“Ninguém nasce racista, torna-se racista.” É esta a máxima da Fundação Lilian Thuram – Educação Contra o Racismo, criada pelo francês, ex-campeão do mundo e da Europa, há mais de uma década. Depois de passar por equipas como a Juventus ou o Barcelona, o empenho do ex-futebolista na luta contra o racismo granjeou-lhe o título de doutor honoris causa pela Universidade de Estocolmo (Suécia) e pela Universidade de Stirling (Escócia). Já enquanto atleta profissional, Lilian Thuram era uma voz ativa. Insurgiu-se contra Jean-Marie Le Pen quando o então líder do partido de extrema-direita Frente Nacional criticou a seleção francesa por ter demasiados “jogadores de cor”. Nascido há 47 anos na ilha de Guadalupe, território francês no arquipélago das Antilhas, Lilian Thuram mudou-se para Paris antes de celebrar 10 anos. Cresceu num dos bairros mais portugueses da capital francesa, Fontainebleau. Fazem parte das suas memórias de infância os automóveis dos pais dos seus amigos, “carregados até ao tejadilho antes da partida para as férias de verão em Portugal”. Agora, foi Lilian Thuram quem veio visitar o nosso país. Deu uma conferência na Universidade de Coimbra e outra na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, no mês passado. O ex-jogador também se encontrou com estudantes. A iniciativa foi promovida pelo projeto MEMOIRS, que investiga as heranças coloniais na Europa, do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e contou com o apoio das fundações Lilian Thuram e Calouste Gulbenkian, além da Embaixada de França. Do racismo à extrema-direita, era inevitável abordar o futebol que, entende o ativista, é um reflexo da sociedade.
Quando se sentiu vítima de racismo pela primeira vez?
Digo, muitas vezes, que me tornei negro aos 9 anos, quando tomei consciência da cor da minha pele através do olhar dos meus colegas de escola que me insultavam. Tinha acabado de chegar a Paris vindo de Guadalupe. Ao mesmo tempo, isso significa que também eles já tinham consciência da sua branquitude. Faz-nos questionar qual o momento em que nos tornamos racistas, e, com efeito, ser branco é uma construção histórica, tal como ser negro. Construiu-se “o branco” num determinado período histórico em que era necessário explorar “o negro”.
“Quando falamos de negro, pensamos ‘africanos’. Quando dizemos ‘europeu’, pensamos ‘branco’”, afirma a escritora e ativista francesa Rokhaya Diallo. Os afrodescendentes europeus são vistos como estrangeiros?
Claro que sim. A cor da pele continua a ter uma importância tremenda, sobretudo para as pessoas brancas. Ontem fui a uma escola e perguntei: “Quem foi Cristóvão Colombo?” Habitualmente, os miúdos respondem que ele “descobriu” a América do Norte. A seguir, perguntei-lhes se sabiam que havia milhões de habitantes na América quando ele lá chegou e pedi-lhes que se questionassem sobre a sua posição quando contam a história de Colombo. Há duas possibilidades: ou estão dentro do barco com ele ou na praia a vê-lo chegar. Os miúdos respondem sempre que estão no barco. A História contada pela Europa faz com que, independentemente da cor da pele, nos situemos dentro do barco, isso é que é “normal”. A Europa, a nível político e intelectual, foi forjada na norma branca, sem ter em consideração aqueles que estavam na praia. E acabamos a acreditar que a violência contra eles não foi grave.
Portugal foi relevante na construção dessa narrativa?
Portugal, tal como França, foi um país colonizador, e não existe colonização sem um discurso hierarquizante que legitime o lugar de dominação. Voilà! Ao dizer isto, muitos portugueses vão sentir-se agredidos, mas é fundamental que compreendam que foram as instituições que implementaram esse sistema e não os indivíduos. Quando dizemos “a Europa”, estamos a falar das instituições políticas e financeiras de determinada época que, para legitimarem a sua ganância, construíram um discurso que tornou aceitável a violência sobre o Outro.
Tendo sido Portugal, tal como França, uma potência colonial, é inevitável que a sociedade portuguesa seja racista?
Acredita que, em Portugal, as pessoas negras são tratadas da mesma forma que as pessoas brancas? É preciso ser honesto e traçar um retrato do que se passa – isso não significa julgar negativamente Portugal, França ou Itália, mas reconhecer o problema. As pessoas, muitas vezes, deixam-se levar pelas emoções e querem defender os seus países, apesar de ninguém estar a atacá-los, está-se apenas a fazer um retrato do que se passa.
Um dos heróis nacionais de Portugal é um negro: Eusébio…
Sim, mas isso não reflete necessariamente a realidade. É um herói nacional, mas não era Presidente da República, também não era um escritor nem um cientista… Um negro que joga futebol corresponde ao perfil que esperamos dele.
Dá muita importância à História…
É fundamental para compreender. O que a Europa está a fazer com os refugiados é igual ao que sempre fez em relação aos estrangeiros, mesmo os que circulavam dentro do continente. Vejamos o meu país: a primeira vez em que joguei futebol numa equipa foi no clube Portugais de Fontainebleau. Éramos insultados para onde quer que fôssemos porque representávamos os portugueses. Quando eu era jovem, os portugueses eram detestados em França, não eram vistos como sendo brancos pelos franceses.
A maioria das pessoas diz que não é racista. É possível ser-se racista sem o saber?
Claro que sim! O racismo tem uma enorme profundidade histórica. Obrigatoriamente, há comportamentos que passam de geração em geração. Quando nos colocamos a questão sobre se temos um enviesamento racista, já é bom sinal. Se o racismo perdura na sociedade é, justamente, porque continua a existir muita gente que diz não ser racista, mas que reproduz comportamentos racistas. Até as pessoas que sofrem de racismo integraram o discurso racista.
Mas também há quem seja negro e não se sinta vítima de racismo…
Sim, claro. Podemos ser negros, ou brancos, e não sofrer de racismo, mas isso não invalida que saibamos que existe.
A responsabilidade da luta contra o racismo continua a recair sobretudo nas suas vítimas?
Quem tem a responsabilidade de pôr fim ao racismo não são as pessoas discriminadas. Também cabe às pessoas brancas compreenderem a sua responsabilidade histórica, mas elas não têm consciência disso. “Os racistas são estúpidos”, dizem, mas o racismo não se resume à estupidez. É preciso ter a coragem de o admitir.
Isso implica que os brancos se sintam culpados pelo racismo?
As pessoas brancas pensam que admitir o racismo faz delas culpadas, mas não, é apenas uma análise fria que reconhece um problema. Eu sou homem e não me sinto culpado pelo sexismo. [O psiquiatra e filósofo] Frantz Fanon dizia que os brancos se sentem culpados porque sabem o que fizeram historicamente e têm medo de que um dia os negros lhes façam o mesmo.
Escreveu um livro sobre os seus heróis, As Minhas Estrelas Negras (Tinta-da-China). Qual deles foi mais importante para si?
O mais importante não está no livro. Muito próximo de nós existem pessoas extraordinárias que nos devem inspirar. A minha mãe ensinou-me muitas coisas essenciais, entre elas a coragem. Ela teve a coragem de partir de Guadalupe e de ir trabalhar para Paris, economizou e foi buscar os cinco filhos às Antilhas. Mas se tiver de destacar uma só figura do livro, escolho Frantz Fanon, que foi alguém que analisou com grande retidão o mecanismo do racismo.
Qual foi o campeonato em que se viu mais vezes confrontado com atitudes racistas?
Joguei nos campeonatos francês, italiano e espanhol, e não tenho nenhuma dúvida: Itália. Já na minha altura havia os mesmos problemas que há hoje.
As regras da FIFA contra atitudes racistas são suficientes? Ou o negócio sobrepõe-se à defesa dos Direitos Humanos?
O negócio é mais importante. Mas se não há mudanças, não é por culpa da FIFA. É aos jogadores brancos, que não sofrem de racismo, que devemos perguntar por que razão não fazem nada. Se eles disserem claramente aos adeptos: “Parem, não venham mais ao estádio se é para fazerem isso”, então as coisas mudam muito depressa. É fundamental educar os jogadores brancos para que eles tomem a palavra e deixem de ter medo.
Faz sentido para si que o jogador português do Manchester City, Bernardo Silva, seja punido por ter comparado o seu companheiro de equipa, e amigo, Benjamin Mendy, à personagem dos Conguitos?
Poderia ter sido apenas uma brincadeira entre dois jogadores que se conhecem bem e que se apreciam, mas a partir do momento em que se torna pública, já não é entre amigos, passa a atingir outras pessoas, e algumas delas sentiram-se chocadas. É isso que as pessoas devem compreender. Não foram apenas dois amigos que participaram na brincadeira, mas milhões de indivíduos.
Que lições ensinou aos seus filhos para lidarem com o racismo?
Avisei-os que podiam confrontar-se com pessoas que iriam pôr em dúvida as suas capacidades, sobretudo intelectuais. Historicamente, reduzimos as pessoas negras aos seus corpos e à sua força física. Disse-lhes: “Não se esqueçam de que essas pessoas é que têm um problema e não vocês.”
Já foi acusado de ser racista contra os brancos… Como reage?
Martin Luther King ou Nelson Mandela também foram acusados de serem racistas contra os brancos. A partir do momento em que tomamos a palavra e denunciamos o racismo, incomodamos muita gente. Não devemos ser ingénuos, vivemos numa sociedade em que nem toda a gente quer a igualdade.
O racismo contra os brancos não existe, diz. Porquê?
Em primeiro lugar, precisamos de chegar a acordo sobre o que é o racismo. As pessoas pensam que o racismo é uma experiência individual, mas não é. O racismo é um sistema de pensamento ligado à violência sobre certas pessoas com uma finalidade económica. Acontece quando as instituições nos recusam direitos iguais, não apenas a nível legal mas também simbólico. Quando faço conferências, peço que levante a mão quem gostaria de ser tratado da mesma forma que os negros são tratados na sociedade. Sabe o que acontece? Ninguém levanta a mão.
O racismo e a xenofobia são dos temas mais explorados pela extrema-direita. O que os torna tão eficazes junto do eleitorado?
Quando se diz “a culpa é dos estrangeiros”, todos os portugueses reativam a sua identidade nacional, é por isso que funciona. Ao reativar a identidade, apela-se a um grande número de pessoas, e mesmo aquelas que se dizem não racistas partilham dessa identidade. Como o racismo é sobretudo um discurso, se o discurso político for no sentido de dizer “nós estamos em perigo” ou “eles querem tomar o nosso lugar”, alguns eleitores ficam condicionados e rejeitam determinadas pessoas.
Marine Le Pen poderá ser a próxima Presidente de França?
Sinceramente, não quero falar sobre Marine Le Pen. Não me interessa.
Equaciona dedicar-se à política ativa para ajudar a combater a ascensão da extrema-direita?
O trabalho que eu faço, o facto de estar a dar esta entrevista, já é fazer política.
Foi campeão do mundo em 1998 e da Europa em 2000. O futebol mudou muito nos últimos 20 anos?
O futebol é um reflexo da sociedade que temos. Hoje, há uma enorme disparidade entre os clubes mais ricos e os outros. Tenho a impressão de que há muitos mais casos em que sabemos de antemão qual a equipa que vai ganhar o campeonato. Na sociedade em que vivemos, também há uma diferença cada vez maior entre os muito ricos e os muito pobres.
Quem é o melhor futebolista da atualidade?
É muito complicado responder a isso. Creio que há dois jogadores que se destacam: Cristiano Ronaldo e Messi.
É impossível escolher?
É ridículo ter de escolher. Estamos mergulhados numa sociedade competitiva em que só pode haver um vencedor. E, havendo cada vez mais individualismo, há cada vez menos ligações entre as pessoas e cada vez mais violência. Por isso é que temos de estar muito atentos, os extremismos crescem porque vivemos numa sociedade de violência. Se vivermos numa sociedade solidária, será o contrário, teremos laços entre nós e estaremos juntos.