São as certezas que nos atraem, não as dúvidas. Estas, pelo contrário, obrigam-nos a pensar, exigem-nos muito esforço. E é por isso que, habitualmente, os seres humanos se ficam por aquilo que tomam por certo. Assim explica Victoria Camps a dificuldade que temos em nos questionarmos. Decidiu escrever Elogio da Dúvida, que acaba de sair em português com a chancela das Edições 70, porque vivemos numa época de “posições extremistas”, “pouco ponderadas”, próprias de quem não questiona as suas crenças. “Não é uma atitude de pessoas ilustradas e maduras”, resume em entrevista à VISÃO a filósofa catalã que foi senadora independente pelo PSOE e que, desde 2018, assume funções como conselheira de Estado permanente. À beira de completar 80 anos de vida, Victoria Camps ajuda-nos a pensar o tempo presente, o que, na sua opinião, passará por mudarmos as nossas prioridades coletivas. E para compreender o negacionismo, diz ainda, há que ler o que Nietzsche escreveu sobre o ressentimento. Voltemos à filosofia, portanto.
A pandemia do novo coronavírus obrigou-nos a lidar com a imprevisibilidade. Ensinar-nos-á também a duvidar mais vezes de nós próprios, como aconselha no seu livro, Elogio da Dúvida?
Gostaria de poder dizer que será esse o caso, mas deixe-me começar por duvidar da nossa capacidade de aprender com situações de crise, como a que estamos a viver. O lógico e o racional seria verificarmos que, após esta experiência catastrófica a vários níveis, ficaríamos menos arrogantes e mais humildes no que diz respeito ao que sabemos e aos limites da nossa preparação para fazer face a situações inesperadas.
Porque é tão pessimista quanto aos efeitos da pandemia no comportamento dos humanos?
A avaliar pelo que os historiadores nos contam, ao longo dos séculos, as pandemias nunca causaram grandes mudanças no comportamento das pessoas. Sim, houve alterações ao nível da investigação em saúde, em termos de higiene, vacinas e tratamentos vários. Os meus avós viveram a chamada gripe espanhola que foi devastadora. Nunca os ouvi explicar ou recordar nada a propósito desses tempos. Além disso, depois da pneumónica, vieram os “loucos anos 20”, uma espécie de euforia com o objetivo de esquecer tudo o que se tinha vivido. Por outro lado, é preciso termos presente que o comportamento humano muda muito lentamente. Julgo que é mais fácil legislar do que transformar a mentalidade, as atitudes e o modo de ser das pessoas.
De forma sucinta, o que é duvidar?
Dediquei toda a vida à filosofia que alguns definem como “o exercício da dúvida”. Refletir é não dar nada como certo nem como seguro, exceto o mais óbvio que, geralmente, é também o mais trivial. O que me levou a escrever este livro [Elogio da Dúvida] foi o facto de estarmos a viver numa época em que proliferam os extremismos. As posições extremistas são pouco ponderadas, aqueles que as defendem partem de crenças ou de dogmas de fé que não questionam. Não é uma atitude de pessoas ilustradas e maduras.
A dúvida revela mais a nossa força ou a nossa fragilidade?
A dúvida só ocorre se aceitarmos a nossa fragilidade e a nossa incerteza; se não rejeitarmos o facto de que somos seres limitados em tudo, nem omnipotentes nem omniscientes, e que muitas vezes erramos e que desconhecemos muitas coisas. Por isso, concordámos e estabelecemos que a democracia é o melhor regime político, uma vez que consiste em partilhar pontos de vista parciais, em ouvir opiniões diferentes das nossas e em tomar decisões conjuntas.
Em que ponto da História, perdemos essa capacidade de nos questionarmos? Ou nunca a tivemos? Deveria a disciplina de Filosofia estar mais presente nas escolas?
A capacidade de questionar o que se pensa, ou o que se faz, está ligada ao exercício da dúvida. O que acontece é que somos atraídos por certezas e não por dúvidas. Com as certezas, não temos necessidade de pensar. Já as perguntas obrigam-nos a pôr pontos de vista em contraste, a ouvir outras opiniões, implicam muito esforço. Sim, os filósofos costumam defender que o ensino da Filosofia não deve ser diminuído ou eliminado, como tem vindo a acontecer de há uns anos para cá. O problema é que temos sido ignorados. Na minha opinião, não é apenas a Filosofia que não deve ser eliminada do ensino. A cultura, de um modo geral, não sendo uma panaceia, dá-nos armas para enfrentar a brutalidade que todos carregamos cá dentro.
Nesta época de extremismos a que fez referência, quase que deixou de haver lugar para o bom senso e para as opiniões razoáveis e moderadas. Na sua opinião, como chegámos até aqui? E, sobretudo, como saímos daqui?
Existem muitas teorias sobre o surgimento dos populismos que, depois, se manifestam em posições extremistas. Uma explicação que, creio, é convincente é a da ausência de lideranças fortes que se atrevam a enfrentar as complexidades das crises sem as esconder, em vez de assinalar culpados de uma forma demagógica. A imigração, o Islão e os movimentos emancipatórios têm sido vistos como bodes expiatórios de todos estes problemas. Como vamos sair daqui? Sairemos desta polarização ouvindo o amplo setor dos que se sentem menos cuidados, daqueles que têm perdido mais poder de compra e que têm visto as suas expectativas defraudadas.
Em seu entender, é esse o poder das redes sociais? Ou estas produzem, sobretudo, um ruído ensurdecedor?
As duas coisas. As redes sociais democratizam, porque tornam visível aquilo que é invisível, o que pode ser um instrumento eficaz de distorção e de desconforto para governos despóticos ou em decisões antidemocráticas. Estamos a ver este aspeto, por estes dias, na Rússia, com o movimento que surgiu em torno da oposição de Alexei Navalny. Ao invés, o facto de se ter feito das redes sociais o espaço preponderante da comunicação política empobreceu e simplificou o discurso. Os tweets não são o meio de comunicação adequado para transmitir informação num momento tão complexo como o nosso.
No seu livro, recorda também que os gregos entendiam o populismo e a demagogia como uma forma de declínio e de decadência da democracia. A seu ver, é o que se passa?
Sim, estou de acordo com a perspetiva de olhar para o populismo como pura demagogia, deterioração da democracia. Por isso, é preciso ignorar os ultras, evitar que estes arrasem nos atos eleitorais. Os partidos políticos deviam esforçar-se mais por mostrar às pessoas a diferença entre o discurso construtivo e as proclamações incendiárias que só procuram o confronto.
Do seu ponto de vista, qual a capacidade da União Europeia (UE) e da maioria dos seus países para responder politicamente à pandemia?
Na minha opinião, a UE respondeu melhor a esta crise do que à recente crise financeira ou a outros problemas, como o movimento migratório. Procurou a unidade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) mostrou a mesma perplexidade e igual falta de prevenção dos governos, mas alcançou-se a unidade e a generosidade na prestação das ajudas económicas, o que foi difícil. O esforço para gerir a distribuição das vacinas não as deixará à mercê dos interesses do mercado, o que também é apreciável, embora haja falhas. Acredito que, nesta questão, a UE superou a maioria dos Estados-nação.
No próximo domingo, 14, vão realizar-se eleições na Catalunha. Que expectativas tem, nomeadamente, em relação ao processo de independência?
Não tenho grandes expectativas porque, uma vez mais, o panorama é complexo e está tudo muito fragmentado. A política e a sociedade ainda estão divididas, quase nada mudou desde que começou o maldito procés de independência. Não quero vaticinar, mas adoraria que houvesse uma surpresa e uma mudança real. Parece-me difícil haver agora pactos viáveis, a partir de posições ainda pouco flexíveis para que se aceite algo do adversário, olhar para o que se tem em comum. Também não quero ser pessimista, acho que acabaremos por ultrapassar esta fase paralisante que, nos últimos dez anos, temos vivido na Catalunha. Mas talvez tenhamos de esperar mais algum tempo…
Sempre se interessou pelos temas do feminismo e do papel das mulheres. O efeito das políticas de género está esgotado?
As políticas de género continuam a ser de uma necessidade inescapável (aqui não há dúvida de que vale a pena). Sem políticas de conciliação, por exemplo, as mulheres continuam a ser as cuidadoras das crianças, dos doentes e dos idosos, e com o que isso representa como obstáculo à efetiva emancipação. Devemos distribuir muitas tarefas com justiça e continuar a insistir que o privado é político, como dizia o slogan dos anos 70 do século passado.
Qual a sua opinião sobre o movimento #MeToo?
Acho que foi um marco importante no movimento feminista, sobretudo quando parece praticamente impossível acabar com a violência de género no século XXI. O movimento #MeToo despertou as consciências para uma forma de dominação masculina que se encontrava, como tantas outras, naturalizada. Graças a essas denúncias, muitas mulheres sentem-se hoje livres para dizer o que sofreram em silêncio. O assédio sexual não era visto como tal, pura e simplesmente, porque não tinha nome.
Sem querer fazer futurologia, até porque convém duvidarmos da nossa capacidade de prever, como gostaria que a Humanidade ficasse marcada por esta pandemia?
Tudo dependerá do tempo que durar a memória da pandemia e do que ela significou para cada um. Da minha parte, já ficaria feliz se a pandemia servisse para mudar as prioridades coletivas, pondo em primeiro lugar o que se revelou realmente valioso e necessário: um sistema de saúde público sólido, recursos para a investigação científica, uma maior preocupação com as consequências das alterações climáticas, um efetivo interesse político e social na redução das desigualdades, um verdadeiro debate sobre as misérias do envelhecimento e como enfrentá-las. Enfim, a lista é longa, e podia ainda acrescentar mais questões. O que é evidente (e para as classes dirigentes isto devia ser claro) é que o estilo de vida consumista, individualista e predatório da Natureza devia sofrer uma reviravolta radical.
Ficou também amplificada a nossa empatia (ou a falta dela) em relação aos outros? Faz sentido recorrer a posições originais, como o célebre “véu da ignorância”, preconizado pelo filósofo John Rawls?
Acredito que a pandemia nos tornou muito conscientes de nossa interdependência, da necessidade, do dever de cuidar uns dos outros. Deveria ser essa a nossa realidade – não o “véu da ignorância” irrealizável de Rawls – que nos levaria a mudar o nosso paradigma, isto é: a passar do individualismo para um sentido de responsabilidade pelo que nos acontece a todos, pela deterioração ecológica e por aí fora…
Num tempo tão avançado do ponto de vista científico e tecnológico, não é absurdo que ganhem força movimentos negacionistas que desprezam todo esse progresso civilizacional?
Julgo que se trata de uma posição estritamente ideológica, que pretende responder à necessidade de oposição ao pensamento dominante. É tão irracional acreditar em teorias da conspiração, dizer que o vírus foi uma criação chinesa, que as vacinas fazem mal, que as alterações climáticas não existem… Todo este absurdo só se explica através da vontade de confronto e do ressentimento. Nietzsche explicou muito bem como o ressentimento levou, no caso do Cristianismo, à transmutação de valores, a partir da fraqueza de quem precisa de negar o outro para se afirmar. É isso que eu acho que o negacionista faz.