo, conseguimos fazer mais pela redução de CO2 no mundo se ajudarmos os países mais pobres a evitarem a construção de centrais a carvão e optarem por energia solar e eólica e tornarmos as baterias necessárias para esse tipo de energia mais baratas.
Podemos depositar esperanças nos compromissos assumidos na Conferência de Paris como um caminho viável?
É um enorme desafio político, pois, a menos que a população esteja desperta para esta questão, tende a ser relutante em fazer sacrifícios para o bem de pessoas que vivem noutras zonas do mundo ou que viverão daqui a 30 ou 40 anos e sofrerão com as alterações climáticas. No livro cito o ex-presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, que diz: “Todos sabemos o que fazer; só não sabemos como nos reeleger depois de o termos feito.” É difícil, mas necessário, incentivar o eleitorado a ser altruísta, porque, se não cortarmos as emissões de CO2, há o risco de os nossos filhos e netos chegarem ao final do século tocando o ponto de inflexão a partir do qual há consequências verdadeiramente catastróficas no clima.
Como se consegue consciencializar o público ao ponto de este se interessar?
É muito importante ter figuras carismáticas globais, capazes de pôr este assunto na agenda política dos países. O Papa Francisco, David Attenborough, Bill Gates e Greta Thunberg têm todos, cada um à sua maneira, tido enorme impacto, porque são figuras respeitadas, com uma influência global, e o facto de publicitarem a causa afeta milhões de pessoas. É também importante ouvir e apoiar os protestos das pessoas mais jovens e não concentrar todos os esforços apenas no que irá acontecer até 2050, porque as crianças de hoje, provavelmente, gostariam de ainda estar vivas no final do século. É essa a forma correta de pensar.
No livro faz referência a algumas imagens icónicas, como a de um albatroz a regurgitar plástico, que sensibilizaram o público para a causa ambiental. Acredita que dentro em pouco possamos encontrar imagens dessas, mas com refugiados climáticos?
Acontecerá de certeza. O problema irá agravar-se, sobretudo, em zonas da África subsariana. A Ciência não consegue ainda prever exatamente de que forma mudará o clima, porque a subida da temperatura média da Terra em 1,5ºC ou 2ºC é apenas um indicador global, mas, se o clima mudar muito rapidamente, coloca ainda outras preocupações como a perda de biodiversidade.
Essa perda pode agravar o problema da fome mundial?
Se quisermos alimentar os 9,5 mil milhões de pessoas que existirão em 2050, temos de encontrar uma forma que não passe por usar mais solo. Será essencial desenvolver aquilo que apelido de intensificação sustentável da agricultura, usando menos água e aplicando tecnologias que permitam melhorar a produtividade de forma sustentável, como as plantações geneticamente modificadas. Também teremos de mudar ligeiramente a nossa dieta, evitando o consumo de carne e até substituí-la, no futuro, por carne criada artificialmente.
Outra questão que tem preocupado líderes políticos é o surgimento de novas pandemias. Quando escreveu o livro, em 2018, já afirmava que uma pandemia global poderia levar à quebra da ordem social. A pandemia da Covid-19 poderia ter sido evitada?
Sim, se estivéssemos estado mais bem preparados. Teria sido tudo muito menos catastrófico se tivéssemos planeado, e devíamos tê-lo feito, porque, como diz o ditado: “O desconhecido não é o mesmo que o improvável.” Em Inglaterra, e acredito que em Portugal também, não estávamos de todo preparados. Talvez estivéssemos, em parte, prontos para responder a uma pandemia de gripe, mas não tínhamos os materiais de proteção, a resposta hospitalar nem as técnicas avançadas de produção de vacinas que as características específicas de uma pandemia causada por coronavírus implica. Estima-se que, desde que surgiu até daqui a cinco anos, esta pandemia custe ao mundo cerca de 20 triliões de dólares, sem contabilizar o peso de milhões de vidas humanas perdidas e as repercussões a nível de produção. Teria valido a pena gastar algumas centenas de milhares de milhões a preveni-la. Foi um alerta para toda a gente em relação a este tipo de catástrofes, mas, a partir de agora, deveríamos estar também atentos, no geral, a ataques globais desencadeados por indivíduos mal-intencionados, munidos de tecnologia de ponta; aos ciberataques, capazes de deitar abaixo a energia elétrica de um país e de comprometer as comunicações, à possibilidade de um fanático modificar vírus e torná-los mais perigosos, matando milhares de milhões de pessoas.
É do interesse dos países mais ricos assegurarem-se de que os mais pobres não ficam para trás. Para isso, basta alterarem políticas, porque a tecnologia para oferecer uma vida digna a todas as pessoas já existe
Como assegurar que isso não acontece?
É muito difícil, porque não é como construir uma arma nuclear, que precisa de instalações grandes e complexas, fáceis de monitorizar. São coisas que podem ser feitas em laboratórios, que existem em fábricas e universidades. Portanto, se queremos evitar estes riscos, haverá uma grande tensão entre preservar a nossa privacidade, a nossa segurança e a nossa liberdade.
Teremos de sacrificar a liberdade em nome da segurança?
Se queremos assegurar que ninguém está escondido algures a fazer algo terrível, teremos de abdicar da nossa privacidade e ter toda a gente monitorizada. Cada país fá-lo-á à sua maneira, mas será definitivamente uma questão, por causa deste novo mundo em que vivemos, onde até um pequeno grupo de pessoas tem o poder de fazer algo com repercussões em todo o Planeta. De resto, é algo que já está a acontecer. Neste momento, se os chineses quiserem ter uma economia completamente planeada, como aquela sonhada por Karl Marx, já a podem ter, pois possuem o sistema financeiro mais automatizado do mundo. Os computadores e a Inteligência Artificial (IA) conseguem processar a informação resultante da monitorização que fazem a todas as transações financeiras dos cidadãos e o conhecimento que têm do stock de cada loja.
Quais os maiores perigos e benefícios desta Inteligência Artificial?
Penso que os benefícios são a capacidade de gerir sistemas complicados, como a rede elétrica de um país ou o sistema de tráfico de uma cidade, e de lidar com grandes quantidades de dados, fazendo descobertas ao procurar pequenas correlações entre os mesmos. Mas temos de ter muito cuidado quando deixamos decisões importantes nas mãos da IA sem uma boa supervisão humana, como definir quando alguém pode ser libertado da prisão ou quem deve ser submetido a uma cirurgia. É que os computadores só aprendem olhando para milhares de exemplos de algo e, no que respeita ao comportamento humano e ao senso comum, não conseguem aprendê-los a observar seres humanos reais.
Por outro lado, graças a isso alguns empregos estão a salvo da IA…
Os empregos em que o elemento humano é crucial, como os cuidadores de idosos, professores e zeladores de parques públicos. Se as pessoas que trabalham em call centers ou nos armazéns da Amazon, empregos que provavelmente serão perdidos para a IA, puderem passar a ter ocupações como estas, será benéfico para todos. O problema é que, atualmente, este tipo de emprego é mal pago e associado a um baixo estatuto, o que está completamente errado, pois no futuro ninguém quererá ser cuidado ou educado só por robôs… mnogueira@visao.pt