Esta entrevista acabou às escuras. A conversa, numa das salas da Fundação Gulbenkian, com janelas para o jardim, alongou-se de tal maneira que o sistema automático de iluminação nos traiu. A coisa complicou-se para as fotografias, mas acabou por resolver-se. Pior terá sido para o entrevistado que, na madrugada seguinte, tinha voo para Copenhaga e aulas para dar na universidade. Apesar de, desde setembro, ser responsável pela cátedra da Gulbenkian, Chair of Impact Economy, na Nova SBE, mantém as suas ligações aos países nórdicos. Foi, portanto, num destes “cá e lá” que o apanhámos, para conhecermos o seu percurso até este quase regresso à pátria, aos 46 anos.
O que trouxe dos países nórdicos?
Sempre tive um fascínio por esses países. Vivi na Suécia, na Noruega e, agora mais recentemente, na Dinamarca. Lá não existem hierarquias: ninguém usa títulos, e quer o professor catedrático quer a secretária ou a senhora da limpeza têm o seu papel na sociedade. Existe um real respeito entre todos.
Isso soa a utopia…
Exatamente, mas funciona bastante bem.
Como vai agora readaptar-se às diferenças portuguesas?
Com uma certa estranheza. Noutro dia, fui ao banco, abrir uma conta,
e a senhora que me atendeu perguntou-me imediatamente se tinha algum título. Disse-lhe que sim, que tinha, mas não o queria no meu cartão. Ela, algo chocada, chamou-me a atenção para as enormes vantagens em fazê-lo…
E, afinal, o seu cartão tem lá o seu título?
Não tem, apesar da surpresa que causei na outra parte.
Em relação à preocupação com o ambiente, depois de viver na Dinamarca, deve achar que aqui andamos a brincar, não?
Sim… Apesar do clima, a pressão social que existe para não se usar o carro é enorme. E toda a gente se desloca de bicicleta, no pico do inverno. Com -15O, uma mãe pega nos seus quatro filhos e leva-os à escola a pedalar. Nada os inibe de fazerem o que têm de fazer por causa do tempo. Há mesmo poucos carros, o que torna a cidade muito mais agradável.
Lá, também anda de bicicleta?
Sim, mas naqueles dias de mais frio ou chuva não consigo.
Como um engenheiro naval de formação aparece no mundo da inovação em Saúde?
Na realidade, ainda no curso do Instituto Superior Técnico, comecei a interessar-me por tecnologias, por gestão e processos de inovação.
Portanto, nunca exerceu engenharia naval?
Fiz alguns trabalhos para a Lisnave [risos].
Como vê o prestígio atual dos cursos de Engenharia, especialmente os da universidade onde se formou?
Faz todo o sentido. Uma das coisas que as escolas de engenharia sabem fazer bem é ensinar a pensar. Muitas das metodologias que eu aprendi no curso são aplicáveis a quase tudo e ajudam-me a responder à questão: “Como posso resolver este problema?”
Porque escolheu esta área de investigação?
Sempre tive muita curiosidade em perceber porque alguns produtos têm sucesso e outros não. Percebi, mais tarde, que por detrás disso estavam quase sempre os utilizadores e as suas necessidades. Por exemplo, o inventor das câmaras GoPro não as idealizou para ficar muito rico, apesar de depois até ter ficado. O objetivo dele era conseguir gravar as suas atividades outdoor. A solução que ele criou funcionou tão bem que, depois, percebeu que teria potencial no mercado.
Mas, nessa altura, a saúde ainda não tinha entrado na sua equação?
Ao princípio, olhava muito para a inovação no desporto radical e para outras indústrias. Quando comecei a prestar atenção à área da Saúde, descobri coisas incríveis. Como o caso do inglês Tal Golesworthy – foi-lhe detetada uma anomalia na aorta que o mataria em breve, logo que se rompesse. Não se conformou com essa notícia e, como era engenheiro, sabia que, para estancar uma rutura num tubo, era preciso pôr-lhe algo à volta. Começou, então, a conceber um mecanismo para resolver o seu problema. Quando o idealizou, pediu ajuda ao médico para colocar o suporte aórtico na sua artéria. Com isto, salvou a sua vida e as de mais 215 pessoas.
Quando é que isso aconteceu?
Em 2002, foi-lhe dito que ele teria dois anos de vida. Mais ou menos em 2004, ele conseguiu que aquilo lhe fosse implantado.
Ainda está vivo?
Está! Telefona-me sempre que mais 30 pessoas beneficiam da sua invenção.
Esse tipo de invenção não é para qualquer um.
Não sei, porque quando dizem a uma pessoa que vai morrer de determinada doença, ela começa a estudar e fica a saber tudo sobre esse mal. Muitos dos doentes tornam-se especialistas, porque há um forte incentivo para isso.
Como lhe surgiu a ideia de criar uma plataforma para os doentes de todo o mundo partilharem as suas experiências e inovações?
Era investigador nas áreas de inovação do utilizador e estava a fazer papers sobre serviços financeiros. Pelo meio, fui encontrando registos de doentes que tinham feito coisas extraordinárias e comecei a enveredar por aí. Mas para poder dar continuidade ao projeto, teria de falar com médicos, convencendo-os a ajudarem-me a perceber as soluções. Tive a sorte de encontrar a professora Helena Canhão, que era open minded em relação a estes assuntos – não era a posição mais comum.
A Patient Innovation nasceu logo com os princípios que tem hoje?
Primeiro criámos uma plataforma, de modo a trazermos os doentes para o mesmo fórum e averiguar se eles partilhariam soluções. Pedimos, então, às associações de doentes nacionais
e internacionais para divulgarem esta nova ferramenta. Mas isto ainda era apenas um estudo que eu estava a fazer.
Quando deixou de ser apenas um estudo académico?
Numa apresentação da plataforma na Alemanha, quando uma senhora se aproximou de mim para doar dinheiro, caso tornássemos a plataforma aberta, pois ela geria uma fundação que financiava projetos na área da inovação em Saúde. Depois, mais tarde, noutra sessão que era maioritariamente de médicos, conheci outro senhor que me disse que poderia ajudar-me. Era só o Richard Roberts, um Nobel da Medicina! A ele juntou-se depois outro Nobel.
Essa plataforma informal não era perigosíssima, por deixar doentes falarem uns com os outros, sem qualquer filtro?
Já havia um filtro nessa altura, feito pela professora Helena Canhão. E, logo depois desta conversa com Richard, decidimos criar um advisory board.
Imagino que, mesmo assim, apareçam imensas mezinhas e coisas do género…
É precisamente isso: mezinhas aos pontapés. Temos sempre muito cuidado com isso. Por exemplo: não aceitamos nada que seja para ingerir ou produtos tópicos. Hoje, temos em média três a quatro soluções a serem submetidas. A primeira coisa que acontece é um email para a chief medical officer, que toma uma decisão imediata ou não. Pode pesquisar, pedir mais informação ou auxílio da equipa médica. Se o caso for mais complicado, alarga-se ainda mais a rede de ajuda.
Quantas soluções são aprovadas?
Em média, uma e meia por dia. No total, já foram mais de mil. E a lista de espera também já chega às mil.
Não se limitam a partilhar inovações, pois não? Também participam na parte tecnológica de dar forma às ideias.
Estava a desenvolver o projeto aqui, em Portugal, ao mesmo tempo que dava aulas na Universidade Católica. Comecei a sentir que não tinha recursos suficientes para avançar para o próximo passo, o da comercialização das soluções. Então, optei por montar uma estrutura, a ser lançada em breve, que vai desenvolver uma série de atividades – no fundo, é um acelerador para ajudar estes doentes a levarem as invenções para o mercado.
Esse acelerador vai existir de facto ou será apenas online?
Não será muito físico, porque os doentes estão em todo o mundo. E será diferente dos outros, porque se trata de pessoas atípicas – não são empresários ou empreendedores.
A plataforma só tem doentes complicados ou há casos mais comuns, como os diabéticos?
Por acaso, temos muitas coisas para diabéticos. Uma senhora, movida pelo pânico de ter de se injetar com insulina, criou um pórtico para não estar sempre a espetar-se com a agulha. Uma empresa norte-americana de material médico percebeu o potencial do aparelho e passou a comercializá-lo.
E a senhora enriqueceu…
Sim, enriqueceu. Aliás, uns tempos depois precisámos de contactá-la e não conseguíamos…
Estava nas Bahamas [risos]?
Tinha comprado um rancho no Colorado [risos]!
Qual a solução mais simples que já aprovaram?
A que partiu de uma pessoa que tinha uma mãe com Alzheimer e que se queixava de que cada refeição lhe demorava três horas, com a senhora à volta da comida. Certo dia, mais ou menos por acaso, os pratos lá de casa mudaram para uns muito menos coloridos e sem desenhos. Chegou-se à conclusão de que era a loiça que distraía aquela mãe, com uma mente confusa. Com os pratos brancos, a comida ficou realçada e as refeições passaram a ser muito mais rápidas.
Também haverá soluções complicadíssimas?
O exoesqueleto mais complicado que existe no mercado, e que custa 85 mil dólares, foi desenvolvido por um engenheiro israelita para ele próprio, depois de ter ficado tetraplégico, na sequência de um acidente. Basicamente, trata-se de um robô
que se veste e que põe um tetraplégico a andar. É bastante impressionante.
Já fazem algumas coisas com impressoras 3D, não é?
Essa história do 3D começou quando, na plataforma, conhecemos Ivan Owen, de Seattle, que faz marionetas para o teatro. A certa altura, ele criou, para o seu trabalho, umas mãos falsas, mecânicas e gigantes, e partilhou-as no YouTube. Logo a seguir, recebeu um email de um carpinteiro sul-africano a contar-lhe que uma máquina lhe havia levado três dedos e mostrando que gostaria de ter uma mão daquelas que lhe devolvesse algumas funções. Ao mesmo tempo, Ivan descobriu a nossa plataforma e começou a interagir com os doentes.
Como chega a história a Portugal?
Certo dia, estava no meu gabinete na Universidade Católica, quase a sair para uma aula, e bate à porta uma senhora a pedir-me ajuda para imprimir uma mão para o filho que tinha nascido sem um antebraço e sem uma mão.
Como poderia ajudá-la?
Respondi-lhe que, de facto, tínhamos impressoras 3D no projeto, mas não sabíamos como imprimir uma mão. Ela respondeu-me que o Ivan lhe tinha dado o código para a impressão. Acabei a dizer-lhe que poderíamos tentar, não fazendo bem ideia de como. Mas a verdade é que conseguimos, apesar de muitas dificuldades. E foi das coisas mais emocionantes e incríveis que vi na vida: o Nuno, o miúdo que tinha cerca de 7 anos na altura, adaptou-se à sua prótese, no mesmo momento em que lha encaixámos no coto do cotovelo.
Esta história reflete bem as maravilhas de estarmos todos ligados. Sem a internet, nada disto seria possível…
Sou um grande fã de todas as tecnologias, porque, quando bem usadas, têm um enorme potencial. Houve uma altura em que só sentia isso a nível académico, mas agora recebo emails de pessoas da Nova Zelândia, que não conheço de lado nenhum, a agradecerem-me por ter criado a plataforma, dizendo-me que isso mudou a vida delas. Este tipo de feedback também mudou a minha. Não estava nada encarreirado para fazer devices médicos. Ainda por cima, havia muita resistência da parte dos médicos para aderirem a este tipo de projetos – ganhei alguns inimigos e geraram-se vários anticorpos.
Ganha alguma coisa com a plataforma?
Devo dizer que tenho alguma visibilidade, mas não recebo qualquer ordenado. E já ganhámos vários prémios de rajada, muito importantes.