Leonor Saúde não fazia ideia daquilo em que se estava a meter quando se propôs a criar um jogo digital para crianças. “Há critério para a escolha das cores e dos sons e nesta nova geração os jogos não devem ser punitivos, mas de reforço positivo. Foi uma loucura!”, resume a investigadora do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, ainda espantada com tudo o que teve de aprender durante o processo de criação e desenvolvimento do Neuropal, um jogo que tem um objetivo muito claro: sensibilizar as crianças para os riscos de acidentes, em particular para o tipo de azares que podem causar lesões na medula.
Em Medicina, este tipo de lesões – que afetam cerca de meio milhão de pessoas por ano, em todo o mundo – são do mais desafiante que há. Apesar de anos e anos de investigação e do esforço de uma comunidade científica motivada ainda não se descobriu uma forma de restabelecer a comunicação entre o cérebro e o resto do corpo, após a quebra das ligações nervosas, o que resulta em vítimas paraplégicas ou tetraplégicas. O que torna a necessidade de evitar o acidente ainda mais crítica. “Embora estejamos cada vez mais perto de encontrar uma maneira de regenerar o tecido nervoso, ainda não conseguimos fazê-lo. Foi por esta razão que tivemos a ideia de criar o Neuropal”, explica a cientista que dirige o laboratório de Regeneração da Medula Espinhal e Microambiente Tecidular.
Com uma verba destinada à comunicação, prevista no financiamento ao seu projeto de investigação na área da regeneração da medula, atribuído pela Fundação La Caixa em 2019, e com o apoio da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, juntou-se uma “equipa multidisciplinar de estudantes e profissionais de diferentes áreas como as ciências biológicas, a comunicação de ciência, a programação de computadores, o design de jogos e as artes audiovisuais, para criar um jogo com um universo imaginário rico e animado, que possibilita ensinar crianças entre os 6 e 11 anos a prevenir acidentes comuns e a compreender a importância fisiológica de o fazer”, descreve a responsável.
“O jogo leva-nos numa aventura por uma ilha tropical com dois amigos, o Neuropal e o Neuro, que se separam quando um evento inesperado força todos a escapar. O Neuropal tem de encontrar o seu amigo e deixar a ilha em segurança. Durante o caminho, é desafiado por situações de risco em que terá de adotar comportamentos seguros, evitando lesões em si mesmo e nos outros”, explica Joana Barros, co-criadora do jogo e coordenadora da Associação Viver a Ciência, em comunicado de apresentação.
Eliminar as células envelhecidas
O jogo, que também teve mão da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, do Favo Studio e da Universidade de Aveiro, está disponível em três línguas, português, inglês e espanhol, em Android e iOS, e o objetivo é a página tornar-se também numa fonte de informação sobre o sistema nervoso central, sendo atualizada com novidades científicas relacionadas com as lesões medulares.
No laboratório, Leonor Saúde continuará a trabalhar no estudo do processo de envelhecimento celular designado como senescência e que poderá ser um dos obstáculos à regeneração medular após uma lesão – o que acontece em todos os mamíferos, incluindo o homem. Enquanto espécies como o peixe-zebra têm capacidade de recuperar a mobilidade e a sensibilidade, graças à estimulação das células ao redor da lesão. A hipótese que está a ser agora explorada é a de que seja o acumular de células senescentes na área lesionada, que não ocorre no peixe-zebra, que dificulta a regeneração da medula espinal em humanos. Neste momento, os cientistas estão focados na descrição da “assinatura da senescência” e na forma como esta “evolui ao longo do tempo após a lesão”, avança Leonor Saúde. Uma fase ainda longe das tão ambicionadas terapias. Até lá, prevenir continua mesmo a ser o melhor remédio.