“A surpresa positiva é quão confortável se está a oito mil metros”

(National Geographic Society/Mark Fisher)

“A surpresa positiva é quão confortável se está a oito mil metros”

Cientista especializado em alterações climáticas e professor na Universidade de Loughborough, estava integrado numa expedição com dezenas de exploradores organizada pela National Geographic em 2019, para perceber melhor como as alterações climáticas estão a afetar os glaciares daquela região e, por arrasto, os recursos hídricos de que milhões de pessoas dependem. Numa entrevista por videochamada, Matthews fala-nos da dureza da subida e de deixar de sentir a ponta dos dedos, mas também do surpreendente conforto perto do topo. Apesar de climas extremos serem o coração da sua investigação, estas foram as condições mais hostis que enfrentou. O documentário desta aventura – Expedição Everest – estreou-se a 13 de julho e terá repetições regulares no National Geographic.

O que leva alguém a fazer algo tão louco como escalar oito mil metros para instalar uma estação metereológica?
A estação meteorológica fazia parte de um esforço muito mais alargado, com muitos cientistas que iam estudar o monte Everest. Havia uma equipa de mapeamento, uma de geólogos, uma de glaciólogos, uma de biólogos e de meteorologistas. Prentendíamos instalar as estações meteorológicas porque queríamos perceber como é o clima do Everest verdadeiramente e como poderá estar a responder ao aquecimento global. Isso permite-nos saber como está a ser a resposta numa escala maior. Há muita neve e gelo no Everest e nos Himalaias e há centenas de milhões de pessoas que dependem dessa água. Portanto, é importante, até de uma perspetiva de recursos, saber como os glaciares estão a responder.

Quão duro foi? Pelo que li, chegou a ficar doente.
Sim, houve muitas dificuldades para chegar àquela altitude. O nível baixo de oxigénio é um problema e, no nosso caso, havia proximidade com outros membros da equipa, transmitindo doenças normais uns aos outros. Infeções respiratórias são muito comuns naquela parte do mundo. A famosa “tosse Khumbu” é algo que muitos apanham a tentar escalar o Everest. O clima seco e a proximidade uns dos outros são aspetos muito negativos. Ficámos doentes e a pressão adicional da elevação faz com que o corpo não recupere tão rápido. É muito comum para quem sobe o Everest ter de lidar com isso e a nossa expedição não foi diferente.

Havia a hipótese de não chegarem ao topo. Qual era a probabilidade?
Muitas pessoas já estudaram isso. De memória, acho que a probabilidade de chegar ao cume é entre 20% a 30%…

Foi o sítio mais duro onde já fez investigação?
Sim, diria que sim. Já tive muito frio noutros sítios no Ártico, nos glaciares. Muito, muito frio. Mas isto é diferente. É interessante, porque as mesmas temperaturas podem ser mais exigentes no corpo devido à falta de oxigénio. Pode apanhar temperaturas frostbite [ulcerações provocadas pelo frio], que não seriam necessariamente um problema ao nível do mar. O corpo está sob mais pressão.

Que tipo de informação já conseguiram recolher desde que instalaram a estação?
Estamos a receber os dados meteorológicos e estamos a registá-los regularmente. Já aprendemos algumas coisas com essas estações. Parece que há derretimento muito, muito alto no Everest, devido à luz solar ser muito intensa. É muito soalheiro. Não tem muita atmosfera acima de si. Os montanhistas percebem isso com o calor que sentem quando estão a caminhar. A temperatura do ar é baixa, mas parece estar mais quente. O gelo e a neve reagem a isso e derretem, mesmo quando a temperatura está abaixo de zero. Descobrimos isso para já. Outra história mais local é que temos avaliado como as previsões meteorológicas se comportam. Isso é muito importante no Everest para os montanhistas, que estão muito expostos ao mau tempo. Os ventos fortes podem ser mortíferos.

(National Geographic Society/Mark Fisher)

É quase uma perspetiva de astronauta.
Exato. E as previsões meteorológicas parecem estar a fazer um bom trabalho. Podemos dizê-lo agora porque sabemos o que realmente se passa na montanha.

O que está mais entusiasmado para descobrir através dos dados dessas estações?
Continuamos a receber novos dados, mas o que mais me entusiasma é continuar a analisar aquilo que já temos. O que estamos a fazer agora é analisar quanto derretimento ocorre nos glaciares da região e perceber quão sensível é ao aquecimento continuado. Isso é muito entusiasmante. Nos próximos meses haverá monções, em que teremos muita neve e muito derretimento. Será uma altura do ano muito agitada em termos meteorológicos. Muito mais quente e com muito mais neve. Neve, trazendo recursos aquíferos lá para cima, e temperaturas mais quentes a derreter o gelo e a neve. Saber como esses dois processos se relacionam é muito importante para perceber quanta água fica disponível a jusante. É muito importante para nós saber de que forma as monções progridem.

No documentário, fiquei espantado com o número de pessoas que estavam a tentar escalar o Everest, obrigando-vos a parar. Tem sido escrito muito sobre isto. Sentiram que era um problema no terreno?
Sim. E o problema é que era muita gente num curto período de tempo. Com outro clima, o mesmo número de pessoas poderia ter subido até ao cume e voltado sem problemas. Mas as condições meteorológicas fizeram com que toda a gente se tenha concentrado em apenas alguns dias para tentar chegar ao topo. No Everest, não há muitas cordas para subir. Se houver pessoas que andem mais devagar – o que acontece quando há muita gente –, desloca-se ao ritmo da pessoa mais lenta do grupo. Quanto mais gente houver, mais devagar andará. Isso foi um problema, atrasou-nos bastante. Mas apenas afetou o nosso trabalho no dia em que fomos até ao balcony [“a varanda”, uma zona da montanha]. De resto, foi apenas ficar com as mãos frias à espera na fila.

Não se imagina muito ficar-se parado numa fila no meio do Everest.
Sim, já se escreveu sobre isso e já aconteceu antes. Mas este ano foi uma má coincidência por causa do clima. É interessante: estávamos a instalar estações meteorológicas e foram as condições meteorológicas que tornaram a subida mais desafiante.

Que lições aprendeu ao escalar uma montanha tão alta? O que não sabia?
Duas coisas. Uma negativa e uma positiva. A negativa é o impacto da temperatura do ar no corpo. Tive um pouco de frostnip [fase inicial de frostbite, que não envolve lesões permanentes] nos meus dedos e orelhas. Em comparação com temperaturas baixas que já senti antes, neste caso, o nível baixo de oxigénio significa que não se consegue lidar tão bem com isso. Surpreendeu-me quão suscetível se é a ferimentos devido ao frio nessas altitudes. Percebi isso sentado na minha tenda, quando deixei de sentir a ponta dos dedos e perdi alguma pele. Não houve danos…

Assustou-se?
Não muito. Todos já tivemos as mãos frias. Parece isso, mas dura mais tempo. Essa foi uma das lições. Lá em cima, não se pode deixar isso acontecer. A surpresa positiva é quão confortável se está a oito mil metros. Ficámos muito surpreendidos no Camp 4 [último acampamento da subida], quando pensávamos que estaríamos apenas em modo de sobrevivência, mas estava-se bem. Podemos tirar a máscara de oxigénio, sentarmo-nos, era confortável. Dormia-se bem (com oxigénio). Se se preparar bem, estiver aclimatado e com oxigénio para quando não se estiver a sentir bem, está confortável. Confortável, claro, em termos relativos. Mas não era assim tão mau.

A sua investigação sobre alterações climáticas concluía que os humanos poderiam já não ser capazes de viver em algumas regiões do mundo porque estas são demasiado quentes. Como é que isso funciona e de que regiões estamos a falar?
Sim. Essa investigação não pretendia dizer que há zonas que atualmente já não são habitáveis. Queria, isso sim, sublinhar que existe um ponto a partir do qual as temperaturas e a humidade atingem um nível que o corpo humano não aguenta. Não suporta em segurança essas condições. Vai aquecer lentamente e, se deixado nesse ambiente, será demasiado quente e mesmo pessoas saudáveis podem pagar um preço. O corpo não aguenta essas condições no longo prazo. Não importa quanto se sua ou a velocidade a que o vento sopra. É demasiado quente. Pensava-se que essas condições nunca tinham sido atingidas em nenhum ponto da Terra nos últimos dez mil anos, quando a ocupação do mundo pelos humanos realmente disparou. A investigação que publicámos este ano olha para registos meteorológicos muito detalhados, com dados horários em muitas zonas do mundo. E concluímos que já houve algumas horas em que a temperatura subiu acima desse limiar. A temperatura de bulbo húmido [wet bulb temperature] é o calor que se sente quando se toma em conta o suor. Nós concluímos que o valor crítico é 35 graus e que ele já foi ultrapassado algumas vezes no Golfo Pérsico e no Paquistão. Outras investigações já tinham descoberto que, se mais aquecimento ocorrer, podemos esperar que essas condições se espalhem para outras zonas maiores do mundo, o que pode ter um enorme impacto, principalmente se essas condições se observarem em grandes cidades, em regiões como o Sul da Ásia.

A surpresa positiva é quão confortável se está a 8 mil metros. Confortável, claro, em termos relativos

Poderá esse aquecimento levar a migrações em massa ou, em alternativa, a um gigantesco consumo de energia?
A questão energética é um bom ponto. É o nosso último recurso para lidar com o calor extremo: ir para dentro de casa e ligar o ar condicionado. Isso resulta, mas traz dois problemas: deixa-nos muito expostos a falhas de energia, que podem ocorrer devido a vagas de calor, com muitas pessoas a ligarem as coisas ao mesmo tempo, e a desastres naturais, como cheias e furacões, que podem destruir fontes de energia. Em segundo lugar, exige um enorme consumo de energia. As projeções são assustadoras, quando olhamos para quanto seria necessário para eliminar a nova pressão do calor face ao que já temos atualmente. Estamos a falar de adicionar o equivalente ao consumo energético de Europa, EUA e Japão. Só para lidar com o aquecimento adicional que aí vem. Também podemos ligar isto ao Everest, que é um sítio limite. É o ponto que liga toda a minha investigação. Há pessoas que vivem perto do limite. O cume do Everest está próximo do limite daquilo que o corpo humano aguenta sem oxigénio adicional. Acerca das migrações, não consigo comentar. É muito complicado. Será potencialmente uma consequência, mas não sei como a Humanidade irá lidar com este problema. Sei é que há problemas.

Em relação à pandemia da Covid-19, inicialmente escreveu-se muito sobre como ela poderia afetar as alterações climáticas, existindo até um discurso algo “otimista” acerca dos seus efeitos nessa área. Os dados mais recentes parecem moderar essas expectativas. O que diria que a pandemia nos está a mostrar?
É uma pergunta muito boa. Em relação ao lado prático do confinamento, os níveis de CO2 na atmosfera – que é aquilo com que estamos preocupados – estão sempre a aumentar. É como abrir a torneira de uma banheira. Durante o confinamento, o que fizemos foi desacelerar esse fluxos. Continuamos a acumular água no banho e CO2 na atmosfera, mas reduzimos o ritmo de crescimento. O ponto positivo que podemos tirar disto é que a ação concertada dos nossos líderes pode levar a uma atuação coordenada e muito rápida. Vimos isso em relação à proteção da saúde das pessoas durante o confinamento. Quando se discutem alterações climáticas, estamos a falar de proteger a saúde e o rendimento das pessoas no futuro, portanto a motivação é a mesma. Se houver clareza sobre os objetivos, as pessoas podem unir-se e agir em conformidade. Precisamos que isso aconteça na recuperação desta pandemia.

A pandemia pode fazer com que as alterações climáticas deixem de ser prioridade?
Estou preocupado que nos concentremos mais na recuperação rápida da economia. A necessidade de fazer isso de uma forma que nos ajude a chegar rapidamente à neutralidade carbónica talvez não esteja a receber a prioridade que devia. Estamos num limbo. Existem motivos de otimismo, mas apenas o tempo nos poderá dizer [para que lado iremos].

Mais na Visão

Mais Notícias

Quer saber a 'idade' do seu coração? Em breve o Oura Ring será capaz de fazer uma estimativa

Quer saber a 'idade' do seu coração? Em breve o Oura Ring será capaz de fazer uma estimativa

Shakira aposta em 'look' vermelho para a MET Gala

Shakira aposta em 'look' vermelho para a MET Gala

Toca a dançar!

Toca a dançar!

7 interpretações diferentes para o uso de um vestido branco

7 interpretações diferentes para o uso de um vestido branco

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

Os livros da VISÃO Júnior: Para comemorar a liberdade (sem censuras!)

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

O futuro começou esta noite. Como foi preparado o 25 de Abril

Uma anatomia alargada

Uma anatomia alargada

iOS: Elevadas taxas inviabilizam meios de pagamentos alternativos nas aplicações

iOS: Elevadas taxas inviabilizam meios de pagamentos alternativos nas aplicações

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

Os nomes estranhos das fobias ainda mais estranhas

III Conferência Girl Talk ruma ao Ferroviário

III Conferência Girl Talk ruma ao Ferroviário

Comer fora: 14 mesas de exterior

Comer fora: 14 mesas de exterior

Portugal na Feira do Livro de Buenos Aires

Portugal na Feira do Livro de Buenos Aires

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Um novo estúdio em Lisboa para jantares, showcookings, apresentações de marcas, todo decorado em português

Porque é que o exercício físico faz tão bem à saúde? Cientistas estão a encontrar respostas nas nossas células

Porque é que o exercício físico faz tão bem à saúde? Cientistas estão a encontrar respostas nas nossas células

Tesla volta aos cortes e avança com nova ronda de despedimentos

Tesla volta aos cortes e avança com nova ronda de despedimentos

O regresso ao primeiro emprego, na Exame de maio

O regresso ao primeiro emprego, na Exame de maio

Vencedores do passatempo 'IF - Amigos Imaginários'

Vencedores do passatempo 'IF - Amigos Imaginários'

O 25 de Abril da nossa perplexidade

O 25 de Abril da nossa perplexidade

Power Pilates, a modalidade que veio para ficar!

Power Pilates, a modalidade que veio para ficar!

De futebolista a espião. A incrível história de Cândido de Oliveira chega ao cinema

De futebolista a espião. A incrível história de Cândido de Oliveira chega ao cinema

Vem aí uma nova edição do SwitchDev:

Vem aí uma nova edição do SwitchDev: "Mais de 90% dos alunos têm emprego depois do curso"

Liliana Filipa responde críticas a viagem com os filhos:

Liliana Filipa responde críticas a viagem com os filhos: "Não têm colégio?"

Cristina Ferreira: “O meu filho tem o exemplo de uma mãe gestora da sua vida”

Cristina Ferreira: “O meu filho tem o exemplo de uma mãe gestora da sua vida”

GNR apreende 42 quilos de meixão em ação de fiscalização rodoviária em Leiria

GNR apreende 42 quilos de meixão em ação de fiscalização rodoviária em Leiria

Quem tinha mais poderes antes do 25 de Abril: o Presidente da República ou o Presidente do Conselho?

Quem tinha mais poderes antes do 25 de Abril: o Presidente da República ou o Presidente do Conselho?

Afinal, quão maus são os alimentos ultraprocessados? Os resultados de um estudo realizado ao longo de quase três décadas

Afinal, quão maus são os alimentos ultraprocessados? Os resultados de um estudo realizado ao longo de quase três décadas

Energia para Mudar: Açores a caminho da independência energética

Energia para Mudar: Açores a caminho da independência energética

O visual tendência de Rania no reencontro com a filha, Salma, em Los Angeles

O visual tendência de Rania no reencontro com a filha, Salma, em Los Angeles

Quem é Nemo: a pessoa não binária que devolveu a “Eurovisão” à Suiça?

Quem é Nemo: a pessoa não binária que devolveu a “Eurovisão” à Suiça?

Em Tavira, uma casa senhorial dá origem a um equilíbrio de contrastes

Em Tavira, uma casa senhorial dá origem a um equilíbrio de contrastes

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Vencedores e vencidos do 25 de Abril na VISÃO História

Aqueduto das Águas Livres: Por caminhos nunca antes abertos ao público

Aqueduto das Águas Livres: Por caminhos nunca antes abertos ao público

O IRS trocado por miúdas

O IRS trocado por miúdas

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

EDP Renováveis conclui venda de projeto eólico no Canadá

Há uma nova coleção com vestidos de festa para convidadas

Há uma nova coleção com vestidos de festa para convidadas

Planeta continuou a aquecer em abril apesar da diminuição do El Niño

Planeta continuou a aquecer em abril apesar da diminuição do El Niño

Via Algarviana: Novos trilhos para conhecer o Algarve genuíno

Via Algarviana: Novos trilhos para conhecer o Algarve genuíno

VOLT Live: os números que provam que o mercado dos elétricos está a crescer, a Cybertruck em Portugal…

VOLT Live: os números que provam que o mercado dos elétricos está a crescer, a Cybertruck em Portugal…

Descobrimos o segredo de “Senhora do Mar”: Óscar é pai de Anabela

Descobrimos o segredo de “Senhora do Mar”: Óscar é pai de Anabela

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

A meio caminho entre o brioche e o folhado, assim são os protagonistas da Chez Croissant

Diálogo natural num apartamento no Chiado, em Lisboa

Diálogo natural num apartamento no Chiado, em Lisboa

A nova

A nova "assistente" de Letizia estreou-se no cargo e de ténis como a rainha

Um oásis tranquilo, em Barcelona, Espanha

Um oásis tranquilo, em Barcelona, Espanha

Produtos químicos presentes nos cigarros eletrónicos podem ser altamente tóxicos, revela investigação que representa salto de décadas

Produtos químicos presentes nos cigarros eletrónicos podem ser altamente tóxicos, revela investigação que representa salto de décadas

Inspire-se no

Inspire-se no "look" de Maria Dominguez

Parceria TIN/Público

A Trust in News e o Público estabeleceram uma parceria para partilha de conteúdos informativos nos respetivos sites