Olhamos, mas não vemos. Umas vezes porque o objeto é demasiado pequeno, outras por ser demasiado grande, e outras ainda porque decidimos não ver. Independentemente da razão, acabamos por ter uma visão parcial da realidade. Em entrevista exclusiva, a canadiana Ziya Tong, 48 anos, comunicadora de Ciência e uma das caras mais conhecidas do Discovery Channel, diz querer abrir-nos os olhos e mostrar-nos outras perspetivas, com o seu livro Tudo o Que Não Vemos (Lua de Papel, 333 págs., €17,90), que já está nas livrarias.
A sua mensagem central é a de que vivemos numa “bolha da realidade”. Porquê essa expressão?
Quando habitamos uma bolha, estamos a habitar uma realidade ficcional. Há um mundo muito maior, que existe fora da bolha. Um pouco como as bolhas dos mercados financeiros e as bolhas imobiliárias: se vivermos na ilusão, podemos ficar em apuros, porque esse mundo mais vasto pode destruir a nossa bolha.
Como essa bolha afeta o nosso dia a dia?
São modos de ver o mundo que não revelam a realidade. Julgamos ter uma visão exata do mundo quando, na verdade, temos uma visão distorcida. Quando temos muitas destas bolhas juntas na sociedade, acabamos com os problemas caóticos que vemos à nossa volta.
Como as alterações climáticas?
Sim, e a desflorestação, as extinções em massa, a acidificação dos oceanos. Todas estas coisas que acontecem à nossa volta são invisíveis a olho nu – e, como não estamos a prestar atenção, ficam fora de controlo.
O que nós temos a ganhar, como espécie mas também como indivíduos, em apreender outros pontos de vista, em ver aquilo que habitualmente não vemos? Ganhamos mais do que uma sensação de assombro? As nossas vidas mudam de alguma forma?
Há uma sensação de assombro, de encantamento, sim, mas também há coisas muito práticas. Sem as revelações de Einstein, sem aquela sua forma de ver o mundo que o levou à Teoria da Relatividade, não teríamos sistemas GPS. Podemos não ter a noção concreta de como o tempo funciona, que depende da nossa velocidade e da distância à Terra, mas, se Einstein não tivesse conseguido fazê-lo, os nossos GPS ficariam desregulados dez quilómetros por dia.
Fechamos os olhos voluntariamente ao que nos faz sentir desconfortáveis? É um mecanismo consciente?
Há várias razões. Algumas são palas voluntárias. “O que se passa nas quintas de onde vem a nossa carne? Vou fingir que não sei.” Mas há outras coisas que simplesmente não conseguimos ver. Não conseguimos ver buracos negros nem os micróbios que nos rodeiam, que estão até nos nossos corpos. Há coisas que não conseguimos ver devido à nossa biologia e coisas que não vemos porque escolhemos não ver. E há ainda as que não vemos porque fomos culturalmente moldados para vê-las de uma certa maneira, a que eu chamo pontos cegos civilizacionais: formas de observar o mundo que herdámos, transmitidas de geração para geração.
É um mundo cruel. Fome, morte e sofrimento… Não é melhor não “vermos” para conseguirmos viver sem sentir constantemente as dores do mundo?
Mas também há coisas para ver que são maravilhosas, que me inspiraram a escrever o livro e que me fizeram divulgadora de Ciência, durante 17 anos. Todos os dias falava com cientistas de diferentes campos: alguns estudavam animais; outros, o Espaço; outros, a vida marinha, e não viam só coisas horríveis. Por exemplo, no livro, falo de como um escaravelho-do-esterco usa a Via Láctea para se orientar ou de como os cães-da-pradaria têm a sua própria língua.
Nota-se que ficou maravilhada quando descobriu que os cães-da-pradaria têm latidos diferenciados para anunciar a chegada de diferentes predadores.
I lost my shit! [Fiquei abismada!] Adorei! Este é um livro sobre encanto e assombro, de como ver o mundo, quase como em Matrix: se destapar o véu, acordo. É mais isso do que revelar o lado lúgubre.
A cegueira que, por exemplo, nos leva a ignorar que os animais são seres sencientes não será um mecanismo de defesa evolutivo? Se pensassem demasiado no sofrimento de um animal antes de matá-lo, os homens das cavernas morriam de fome…
Se olharmos para as comunidades das Primeiras Nações [povos indígenas do Canadá], vemos que houve sempre um sentido de reverência para com os animais e o seu nível de senciência, e no entanto essas pessoas caçavam para sobreviver. É um tratamento dos animais muito diferente deste sistema mecanicista, industrial que nós temos. Hoje, vemos os animais como produtos. Há milhares de anos, tivemos filósofos e budistas a reconhecerem a senciência de outras criaturas, e também a unidade do mundo, o facto de estarmos todos interligados, e é isso que a Ciência moderna também começa a ver – esta interligação. Por exemplo, os maoris, da Nova Zelândia, sempre tiveram a noção de que estavam ligados ao mundo, no sentido em que o mundo fazia parte da química dos seus corpos. A água dos rios era inseparável deles próprios. Essa é uma forma diferente de pensar. Durante muito tempo, o modo de pensar era religioso: tudo partia de Deus. Depois veio a Ciência e tudo passou a ser muito mecanicista. Agora é a era da economia, em que vemos tudo, até os nossos filhos, como investimentos. Há maneiras distintas de encarar o mundo, e agora precisamos de outra. Acreditamos que somos donos do mundo, mas precisamos de outro modo de pensar que não passe por este excecionalismo humano, em que somos o centro do universo e dominamos tudo. A ideia de que podemos comprar e vender vida é, para mim, absurda.
Em que momento da nossa existência perdemos essa conexão com o mundo que nos rodeia?
Quando começámos a viver nestas bolhas de habitat que são as cidades. Durante a pandemia, ficámos sentados em casa e as coisas chegam-nos na mesma. Essa é outra bolha que não vemos, a do trabalho invisível. Finalmente apercebemo-nos dessas pessoas, os trabalhadores essenciais que mantêm o sistema a funcionar, mas elas estiveram sempre lá. Só não lhes prestávamos atenção. Mas a Natureza também oferece serviços essenciais que continuamos a desvalorizar. Hoje conseguimos ver essa bolha do trabalho, mas há outras bolhas mais profundas para as quais continuamos cegos, como a de onde vem a nossa comida e a nossa energia, e para onde vai o nosso lixo. E se não olharmos para esses sistemas, vamos ter problemas.
Conta uma história sobre um grupo de chimpanzés a apreciar um pôr do Sol. Se as pessoas pensarem nos animais como seres com inteligência ao ponto de apreciar a beleza, acredita que deixariam de comer carne?
No outro dia, cruzei-me com a história de um caçador, no Canadá, que matou um ganso selvagem e, quando se aproximou, viu a parceira do ganso a protegê-lo com as asas; nesse momento, o caçador viu amor e não voltou a caçar. Não digo que isso acontecerá sempre. Há até muitas situações em que comer carne é uma questão de sobrevivência. Aqui no Canadá, nas zonas mais próximas do Ártico, não há supermercados nem hortas – as pessoas têm de caçar para comer. Não defendo que temos de quebrar a corrente de vida. Mas eu não como carne, porque não preciso. Há tantas alternativas, além de que sei o impacto que tem nas alterações climáticas. A resposta a essa pergunta, no entanto, talvez seja esta: quando nos apaixonamos pelo mundo, lutamos para protegê-lo. Tal como as pessoas adoram os seus animais de estimação: vemos a internet cheia de declarações de amor aos cães, gatos, lontras… Se um extraterrestre espreitasse a nossa internet, julgaria que éramos a espécie mais carinhosa do planeta. Mas, nos bastidores… Se pensarmos nos 66 a 70 mil milhões de animais que abatemos todos os anos… Esse é um grande ponto cego. Acalmamos as nossas consciências com o facto de sermos tão amorosos com os nossos cães e gatos, mas temos de olhar mais profundamente, porque este sistema de vida de que dependemos está desequilibrado.
Tudo o que fazemos tem impacto. Um vegan que coma abacate está a subsidiar criminosos no México, que controlam grande parte da sua produção; se comer quinoa, fará subir os preços ao ponto de os bolivianos pobres, que a tinham como base da sua alimentação, já não a poderem comer…
Sim, tudo tem impacto… Mas, por exemplo, nunca pensamos na soberania alimentar. Julgamos que somos donos do mundo, mas, na verdade, é um pequeno grupo de pessoas que é dono do mundo. Se olharmos para os grandes bilionários, que são quem está a ganhar dinheiro neste momento… Porque é que estão a ganhar mais e mais? Porque são responsáveis pela comida, pela energia e pela tecnologia – os sistemas fundamentais. Não podemos continuar a depender destes mastodontes, estas empresas gigantes, para nos alimentarmos. Temos de abanar esse sistema.
Independentemente de o sistema alimentar estar nas mãos de 10, 20 ou 1 000 empresas: é possível alimentar quase 8 mil milhões de pessoas sem um setor industrializado?
Josh Patrick, o criador da Just Egg [uma empresa que comercializa um substituto vegan do ovo], costuma dizer que o setor alimentar não está completamente podre – está só meio podre. Não há nada de errado com os sistemas de refrigeração, de transporte, de distribuição. As pessoas têm é de se aperceber de que podem substituir a proteína. Rinocerontes, elefantes, hipopótamos são enormes, e são vegetarianos. Portanto, sim, podemos reparar o nosso sistema alimentar. Os projetos de algas… Há novas formas de fazer comida que usam menos terra, menos água, são menos intensivas. E isso é fundamental, atendendo a que temos problemas crescentes de degradação de solos e de água potável. Somos uma espécie com engenho. Vamos conseguir consertar a tal metade podre do sistema e alimentar a população
Cita a célebre frase atribuída a Estaline: “Uma morte é uma tragédia, um milhão é uma estatística.” A cegueira ao que fica fora da nossa escala, por ser muito pequeno ou muito grande, é o que nos torna insensíveis?
Sim. Como os grandes números que vemos nos jornais e pelos quais os nossos olhos passam sem realmente parar… Números como “40 mil milhões de árvores desaparecem todos os anos” são demasiado grandes para a pessoa comum apreender. Se começarmos agora a contar até mil milhões, demoramos 30 anos. A maioria das pessoas não compreende o que são mil milhões. Mas temos empresas que valem milhares de milhões de dólares… Jeff Bezos está a caminho de se tornar um trilionário [a sua Amazon tem um valor de mercado que já ultrapassa o bilião de dólares, que em inglês é trillion]. Criámos um sistema tão desigual que uma dúzia de bilionários detém metade da riqueza do mundo. Há uma citação interessante do Richard Feynman, o matemático [que morreu em 1988]: “Há 10 elevado a 11 de estrelas na galáxia. Isso costumava ser um número gigantesco. Mas é só 100 mil milhões, o que é menos do que o défice dos EUA. Costumávamos chamar-lhes números astronómicos. Agora devíamos chamar-lhes números económicos.” Esses números enormes, como 60 milhões de campos de futebol desflorestados todos os anos, ou 1,676 biliões [milhões de milhões] gastos em armas… Como é que as pessoas podem reagir quando não sabem sequer o que são mil milhões?
É sequer possível o cérebro humano compreender realmente quantidades dessa ordem de valor ou conceitos como o infinito?
Não, o cérebro humano não consegue compreender. Há estudos sobre isto, como aquele em que se perguntava às pessoas quanto estavam dispostas a contribuir para salvar aves presas numa mancha de petróleo: quanto maior o número de aves, menos as pessoas contribuíam. O mesmo acontece quando há um sismo. Se for só uma criança a morrer, as pessoas identificam-se com ela, mas se forem muitas pessoas a morrerem… não. É por isso importante contar histórias e escrever notícias de uma forma íntima e não apenas factual.
Temas como as alterações climáticas deveriam ser reportados assim, para fazer passar a mensagem?
Sim. É uma das formas de criar empatia pelas histórias. Lembro-me de ler sobre a seca na Califórnia, e o que me ficou na cabeça foi uma mulher que não tinha água suficiente para lavar os vegetais e que, por isso, tinha de comer vegetais enlatados. São essas pequenas coisas que ficam na nossa memória, que têm impacto e que fazem a diferença. Só assim as pessoas se importam. Ninguém quer saber de números.
O facto de ser um problema muito vasto, sem uma data definida para o desastre, não ajuda.
Sim, sofre do problema de ser uma ameaça invisível. Chamo-lhe poltergeist: é assustadora precisamente porque não a vemos chegar. Mas se pudéssemos atirar-lhe um cobertor para cima e víssemos a forma de uma criança… arrepiávamo-nos.
O mistério não é parte da poesia? Sentir o cheiro do oceano não perde a magia se dissecarmos o momento e pensarmos nele em termos de químicos e átomos?
Há poesia em ambos. Há poesia e beleza na observação científica. É tão belo conhecer a complexidade quase miraculosa de algo tão simples como uma flor ou um arco-íris… É muito poético sabermos a forma como a Natureza funciona.
Como este modo de ver o mundo, saindo da sua bolha da realidade, mudou o modo como vive?
Bem, ontem passei 40 minutos a salvar uma vespa, tentando levá-la a sair do meu apartamento… Sei que uma boa parte da minha vida vai ser ocupada por momentos como este. Hoje, não tomo a vida por garantida e sei que pequenas coisas podem fazer grandes diferenças.