Cientista especializado em alterações climáticas e professor na Universidade de Loughborough, estava integrado numa expedição com dezenas de exploradores organizada pela National Geographic em 2019, para perceber melhor como as alterações climáticas estão a afetar os glaciares daquela região e, por arrasto, os recursos hídricos de que milhões de pessoas dependem. Numa entrevista por videochamada, Matthews fala-nos da dureza da subida e de deixar de sentir a ponta dos dedos, mas também do surpreendente conforto perto do topo. Apesar de climas extremos serem o coração da sua investigação, estas foram as condições mais hostis que enfrentou. O documentário desta aventura – Expedição Everest – estreou-se a 13 de julho e terá repetições regulares no National Geographic.
O que leva alguém a fazer algo tão louco como escalar oito mil metros para instalar uma estação metereológica?
A estação meteorológica fazia parte de um esforço muito mais alargado, com muitos cientistas que iam estudar o monte Everest. Havia uma equipa de mapeamento, uma de geólogos, uma de glaciólogos, uma de biólogos e de meteorologistas. Prentendíamos instalar as estações meteorológicas porque queríamos perceber como é o clima do Everest verdadeiramente e como poderá estar a responder ao aquecimento global. Isso permite-nos saber como está a ser a resposta numa escala maior. Há muita neve e gelo no Everest e nos Himalaias e há centenas de milhões de pessoas que dependem dessa água. Portanto, é importante, até de uma perspetiva de recursos, saber como os glaciares estão a responder.
Quão duro foi? Pelo que li, chegou a ficar doente.
Sim, houve muitas dificuldades para chegar àquela altitude. O nível baixo de oxigénio é um problema e, no nosso caso, havia proximidade com outros membros da equipa, transmitindo doenças normais uns aos outros. Infeções respiratórias são muito comuns naquela parte do mundo. A famosa “tosse Khumbu” é algo que muitos apanham a tentar escalar o Everest. O clima seco e a proximidade uns dos outros são aspetos muito negativos. Ficámos doentes e a pressão adicional da elevação faz com que o corpo não recupere tão rápido. É muito comum para quem sobe o Everest ter de lidar com isso e a nossa expedição não foi diferente.
Havia a hipótese de não chegarem ao topo. Qual era a probabilidade?
Muitas pessoas já estudaram isso. De memória, acho que a probabilidade de chegar ao cume é entre 20% a 30%…
Foi o sítio mais duro onde já fez investigação?
Sim, diria que sim. Já tive muito frio noutros sítios no Ártico, nos glaciares. Muito, muito frio. Mas isto é diferente. É interessante, porque as mesmas temperaturas podem ser mais exigentes no corpo devido à falta de oxigénio. Pode apanhar temperaturas frostbite [ulcerações provocadas pelo frio], que não seriam necessariamente um problema ao nível do mar. O corpo está sob mais pressão.
Que tipo de informação já conseguiram recolher desde que instalaram a estação?
Estamos a receber os dados meteorológicos e estamos a registá-los regularmente. Já aprendemos algumas coisas com essas estações. Parece que há derretimento muito, muito alto no Everest, devido à luz solar ser muito intensa. É muito soalheiro. Não tem muita atmosfera acima de si. Os montanhistas percebem isso com o calor que sentem quando estão a caminhar. A temperatura do ar é baixa, mas parece estar mais quente. O gelo e a neve reagem a isso e derretem, mesmo quando a temperatura está abaixo de zero. Descobrimos isso para já. Outra história mais local é que temos avaliado como as previsões meteorológicas se comportam. Isso é muito importante no Everest para os montanhistas, que estão muito expostos ao mau tempo. Os ventos fortes podem ser mortíferos.
É quase uma perspetiva de astronauta.
Exato. E as previsões meteorológicas parecem estar a fazer um bom trabalho. Podemos dizê-lo agora porque sabemos o que realmente se passa na montanha.
O que está mais entusiasmado para descobrir através dos dados dessas estações?
Continuamos a receber novos dados, mas o que mais me entusiasma é continuar a analisar aquilo que já temos. O que estamos a fazer agora é analisar quanto derretimento ocorre nos glaciares da região e perceber quão sensível é ao aquecimento continuado. Isso é muito entusiasmante. Nos próximos meses haverá monções, em que teremos muita neve e muito derretimento. Será uma altura do ano muito agitada em termos meteorológicos. Muito mais quente e com muito mais neve. Neve, trazendo recursos aquíferos lá para cima, e temperaturas mais quentes a derreter o gelo e a neve. Saber como esses dois processos se relacionam é muito importante para perceber quanta água fica disponível a jusante. É muito importante para nós saber de que forma as monções progridem.
No documentário, fiquei espantado com o número de pessoas que estavam a tentar escalar o Everest, obrigando-vos a parar. Tem sido escrito muito sobre isto. Sentiram que era um problema no terreno?
Sim. E o problema é que era muita gente num curto período de tempo. Com outro clima, o mesmo número de pessoas poderia ter subido até ao cume e voltado sem problemas. Mas as condições meteorológicas fizeram com que toda a gente se tenha concentrado em apenas alguns dias para tentar chegar ao topo. No Everest, não há muitas cordas para subir. Se houver pessoas que andem mais devagar – o que acontece quando há muita gente –, desloca-se ao ritmo da pessoa mais lenta do grupo. Quanto mais gente houver, mais devagar andará. Isso foi um problema, atrasou-nos bastante. Mas apenas afetou o nosso trabalho no dia em que fomos até ao balcony [“a varanda”, uma zona da montanha]. De resto, foi apenas ficar com as mãos frias à espera na fila.
Não se imagina muito ficar-se parado numa fila no meio do Everest.
Sim, já se escreveu sobre isso e já aconteceu antes. Mas este ano foi uma má coincidência por causa do clima. É interessante: estávamos a instalar estações meteorológicas e foram as condições meteorológicas que tornaram a subida mais desafiante.
Que lições aprendeu ao escalar uma montanha tão alta? O que não sabia?
Duas coisas. Uma negativa e uma positiva. A negativa é o impacto da temperatura do ar no corpo. Tive um pouco de frostnip [fase inicial de frostbite, que não envolve lesões permanentes] nos meus dedos e orelhas. Em comparação com temperaturas baixas que já senti antes, neste caso, o nível baixo de oxigénio significa que não se consegue lidar tão bem com isso. Surpreendeu-me quão suscetível se é a ferimentos devido ao frio nessas altitudes. Percebi isso sentado na minha tenda, quando deixei de sentir a ponta dos dedos e perdi alguma pele. Não houve danos…
Assustou-se?
Não muito. Todos já tivemos as mãos frias. Parece isso, mas dura mais tempo. Essa foi uma das lições. Lá em cima, não se pode deixar isso acontecer. A surpresa positiva é quão confortável se está a oito mil metros. Ficámos muito surpreendidos no Camp 4 [último acampamento da subida], quando pensávamos que estaríamos apenas em modo de sobrevivência, mas estava-se bem. Podemos tirar a máscara de oxigénio, sentarmo-nos, era confortável. Dormia-se bem (com oxigénio). Se se preparar bem, estiver aclimatado e com oxigénio para quando não se estiver a sentir bem, está confortável. Confortável, claro, em termos relativos. Mas não era assim tão mau.
A sua investigação sobre alterações climáticas concluía que os humanos poderiam já não ser capazes de viver em algumas regiões do mundo porque estas são demasiado quentes. Como é que isso funciona e de que regiões estamos a falar?
Sim. Essa investigação não pretendia dizer que há zonas que atualmente já não são habitáveis. Queria, isso sim, sublinhar que existe um ponto a partir do qual as temperaturas e a humidade atingem um nível que o corpo humano não aguenta. Não suporta em segurança essas condições. Vai aquecer lentamente e, se deixado nesse ambiente, será demasiado quente e mesmo pessoas saudáveis podem pagar um preço. O corpo não aguenta essas condições no longo prazo. Não importa quanto se sua ou a velocidade a que o vento sopra. É demasiado quente. Pensava-se que essas condições nunca tinham sido atingidas em nenhum ponto da Terra nos últimos dez mil anos, quando a ocupação do mundo pelos humanos realmente disparou. A investigação que publicámos este ano olha para registos meteorológicos muito detalhados, com dados horários em muitas zonas do mundo. E concluímos que já houve algumas horas em que a temperatura subiu acima desse limiar. A temperatura de bulbo húmido [wet bulb temperature] é o calor que se sente quando se toma em conta o suor. Nós concluímos que o valor crítico é 35 graus e que ele já foi ultrapassado algumas vezes no Golfo Pérsico e no Paquistão. Outras investigações já tinham descoberto que, se mais aquecimento ocorrer, podemos esperar que essas condições se espalhem para outras zonas maiores do mundo, o que pode ter um enorme impacto, principalmente se essas condições se observarem em grandes cidades, em regiões como o Sul da Ásia.
Poderá esse aquecimento levar a migrações em massa ou, em alternativa, a um gigantesco consumo de energia?
A questão energética é um bom ponto. É o nosso último recurso para lidar com o calor extremo: ir para dentro de casa e ligar o ar condicionado. Isso resulta, mas traz dois problemas: deixa-nos muito expostos a falhas de energia, que podem ocorrer devido a vagas de calor, com muitas pessoas a ligarem as coisas ao mesmo tempo, e a desastres naturais, como cheias e furacões, que podem destruir fontes de energia. Em segundo lugar, exige um enorme consumo de energia. As projeções são assustadoras, quando olhamos para quanto seria necessário para eliminar a nova pressão do calor face ao que já temos atualmente. Estamos a falar de adicionar o equivalente ao consumo energético de Europa, EUA e Japão. Só para lidar com o aquecimento adicional que aí vem. Também podemos ligar isto ao Everest, que é um sítio limite. É o ponto que liga toda a minha investigação. Há pessoas que vivem perto do limite. O cume do Everest está próximo do limite daquilo que o corpo humano aguenta sem oxigénio adicional. Acerca das migrações, não consigo comentar. É muito complicado. Será potencialmente uma consequência, mas não sei como a Humanidade irá lidar com este problema. Sei é que há problemas.
Em relação à pandemia da Covid-19, inicialmente escreveu-se muito sobre como ela poderia afetar as alterações climáticas, existindo até um discurso algo “otimista” acerca dos seus efeitos nessa área. Os dados mais recentes parecem moderar essas expectativas. O que diria que a pandemia nos está a mostrar?
É uma pergunta muito boa. Em relação ao lado prático do confinamento, os níveis de CO2 na atmosfera – que é aquilo com que estamos preocupados – estão sempre a aumentar. É como abrir a torneira de uma banheira. Durante o confinamento, o que fizemos foi desacelerar esse fluxos. Continuamos a acumular água no banho e CO2 na atmosfera, mas reduzimos o ritmo de crescimento. O ponto positivo que podemos tirar disto é que a ação concertada dos nossos líderes pode levar a uma atuação coordenada e muito rápida. Vimos isso em relação à proteção da saúde das pessoas durante o confinamento. Quando se discutem alterações climáticas, estamos a falar de proteger a saúde e o rendimento das pessoas no futuro, portanto a motivação é a mesma. Se houver clareza sobre os objetivos, as pessoas podem unir-se e agir em conformidade. Precisamos que isso aconteça na recuperação desta pandemia.
A pandemia pode fazer com que as alterações climáticas deixem de ser prioridade?
Estou preocupado que nos concentremos mais na recuperação rápida da economia. A necessidade de fazer isso de uma forma que nos ajude a chegar rapidamente à neutralidade carbónica talvez não esteja a receber a prioridade que devia. Estamos num limbo. Existem motivos de otimismo, mas apenas o tempo nos poderá dizer [para que lado iremos].