No filme Blade Runner, realizado por Ridley Scott em 1982 (a partir do livro de Philip K. Dick Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de 1968), está sempre a chover. Anúncios publicitários prometem uma vida melhor a quem optar por abandonar a Terra e viver em colónias espaciais – e outros, simplesmente, vendem Coca-Cola, viagens na Pan Am ou produtos eletrónicos da TDK. Estamos em 2019 e numa Los Angeles que parece transformada numa gigantesca Chinatown é difícil distinguir androides (cada vez mais perfeitos) de seres humanos. Recorde-se que o romance de Philip K. Dick situava a ação em 1992, mas Scott achou mais prudente e verosímil escolher uma data já em pleno século XXI. “É uma característica comum nas novelas do escritor: a esmagadora maioria passa-se num near future [futuro próximo], entre 20 e 150 anos por comparação com a data da escrita ou de publicação”, diz Jorge Martins Rosa, docente de Ciências da Comunicação na NOVA FCSH e autor de uma tese de doutoramento sobre a ligação entre Dick e os discursos da cibercultura. “Uma explicação plausível é que, ao contrário da ficção científica que tem lugar num far future [futuro distante], não só é mais fácil conferir alguma verosimilhança, tendo em conta algumas tendências da técnica, como, acima de tudo, privilegiar uma leitura sociopolítica do próprio presente.”
Vendo, hoje, Blade Runner com o olhar direcionado para o potencial de previsão do futuro de qualquer obra de ficção científica, chegamos a caminhos contraditórios. Se, por um lado, hoje estamos longíssimo de colónias espaciais com vida humana fora da Terra e da existência de robôs androides quase perfeitos a emular, e superar, o ser humano (é verdade que já temos a Sophia, inventada por uma empresa de Hong Kong e com cidadania atribuída na Arábia Saudita, empenhada em aprender com a experiência, mas não é preciso nenhum teste complexo, como o Voight-Kampff do filme, para a distinguirmos dos humanos…), por outro, são muitas as cenas de Blade Runner para as quais olhamos com um sorriso condescendente. Computadores com ecrã preto e carateres verdes? Cigarros em espaços fechados? Máquinas de aspeto hoje obsoleto (incluindo os carros não voadores nas ruas de Los Angeles)? O mais gritante é a ausência de qualquer objeto que se assemelhe a um telemóvel e a dificuldade em prever algo tão marcante como a internet… Mas é verdade que, numa cena, Rick Deckard (Harrison Ford) interage com uma máquina com ecrã (para conseguir ampliar uma imagem) utilizando a voz (Bingo! Era algo fantasioso em 1982 e que a tecnologia nos permite fazer, agora, com alguma facilidade). “Não sou grande adepto de que se interprete a ficção científica a partir da sua capacidade para prever o futuro, embora não deixe de ser um exercício com piada”, avisa Jorge Rosa. “Prefiro lê-la como uma forma indireta de olhar para o presente e refletir sobre este.”
“Nada neste planeta é criado no vazio, e aquilo que criamos em cada momento é inevitavelmente fruto do ecossistema cultural que nos rodeia”, diz-nos Nelson Zagalo, professor de multimédia, ligado à Universidade de Aveiro, e observador atento dos fenómenos relacionados com a cultura popular e a tecnologia. E recorda-nos a escolha da revista norte-americana Time para a figura de “homem do ano” em 1982: “the computer”, o computador. “É um ano-charneira de produção cultural ligada aos efeitos da tecnologia com natural pendor distópico pela facilidade de criação de conflito. Ou seja, o final dos anos 1970 e início dos anos 1980 é um dos cernes da revolução informática em termos populares, pela simples razão de que marca o momento em que os computadores entram nas casas das pessoas: em 1977, a Apple lançava o primeiro home computer, o Apple II, mas caríssimo; em 1981, a IBM vulgariza a sigla PC com o seu personal computer e começa a entrar em força na casa das pessoas; em 1982, o ZX Spectrum torna as máquinas de computação completamente ubíquas”, explica Nelson. “O computador não era apenas mais um eletrodoméstico, ele altera completamente a nossa relação com a realidade, os automatismos que potenciava acabariam por trazer de novo para o imaginário criativo as ideias que pululavam a nossa fantasia à volta dos Automata [robôs]; e, assim, se no caso de Blade Runner se olha para a diferença entre humanos e máquinas, os seus perigos e distopias, em Akira olha-se antes para os resultados da sua fusão e os seus impactos nas nossas capacidades humanas.”
No mesmo ano em que o mundo via nas salas de cinema essa longa-metragem de Ridley Scott, condenada a tornar-se filme de culto, no Japão começava mais uma saga em quadradinhos a preto-e-branco (publicada na revista Young Magazine até 1990): Akira impôs-se junto do público japonês e, quando foi publicada em livro (em 1984), tornou-se um impressionante best-seller que não demorou a chegar aos mercados norte-americano e global (fenómeno muito impulsionado pela adaptação cinematográfica de 1988). O ano da ação era, como em Blade Runner, 2019, mas numa versão (ainda mais) pós-apocalíptica: a Terceira Guerra Mundial tinha eclodido em 1982, depois de uma explosão atómica no Japão, e a cidade Neo Tóquio estava, agora, entregue a gangues de jovens desordeiros em motas potentes (mais credíveis em 2019 do que algumas geringonças de Blade Runner). No centro da complexa ação, há jovens com misteriosos poderes especiais e um governo opressor, militarizado e com programas “científicos” secretos. Se há uma possível leitura política e social que até pode ecoar no presente (e no futuro que se vislumbra a partir deste nosso presente), os cenários desta obra pioneira do imaginário cyberpunk são demasiado fantasiosos para nos provocarem algum sentimento de identificação em 2019.
“O simples facto de tentarmos prever o futuro, seja por que modo for, pela via da ficção científica ou da Ciência, já altera esse futuro”, diz à VISÃO Nelson Zagalo. “É por isso que acaba sendo algo desanimador ver tanta ficção apenas centrada na distopia, não existindo quase espaço para a utopia nas últimas décadas. Podemos dizer que prever a distopia implica a reflexão sobre como lidar com ela, o que é bom, mas, se não dedicarmos tempo a imaginar a utopia, não passaremos de seres continuamente em modo de sobrevivência, a tentar lidar com os problemas, e não a criar o seu próprio e desejado caminho.”
O futuro, afinal, pode esperar: começa sempre amanhã, e já aprendemos (à custa de muita ficção científica?) que é praticamente impossível antecipá-lo ou adivinhá-lo em pleno.