Se escolhêssemos a banda sonora do século XX português, um dos primeiros nomes que tantos avançariam seria o de José Mário Branco. Nome cimeiro da música nacional, figura exemplar nas lutas cívicas, autor de refrões eternos, o músico, cantor e compositor de 77 anos partiu esta madrugada, após um acidente vascular cerebral, e deixa Portugal orfão. Autor de uma obra singular no panorama português, fez-se grande na música de intervenção, deixou marcas profundas no fado, e transformou-se numa influência para muitos artistas contemporâneos. Várias gerações conhecem de cor temas como Inquietação e A Camtiga é uma Arma, Vim de Muito Longe, ou o emblemático FMI, ou álbuns como Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), Margem de Certa Maneira (1973), Ser Solidário (1982), A Noite (1985), Canções Escolhidas (1999), Resistir é Vencer (2004).
E ainda que muitos o associassem, ainda e sempre, à sua vertente de cantor militante, voz política, importa sublinhar a vitalidade que trouxe ao panorama nacional e a capacidade de resistir e reinventar-se, assim como a fina poesia que imprimia às palavras e o profundo conhecimento como compositor e arranjador. Algo que o próprio José Mário Branco gostava de sublinhar. Em entrevista a Pedro Dias de Almeida, nas páginas da VISÃO, a propósito do disco Resistir é Vencer (2004), o cantor afirmava que «a resistência é já uma vitória». E acrescentava: «E é não só uma vitória contra o adversário, o inimigo, mas contra os limites, as limitações, os obstáculos que o mundo põe à nossa frente. No caso dos criadores, mais ainda do que isso, é uma vitória sobre si próprio. Na luta que é a criação contra uma matéria-prima que é a página em branco, ou o silêncio, para os músicos.»
Enquanto figura pública, o cantor permaneceu um farol exemplar a seguir: praticante de uma ironia que não se perdeu, exibia a resiliência de quem não cedeu nem se vendeu, sempre atento e crítico das condições do país, e resistente às modas e às medalhas fáceis. Aliás, Marcelo Rebelo de Sousa, lamentando esta perda, alvitrou a hipótese de uma homenagem póstuma, se a família assim o permitisse. Em declarações aos jornalistas, o Presidente da República lembrou-o como um «lutador» na oposição à ditadura e uma «voz inconfundível» de uma «geração de abril», um «revolucionário» assim como alguém «sempre insatisfeito» para quem «havia uma parte de Abril que estava por realizar».

A cantiga, e a guitarra, como armas de intervenção em José Mário Branco
Créditos: Luís Vasconcelos
Créditos: Luís Vasconcelos
Lutador
Nascido no Porto, em maio de 1942, filho de professores primários que lhe deram o nome de José Mário Monteiro Guedes Branco, o futuro músico cresceu entre as geografias do Porto e de Leça da Palmeira. Estudou história na universidade, mas não completaria o curso. Cedo filiado no Partido Comunista Português, foi alvo de perseguição pelo regime de Salazar, acabando por exilar-se em França. Em rota de colisão com o Estado Novo, a sua luta faz-se com músicas. O seu primeiro disco chama-se Seis Cantigas de Amigo (1967), mas é em 1971 que José Mário Branco lança um álbum fundamental: Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), alimentado pelas palavras de O’Neill, Camões, Natália Correia e Sérgio Godinho. No mesmo ano, produziu o célebre disco de José Afonso, Cantigas de Maio (1971). E dois anos passados, grava, ainda na capital parisiense, Venham mais cinco com Zeca Afonso, igualmente perseguido pela ditadura.
Após regressar do exílio, em 1974, José Mário Branco foi co-fundador do GAC- Grupo de Acção Cultural – Vozes na Luta, juntamente com Fausto, Afonso Dias e Tino Flores. E se é considerado um dos mais importantes autores e renovadores da música portuguesa, em particular no período da revolução de abril de 1974, o seu trabalho estendeu-se também ao cinema, ao teatro, à ação cultural: o artista integrou A Comuna – Teatro de Pesquisa, fundou o Teatro do Mundo, a União Portuguesa de Artistas e Variedades. Trabalhou na direção musical e composição de filmes para realizadores como João Canijo, Paulo Rocha, ou Luís Galvão Teles.

Três Cantos, a reunião de cúmplices e resistentes: José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto Bordalo Dias
Créditos: Pedro Monteiro
Créditos: Pedro Monteiro
A música portuguesa deve muito à sua mão experiente. José Mário Branco foi produtor de, entre outros, Amélia Muge, Fausto, Janita Salomé, Luis Represas, Sérgio Godinho, Carlos do Carmo, Camané. O fadista que lançou agora Aqui Está-se Sossegado (com Mário Laginha) referiu à RTP que o compositor tinha sido «extremamente importante» na sua carreira, e recordou-o como «um artista fantástico de uma dimensão incrível, muito para além de um artista de intervenção», alguém que tinha «bom gosto, respeito pela estética musical e uma sensibilidade única». Também Sérgio Godinho, manifestou nos media uma «dor muito profunda» pela morte de José Mário Branco, seu «irmão de armas» que conheceu igualmente no exílio francês e com quem viveu «muitas aventuras criativas e pessoais». Nestas, inclui-se certamente o famoso concerto a seis mãos, Três Cantos, em que Fausto Bordalo Dias se juntou a José Mário e a Sérgio – de que resultou concertos, um álbum e um DVD. A última vez que colaboraram juntos seria no álbum Nação Valente, lançado por Godinho, e em que José Mário Branco Branco compôs o tema Mariana Pais, 21 anos.
Onde estiver, o «Zé Mário» estará certamente a trautear: «Eu vim de longe/ De muito longe/ O que eu andei p’ra’qui chegar/Eu vou p’ra longe/P’ra muito longe/Onde nos vamos encontrar.»
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