Desde os anos 50 que a inteligência artificial (IA) é um tema presente na realidade tecnológica mundial. Basta retrocedermos ao período da II Grande Guerra onde Alan Turing, o célebre matemático, criptoanalista e filósofo, juntamente com a sua equipa, conseguiu descodificar o chamado ENIGMA, ajudando os aliados a desencriptar os códigos secretos que escondiam as estratégias, avanços e recuos da máquina nazi. Esta façanha levou-o a ser designado como um dos pais da computação moderna. Desde então, o ser humano tem vindo a estudar as máquinas, criando e aperfeiçoando as suas funcionalidades ao nível da programação. Recordemos Arthur Samuel que nos anos 50 criou o primeiro jogo jogado por um computador – o IBM 701 –, passando pelo algoritmo perceptron desenvolvido por Frank Rosenbelt em 1957, e ainda em 1964, a criação do robot ELIZA (o chamado robot psicanalista que conversava de forma automática) por Joseph Weizenbaum. Sem esquecer, nos anos 80, Edward Feigenbaum, precursor de um software apto a programar e a resolver âmbitos mais complexos de uma forma mais rápida e eficaz em substituição dos humanos.
O surgimento da Internet determinou um marco importante na democratização da IA no nosso quotidiano. As atividades do dia a dia passaram então a ser desenvolvidas com base na programação de resultados mais rápidos em prol da velha máxima “tempo é dinheiro”, satisfazendo os nossos desejos e escolhas, de forma personalizada e subjetiva. Não há um dia que passe em que não utilizemos sistemas programados através da IA. Falamos por exemplo dos transportes, smartphones, cibersegurança, pesquisas online, veículos automóveis, localização GPS, compras online, publicidade, traduções automáticas, robótica industrial, eletrodomésticos ligados à internet, relógios, diagnósticos médicos, administração de medicamentos, alterações patológicas e operações cirúrgicas. A IA está presente na nossa vida. Se por um lado, esta tecnologia tem o mérito de possibilitar uma maior capacidade de processamento de dados e acelerar a transformação digital da sociedade, garantindo uma maior personalização das nossas escolhas no ambiente virtual e tecnológico, por outro, existe uma crescente preocupação com os eventuais efeitos nocivos na esfera privada de cada um. A criação de perfis, e as consequentes decisões emitidas por parte das empresas que utilizam a IA, tem sido um dos pontos críticos, sobretudo, no impacto sobre os direitos e liberdades dos cidadãos.
Chamemos a atenção para um dos casos que recentemente veio a público e que demonstra a face oculta da programação IA. Um cidadão norte americano viu bloqueadas as suas contas de e-mail, contactos e acessos associados à google, quando o sistema de IA da gigante tecnológica detetou o envio para um médico, por telemóvel, por parte de um pai, de uma foto da virilha do seu filho por ocasião de uma patologia. À data, o mundo atravessava um período negro de confinamento forçado, provocado pelo vírus SARS-Cov-2. O sistema de IA da google detetou e sinalizou aquela fotografia como material abusivo relacionado com pornografia infantil, tendo inclusive participado criminalmente daquele cidadão. Pese embora este pai tenha contestado a decisão de bloqueio, a google mostrou-se irredutível mantendo (até hoje) todos os acessos e contas bloqueadas, mesmo após as autoridades policiais terem concluído não existir qualquer indício criminal. Este é um exemplo claro do lado nocivo e perigoso da programação.
A existência de decisões automáticas baseadas em perfis e algoritmos pode impactar seriamente os direitos e liberdades dos titulares que, inocentemente e inesperadamente, veem o seu nome associado a algo negativo com danos na sua imagem e reputação. Por cá, embora ainda não exista legislação reguladora em concreto ao nível da União, a Comissão em conjunto com o Parlamento Europeu tem desenvolvido iniciativas tendentes a um futuro regulamento que permita estabelecer as regras e os princípios de implementação e execução do sistema de IA. Contudo, o RGPD já prevê no art.º 22.º que o titular dos dados tenha o direito a não ficar sujeito a nenhuma decisão tomada exclusivamente com base no tratamento automatizado (ainda que preveja igualmente exceções), incluindo a definição de perfis, que produza efeitos na sua esfera jurídica ou que o afete definitivamente, sendo-lhe reconhecido, inclusive o direito de obter mão humana na decisão causa-efeito, dar o seu ponto de vista e apresentar contestação. Desde então, o Parlamento Europeu aprovou já duas resoluções, a chamada resolução sobre o regime da responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial (Resolução do Parlamento Europeu, de 20 de dezembro, que contém recomendações à Comissão sobre o regime de responsabilidade civil aplicável à inteligência artificial (2020/2014(INL9)), determinando a responsabilidade indemnizatória das entidades, por danos causados por força do uso de tecnologias de inteligência artificial, e a Resolução do Parlamento Europeu, de 3 de maio de 2022 sobre a inteligência artificial na era digital (2022/2266(INI) chamando a atenção para a criação de normas éticas e jurídica, exortando a Comissão Europeia a legislar sobre esta matéria.
A IA já não é uma tecnologia futurista, é uma tecnologia do hoje que continua no presente e irá afetar o futuro. É precisamente neste impacto que devemos ser cautelosos e criar regulamentação destinada a definir os limites da sua utilização e a responsabilidade pelos danos que daí possam advir. Do futuro, muito estará por vir, mas até lá, vamos assistindo ao avançar galopante da evolução da máquina. É essa máquina que nos vai surpreendendo e tornando a nossa vida mais fácil e o nosso dia a dia mais eficiente. Tão antigo como atual, é caso para dizer, “as máquinas surpreendem-me frequentemente”, tal como disse Alan Turing. Resta-nos saber se nos aguarda um futuro onde os direitos fundamentais dos cidadãos continuarão a ser protegidos, ou se estaremos perante uma ameaça mais grave do que o benefício esperado.