Mariana Mazzucato é uma das maiores estrelas da economia mundial, e já houve quem lhe chamasse “a economista mais assustadora do mundo”. Não que, como outros, trace cenários apocalípticos ou queira destruir o sistema, mas sim porque as suas capacidade e ferocidade de argumentação, sobretudo vindas de uma mulher, intimidam muitos interlocutores. Conhecida pelas suas teses provocadoras, a professora da University College, em Londres, decidiu explorar o conceito de “valor”. O Valor de Tudo, editado em Portugal pela Temas e Debates, analisa quem realmente contribui para a economia e quem apenas extrai valor, apresentando uma visão crítica do papel de bancos, gigantes tecnológicos e farmacêuticas. O seu discurso sobre a necessidade de reformar o capitalismo e a forma como avaliamos o sucesso económico aproximou-a de figuras como as norte-americanas Alexandria Ocasio–Cortez ou Elizabeth Warren – ambas democratas com os olhos postos na Casa Branca – ou o comissário europeu Carlos Moedas, de quem é conselheira. Como definiu um recente artigo da Quartz, “o capitalismo ocidental está a começar a fazer perguntas acerca da sua identidade, e Mazzucato tem as respostas prontas”.Numa conversa por telefone com a VISÃO, a economista defende o papel do Estado na inovação e explica que a sua abordagem não é anticapitalista, mas que o sistema deveria ser mais “inclusivo” e “sustentável”.
Por que razão o preço é uma forma errada de avaliar o valor na nossa economia?
A forma não é propriamente errada, mas captura um aspeto muito limitado. Só porque há trocas, o que determina o preço, não significa que esse preço represente valor. Não quer dizer que o Produto Interno Bruto (PIB) seja terrível e que devamos pô-lo de lado, mas não estamos a usá-lo para aquilo que ele serve. Por exemplo, quais deviam ser os preços dos medicamentos? Eu acho que os preços atuais estão errados, porque não capturam o valor criado por outros atores. Mas também pode argumentar: mesmo quando o preço está certo, deve o preço ser a forma como avaliamos os medicamentos? Para medicamentos essenciais, o seu valor está em serem, basicamente, um direito humano. Pode dizer-se que eles até deviam ser grátis. Em vez de preços, o Estado pode optar por usar um mecanismo de prémios e dizer que vai dar mil milhões de dólares a uma empresa que produza um medicamento e depois distribuí-lo de graça. Tudo depende da forma como tomamos decisões em sociedade. Nada é determinístico, porque a Economia não é Física. Esse é o ponto central: a Economia é uma ciência social e nós temos fingido, utilizando Física newtoniana, que somos estes seres humanos racionais que maximizam as suas ações, e que, de alguma forma, os preços representam um equilíbrio ideal.
O preço não é uma forma de dar incentivos à empresa para desenvolver novas tecnologias e produtos?
Existem diferentes formas de criar incentivos. Por exemplo, quando as Forças Armadas querem que o setor privado faça algo, não usam um sistema de preços mas sim um contrato público com um prémio. Isso incentiva as empresas a produzirem. Não precisa de preços para criar esse incentivo nem sequer de lucros. Aliás, a maioria das empresas que inova não lucra. Fá-lo devido a uma expectativa acerca do futuro, do crescimento e de quão lucrativo o setor é. Por exemplo, as patentes, em teoria, estão lá para incentivar a inovação. Mas a forma como estão desenhadas está a matar a inovação. São muito alargadas e muito fortes. Não estou a dizer que as patentes são boas ou más, mas é importante que saibamos que os mercados têm de ser governados ativamente. Falamos de “pressões do mercado” ou “sistema de preços” como se estas coisas obedecessem a uma lei natural.
Quando fala assim da economia de mercado ou quando usa citações de sindicalistas dos anos 1920 sobre “bárbaros barões do ouro”, parece que está a fazer uma crítica anticapitalista.
Usei essa citação para mostrar que, sempre que há uma crise financeira, há uma acusação de alguns estarem a “fazer” e outros estarem a “tirar”, como aconteceu há dez anos. O que eu estou a dizer é que é uma acusação fraca, porque não se baseia numa análise sobre de onde vem o valor. Por vezes, a esquerda não percebe que se concentra apenas em políticas redistributivas ou em dizer que os banqueiros fazem demasiado dinheiro. Tem de o complementar com uma análise acerca daquilo que os banqueiros fazem e do que correu mal com o setor financeiro. É essa razão pela qual o subtítulo do livro não é “makers and takers” (quem faz e quem tira), mas sim “making and taking” (fazer e tirar). O sistema financeiro pode ser reformado e colocado dentro do círculo da produção. Não é ser anticapitalista, é tentar abanar o capitalismo para que atinja o objetivo que queremos. Não vale a pena termos um sistema financeiro que apenas se financia a si próprio. No Reino Unido, 90% do financiamento vai de volta para o setor financeiro, seguros e imobiliário. Não vai para a “economia real”.
Hoje, é difícil separar o capitalismo desse megassetor financeiro?
Sim, porque o capitalismo que temos está hoje ultrafinanceirizado. É o setor financeiro que manda. Mesmo entre empresas e indústrias que não estão no setor financeiro, muitas delas usam os seus lucros para comprar as próprias ações. Isso significa que estão apenas preocupadas com o desempenho financeiro e não com o crescimento a longo prazo. Existem diferentes tipos de capitalismo e nós escolhemos, principalmente nos países anglo-saxónicos e infelizmente na Europa, seguir formas problemáticas.
Se um político pegar no seu livro, que medidas deve considerar para melhor refletir acerca do que é valor na economia?
Há várias implicações. A primeira é abrir o debate sobre o que é valioso. Por exemplo, quando se diz que em Silicon Valley eles criam valor… A sério? Eles criam valor como outros setores o fazem, incluindo instituições públicas. Certas mudanças fiscais foram pressionadas e conseguidas ao contar certas histórias sobre a criação de valor. Por exemplo, quando o imposto sobre as mais-valias foi reduzido, ele diminuiu porque os investidores pressionaram o Governo. A primeira recomendação para um político seria: tenha cuidado sempre que alguém usa a palavra “valor”. Em segundo lugar, em vez de integrar mais elementos no PIB, diferencie-os. Na Nova Zelândia querem acrescentar a felicidade e o bem-estar ao PIB, mas eu argumentaria que primeiro devem tirar de lá as rendas, em vez de acrescentarem mais conceitos. Em terceiro lugar, tem de decidir que tipo de valor quer gerar na economia e virá-la nessa direção, em vez de falar num “plano equilibrado”. Por exemplo, é óbvio que devíamos ter um imposto sobre transações financeiras e que devíamos tributar menos o trabalho. Devíamos também adotar uma postura mais ativa para o valor, resgatando a ideia de ter um “propósito”. A ideia de “missões”, que desenvolvi com um dos vossos políticos portugueses, Carlos Moedas, comissário europeu para a Investigação. Devíamos ter políticas mais orientadas para resultados. Ir à Lua e voltar foi um objetivo que a Humanidade quis alcançar e conseguiu-o em alguns anos.
Parece que as suas sugestões envolvem sempre mais impostos ou um Estado com mais peso. É uma caracterização justa?
Sim e não. Não é apenas o Estado. Considero que precisamos de uma relação diferente entre público e privado e muitos dos problemas que temos vêm do facto de essa relação ser problemática. Precisamos de uma relação mais simbiótica. Não estou a dizer para voltarmos aos anos 1970 e nacionalizarmos tudo, isso não correria bem. Falo de termos um melhor acordo. Mas isso só se consegue quando se pensa em todos os atores como criadores de valor. Se o Estado assume que está lá apenas para facilitar, autorizar, redistribuir e corrigir, em vez de ser um criador de valor, esse é um ponto de partida negocial mais complicado.
Porque o setor público ganhou uma reputação tão má nas últimas décadas?
Tivemos um ataque explícito ao Estado, com a ideia de Thatcher e Reagan de que o Estado só teria de deixar de ser um obstáculo. Esse ataque neoliberal foi acompanhado de novas expressões e visões sobre para que serve o Estado. Esta ideia de que ele está lá apenas para administrar e regular é relativamente nova. Alguns dos gestores de topo queriam trabalhar em instituições públicas. Hoje, cada vez mais, quem vai trabalhar para o setor público, em vez de ir para a Goldman Sachs ou a Google, é visto como um falhado. Tivemos também uma desregulação do setor financeiro, que permitiu aos interesses financeiros ganharem força. Crise após crise, o Estado estava lá apenas para salvar os bancos e apanhar os cacos. Quase não consegue fazer o seu trabalho, que é pagar por escolas, saúde e infraestruturas e garantir a sustentabilidade. O Estado é útil, produtivo e estratégico e conseguiu algumas das maiores proezas dos nossos tempos. Todas as coisas que tornam o iPhone inteligente foram financiadas pelo setor público. Internet, GPS, touchscreen… Isso aconteceu devido à organização específica do Estado e não porque tenha atirado dinheiro para cima dos problemas.
Por que motivo a eficácia da narrativa é importante?
Gosto de mostrar as histórias que foram sendo contadas por diferentes atores que conseguiram, por exemplo, menos impostos. Se tiver confiança no seu papel, vai contar uma história mais convincente e talvez enganar o Governo, levando-o a fazer algo bom para os seus lucros, mas não necessariamente bom para a economia. Se não contar histórias, as pessoas não vão perceber o que está a fazer. A Europa não contou bem a sua história no debate sobre o Brexit. Curiosamente, o setor financeiro é muito bom a contar a sua história. Um ano depois da crise, Lloyd Blankfein, CEO da Goldman Sachs, dizia que os trabalhadores do seu banco eram os mais produtivos do mundo e, uns anos depois, falava em “estar a fazer o trabalho de Deus”. É uma narrativa forte. A Goldman tem lucros recorde. Não estou a dizer que não devia lucrar, mas não tem qualquer relação com o valor que está a criar para a economia. É excessiva. E nem assume grandes riscos, porque tudo afunda, e o Estado salva-a.
Esse debate está a mudar?
Sim. Não transformámos o sistema. Os dados para os quais olho, como a recompra de ações, estão a piorar, não criámos um imposto sobre transações financeiras, a fatia de capital continua a crescer mais do que o trabalho… Não há sinais de que haja uma mudança alargada. Mas só podemos aprender com experiências. Por exemplo, Barcelona está a fazer algo interessante. Além de tentar tributar as empresas digitais, está a questionar por que razão elas têm sequer os dados. Mesmo no caso do Rendimento Básico Incondicional, não é surpreendente que as empresas tecnológicas o apoiem, porque isso não muda a história de que eles são os criadores de valor e, depois, dá-se uma borla aos cidadãos. Não chega ter um número diferente para o PIB, é preciso mudar fundamentalmente a forma como construímos a economia. E não é capitalismo vs. socialismo. É tornar o capitalismo mais inclusivo e mais sustentável.