Planear a visita ao Centro:
Ainda mal tínhamos posto um pé dentro do carro que nos levaria à zona conhecida como Pinhal Interior e já uma sms abria caminho ao que iríamos encontrar durante a reportagem. “Tenho a certeza de que, com todos os encontros que os seus olhos, ouvidos e coração vão ter, estes serão dias inesquecíveis”, assegurava, logo pela manhã, Marli Monteiro, da Agência Regional de Promoção Turística do Centro de Portugal. Nunca a conhecemos pessoalmente, mas garantimos que o seu entusiasmo com o território onde estávamos prestes a entrar não era puro marketing. Mas isso só saberíamos duas horas mais tarde, quando estacionámos no topo de Casal de São Simão e começámos a descer a única rua desta pequena terra que pertence ao concelho de Figueiró dos Vinhos – uma das 27 que integram a rede Aldeias do Xisto.
Foi uma pena batermos com o nariz na porta do restaurante Varanda do Casal, aberto há oito anos pelo município. Apesar de ser o seu dia de folga, Renato Antunes, 33 anos, veio de Figueiró dos Vinhos para nos explicar que se trata de um negócio familiar lançado em 2014 e que é a mão hábil da mãe que assa o cabrito no forno de lenha, faz o estrugido para a vitela no tacho ou cuida da cabra para a chanfana. Este espaço, com 60 lugares, funciona como uma âncora de atração, trazendo muita gente aqui, especialmente aos fins de semana e no verão, claro. Só que, este ano, a coisa está mais difícil: “Noto diferença por causa dos incêndios.” E de imediato recorda aquela fatídica noite de sábado para domingo (17 para 18 de junho) em que esteve retido na aldeia até à uma da manhã. As chamas só lá chegaram no dia seguinte e não fizeram mossa nas casas, porque os bombeiros e os habitantes do Casal de São Simão trataram de evitar que progredissem pela rua abaixo. Habitantes?! Foi a pergunta, em forma de espanto, que se nos colocou de seguida, porque, olhando pelas enormes janelas do restaurante, não se avista vivalma. As casinhas de xisto entremeado com calcário estão, na sua grande maioria, impecáveis. Mas gente, nem vê-la.
Quando as férias são uma ajuda
Descemos. E logo paramos para analisar o percurso pedestre adjacente a esta aldeia (se somarmos todos da rede, chegamos aos 500 quilómetros). Aqui, seriam cinco mil metros, galgados em cerca de duas horas, tivéssemos nós tempo para aproveitar este ar puro. Optamos então por fazer um atalho mais adequado à nossa condição de estar aqui em trabalho.
Ao calcorrear esse caminho, indo atrás do som da água que corre lá em baixo, avistamos duas bolas largadas ao calhas e adivinhamos que, no fim de semana, andarão por ali crianças a chutá-las, nem que seja contra uma parede. Notamos também que existem duas casas para alugar – em todo o território já há mil camas disponíveis para turistas e visitantes.
Por entre pedras e folhagem, e sempre a descer com o chilrear dos passarinhos como companhia, chegamos à ribeira. Dizem-nos que as casas que aqui estão com ar de ruína antes eram viveiros de truta, uma das iguarias da região. Agora ainda abundam naquelas águas e há muita gente que as pesca. Chegados a este ponto, avisamos já que não as provámos, o que é uma pena.
Atravessamos a ribeira por uma ponte de madeira. É nela que paramos à conversa com Carlos Simão, 44 anos, que traz a mãe segurada pelo braço. O pai e o filho Afonso ficaram para trás, a admirar a água que corre fresca por entre a vegetação. “Há15 anos que passo férias no parque de campismo de Pedrógão Grande, a minha zona de eleição. Desta vez, trouxe os meus pais, e vim mesmo para ajudar, porque sei que houve muitas desistências”, confessa este técnico de eletrónica, sob a concordância da mãe, que deixou a casa de Barcarena, no concelho de Oeiras, para estes dias na natureza. Só está triste porque não encontrou as Fragas de São Simão tão cristalinas como o costume – culpa das chuvas dos últimos dias que não foram travadas pelos matos, como acontecia antes dos incêndios. A nós até nos custa a crer que ainda houvesse mais transparência, mas isso é porque nunca nos banhámos por aqui. Teria sabido bem um mergulho, até mesmo uns salpicos, mas, depois de bebermos uma água no café que só abre no verão, voltamos a subir à aldeia para falar com Aníbal Quinta, o homem que há 30 anos decidiu começar a reerguer este cantinho do País.
Fazer diferente e servir de exemplo
Como é presidente da associação de moradores de Casal de São Simão, Aníbal pode falar pelos outros, aqueles que só aparecem quando o trabalho na cidade os deixa. No domingo, 23 de julho, estarão, aliás, todos reunidos para decidirem como melhorar o aceiro que já está aberto (e que os salvou do fogo) e erradicar as espécies não autóctones, pelo menos no perímetro de segurança da aldeia. “Os contactos estão feitos e a abertura é total. Tenho a certeza de que vamos conseguir autoproteger-nos. No nosso perímetro não haverá eucaliptos e essa área vai passar a ser um jardim. Com a ajuda de técnicos, iremos plantar sobreiros, castanheiros, nogueiras e medronheiros.” Sabe que não será fácil, mas Aníbal gostava que o modelo pensado aqui na aldeia fosse replicado no resto do País. “O Estado devia financiar a nossa iniciativa, mas se isso não acontecer, agiremos na mesma”, garante, sentado no simpático alpendre de sua casa, onde, adivinhamos, fará muitas patuscadas com os amigos.
“Que este incêndio sirva para corrigir os erros a nível nacional. Aqui existe capacidade para fazer diferente”, reconhece Armando Carvalho,57 anos, o engenheiro florestal que esteve na génese da rede das Aldeias do Xisto, quando a região ainda era conhecida como pinhal interior. A coisa começou então com a infraestruturação das terras para que as condições de habitabilidade se tornassem um pouco melhores. Depois, um programa de recuperação de fachadas e coberturas deu o último empurrão para que os privados metessem mãos à obra, como fez Aníbal nesta pequena aldeia em Figueiró dos Vinhos.
A mancha de sobreiros que os salvou
Os ecos por aqui circulam bem, se não embaterem nas montanhas ou não forem parados pelo fogo que os queima. É por isso que na aldeia vizinha, Ferraria de São João, apesar de já pertencer ao concelho de Penela, a conversa não difere muito da de Aníbal Quinta. E até já se passou da teoria à prática. “Na segunda-feira a seguir aos incêndios, decidimos logo passar à ação, reunindo com os 44 habitantes para alterar o paradigma do que está aqui à volta”, conta Pedro Pedrosa, 46 anos, lisboeta, e atual dono do turismo Vale do Ninho, apontando para o sobreiral que salvou a aldeia de ser fustigada pelo fogo. A prova está a olho nu. Há vestígios de terra queimada em todo o perímetro de Ferraria e depois vê-se uma mancha verde, qual aldeia gaulesa, composta por cerca de duas centenas de sobreiros. E o fogo chegou lá, queimou uma ou duas árvores, e parou.
Quando um dos proprietários desse sobreiral quis vender 84 árvores, a associação de moradores comprou-as para mantê-las exatamente no mesmo sítio, enriquecendo o espaço público, com exemplares que têm mais de 200 anos. Depois, deram-nas para adoção – a troco de 60 ou 80 euros anuais, consoante o tamanho do sobreiro (neste momento, 60% têm dono), os adotantes têm direito a metade da cortiça dele extraída e à sua sombra. E, em setembro, podem piquenicar todos juntos, dando vivas por o abate dos sobreiros ser proibido desde 2001. Com o dinheiro arrecadado com esta iniciativa, a associação de moradores vai recuperando a aldeia e tratando de protegê-la, como está a acontecer neste momento. Na verdade, vão limitar-se a cumprir a lei (Decreto-Lei 124/2006), que proíbe que a menos de 100 metros das paredes das casas haja explorações, pastagens ou árvores.
Por estes dias já têm as parcelas (ou miniparcelas) todas assinaladas, para que um GPS de alta definição faça a digitalização da área. Depois de tudo identificado com os nomes dos 58 proprietários que existem nos 36 hectares em questão, vai proceder-se ao corte de toda a madeira e arrancar as raízes do que ardeu. Com a ajuda de especialistas, e só em outubro, irão plantar espécies autóctones, cumprindo o espaçamento devido para evitar o fogo e embelezar esta zona-tampão. “Teremos de compensar as pessoas pela não exploração florestal com outro tipo de rendimento”, lembra Pedro, que está otimista porque até agora não teve negas de ninguém. “Estamos a trabalhar em cima da emoção que vivemos por estarmos cercados pelo fogo.”
Flores que não nos deixam esquecer
Pedro também agiu sobre a emoção de ter de fechar o seu negócio durante uma semana para colmatar os danos, ele que combateu as chamas à sua porta e teve de evacuar um casal com dois filhos pequenos para Coimbra. “Ao todo, perdi 20 noites, mas isso já foi compensado com outras reservas”, nota. Só conseguiu esta proeza porque falou com todos os seus clientes e explicou-lhes que as atividades na aldeia se mantêm, que podem continuar a amassar o pão, a fazer o queijo, a ajudar na horta, a dar braçadas na piscina. E avisou também que os percursos pedestres ou de bicicleta ficaram, na sua grande maioria, intactos. Aliás, é importante lembrar que é em Ferraria de São João que existe a primeira estação de serviço de BTT (há outras 10 pelas aldeias), com estacionamento, balneários, lavagem e mapa com percursos, para que os ciclistas usufruam do território de forma autónoma e eficaz.
Não saímos de Ferraria de bicicleta, mas deu para sentir o impacto do fogo, três semanas depois de ele ter consumido 46 mil hectares. E nem vale a pena pensar que o caminho é fácil. A sinalização já foi substituída, assim como os rails estragados e retorcidos pelas altíssimas temperaturas que o fogo provocou, mas a devastação engole-nos enquanto cruzamos a Estrada Nacional 236. E as flores que pontuam a paisagem negra e desoladora não nos deixam esquecer que aqui morreu gente. Muita gente.
Mais à frente entramos na serra da Lousã e as eólicas passam a estar em evidência, deixando para trás o cenário triste. A paisagem dá tréguas e voltamos a estar rodeados de montanhas verdes, numa estrada de curva e contracurva. É então que reparamos na sinalética para os ciclistas – há toda uma cultura de bike associada a este território, com as subidas épicas para desafiar, trilhos para downhill, informação técnica disponível em vários ponto-chave, hotéis bike friendly (como é o caso do Vale do Ninho) ou as ditas estações de serviço.
A arte que mobiliza a aldeia
Por isso não nos espantamos quando na aldeia de Cerdeira vemos um turista a sair sozinho, com a sua bicicleta BTT pela mão. Daniel Dias, 32 anos, foge da sua Braga natal uma vez por ano para descobrir Portugal em duas rodas. Conhecia a zona da Lousã de carro e tinha vontade de descobri-la melhor – através do circuito das Aldeias do Xisto. Instalou-se nesta aldeia recôndita, sem televisões ou rede de telemóvel, em que o wireless funciona (quando funciona) apenas no café Videira, que é também onde se toma o pequeno-almoço. E daqui saiu para fazer cerca de 40 quilómetros, cruzando-se com muito pouca gente, e apreciando a paisagem como ninguém. Esta paisagem que nos tira o fôlego, que pede que continuemos aninhados no pequeno emaranhado de casas, encravado na serra completamente verde, a 700 metros de altitude. O silêncio, já se adivinha, instala-se em Cerdeira durante quase todo o dia, mas principalmente quando cai a noite, e pode trazer consigo um nevoeiro que se abate repentinamente sobre o casario.
José Serra espera-nos para nos contar tudo sobre o projeto Cerdeira Village, antes de se meter à estrada até Lisboa e nos deixar a dormir numa das nove casas que recebem, em conjunto, até 45 turistas.
Aqui é a arte que traz gente a uma aldeia antes quase deserta. E isso nota-se nos pormenores, mesmo em dias como este, em que não há nenhum artista em residência ou curso a decorrer na arts & craft school. Deve-se à artista alemã Kerstin Thomas, instalada em Cerdeira desde 1990, mas atualmente de férias fora da região, o desenvolvimento neste sentido. Resta-nos então espreitar o forno comunitário, que ainda cheira a broa, a Casa das Artes repleta de materiais e peças em construção, as oficinas, o grande forno sem fumo para cerâmica, desenhado pelo mestre japonês Sasukenei, e as casas de alojamento, decoradas com elementos de artistas que por aqui passaram. Todos os anos há a edição dos Elementos à Solta, que transforma esta aldeia mágica numa galeria a céu aberto.
Perdemos a oportunidade de ver essa festa das artes por uns dias, mas ainda descobrimos alguns resquícios pendurados nas paredes de pedra. Conseguimos, isso sim, cheirar as plantas aromáticas biológicas que aqui crescem, pela mão de António Carlos Andrade, há 17 anos. Um dia, calhou subir até Cerdeira e nunca mais de cá saiu, embrenhado que está no poejo, na erva-príncipe, na pertétua-roxa ou na lúcia-lima. O negócio, garante, é sustentável e não pensa abandonar a aldeia que tão bem o acolheu quando ainda vivia sem eletricidade (só aqui chegou em 2006).
Um sítio muito autêntico
Já que se trata de uma região que fomenta o turismo ativo, decidimos largar o carro e ir a pé até ao Candal, a aldeia vizinha, pelo meio da serra, cruzando um caminho que se faz, energicamente, em meia hora. Na véspera, falaram-nos muito em veados e javalis, que por vezes fazem visitas-surpresa – e pacíficas – por aqui. Mas não tivemos sorte nos encontros. Apenas podemos deliciar-nos com a diversidade de borboletas que nos acompanharam no caminho ou com a música de fundo das muitas espécies de aves. Nada mau para quem vive na cidade.
Entramos em Candal pela parte de cima da aldeia e logo percebemos que por entre as suas ruelas passa um ribeiro. A população, que não vai além das duas pessoas permanentes, mas que cresce exponencialmente aos fins de semana, arranjou forma de prender a água para ter uma pequena piscina natural onde dar uns mergulhos quando o calor se torna insuportável. Uns passos mais abaixo, encontram-se os lavadouros em pedra, à moda antiga. Aqui ainda hão de ter uso, a avaliar pelo frasco de detergente, esquecido junto a um tanque de lavagem de roupa à mão. Como em muitos sítios por estas bandas, o rol de equipamentos comunitários passa também por um churrasco, que imaginamos cheio de grelhados num dia de verão.
Também há um restaurante mas, logo por azar, encerra hoje. É uma tristeza para o grupo de seis belgas de meia-idade que estão parados, sentados à sombra, na esperança de que as portas se abram e lá possam beber um café. Quando lhes dizemos que tal não vai acontecer, acabam por regressar às suas bicicletas e meterem-se a caminho, serra acima. Já é o terceiro dia em que pedalam cerca de 50 quilómetros, para conhecer este Portugal tão puro. Os seis amigos aterraram no Porto, com uma viagem organizada, e depois foram levados de carro até à Lousã, que fica a escassos 10 quilómetros do Candal. Hão de ser apanhados outra vez para regressarem à Bélgica. Tudo o resto, fazem-no, muito bem equipados, em duas rodas. Antes de se sentarem no selim, comem bananas que trazem nas malas para dar energia e despedem-se dizendo, simpaticamente: “É um sítio muito bonito e autêntico.”
De passagem pela civilização
Alexandra Lopes veio comemorar os seus 50 anos, numa viagem ao Centro do País, com a filha Catarina, de 17, e nunca seriam os incêndios a demovê-las – antes pelo contrário. Não vão em bicicletas nem em caminhadas, mas isto também se pode ver muito bem a partir das janelas do carro, desde que os olhos se mantenham abertos. Estão fisgadas nas praias fluviais, nota-se logo pelas alças dos fatos de banho a aparecer por baixo das camisolas e, para não se enganarem no rumo, Alexandra tira da mala a cábula onde tem os seus apontamentos escritos à mão. Apostamos que nesses rabiscos estará o complexo natural e paisagístico de Nossa Senhora da Piedade. Pelo menos, é para lá que vamos, depois de passarmos na aldeia de Pena para tirarmos um retrato.
O caminho leva-nos à Lousã e isso é bom para quem ressaca com a falta de civilização, porque nesta vila há internet, rede de telemóvel, multibanco e outros avanços civilizacionais do género.
Não saímos do carro, nem paramos. Preferimos fazê-lo dois quilómetros à frente, junto ao castelo de Arouce, construído em xisto, na segunda metade do século XI, no topo de um monte, na margem direita do rio com o mesmo nome. À sua volta há piscinas naturais e um santuário. Por estes dias, a zona enche-se de gente, que ora refresca o corpo ora cuida da alma. Para os assuntos espirituais, há que subir uma escadaria; para tratar do calor, o sentido é descendente.
Se nos afastarmos da área do restaurante e enveredarmos até uma pequena represa, o ambiente muda radicalmente e a evasão torna-se obrigatória – o bruaá dos mergulhos infantis fica para trás, assim como toda a gente, ao mesmo tempo que a vegetação se torna mais selvagem e a sombra bem fresca.
Não foi o caso, mas teria sido adequado sentarmo-nos no enorme baloiço de madeira posto aqui pela Câmara, depois do nosso almoço repleto de produtos regionais, no D. Sesnando, em Penela, a vila que funciona como uma das portas de entrada deste território unificado pelas Aldeias do Xisto. Só não saímos de lá a rebolar porque o carro estava para cima e ninguém consegue fazê-lo em sentido ascendente. Mas há lá estômago que continue incólume depois de provar ovos mexidos com farinheira, queijo rabaçal gratinado com mel, chanfana, cabrito, bacalhau no forno, bucho e morcela doce? Isto para não chegar às sobremesas. Carlos Zuzarte, 44 anos, manda no restaurante, mas quem trata da comida é a sua mãe – bendita seja por cuidar tão bem destes produtos-rei.
Fazer algo antes que isto acabe
Não vimos javalis ou veados, já nos lamentámos, mas cabras foi um fartote. Ou não estivéssemos numa zona serrana, que tem na chanfana (um assado de cabra velha) o seu prato-estrela. Mas como o mel também é delicioso por aqui, ganhámos coragem para ir com o apicultor Manuel Claro até bem perto das suas abelhas. É ele quem, aos 70 anos, ainda mostra aos visitantes das aldeias vizinhas Aigra Nova e Aigra Velha como se constróiem os cortiços que estão espalhados pelas encostas para o fabrico artesanal do mel. A cresta só vai fazê-la em agosto, que é quando o produto estará no ponto para conseguir produzir cento e tal quilos. “Ainda me lembro de ir com o meu pai à Lousã, com as abelhas numa caixinha, para que um senhor as usasse para picar a zona onde sofria de reumatismo”, conta, enquanto se dirige, de peito aberto, para os seus insetos.
Nos burros só lhes pudemos tocar porque são uma simpatia, especialmente se formos até sua casa com Jorge Lucas, 49 anos, o escuteiro que agora se dedica a dar vida a Aigra Nova (e por arrasto Aigra Velha, Pena e Comareira), através da Lousitânea, a liga dos amigos da serra da Lousã. “Vamos fazer alguma coisa antes que isto acabe”, pensou antes de se atirar ao ecomuseu que conta a história cultural e ambiental destas aldeias do concelho de Góis e região que as envolve. Para atrair gente até ao museu, pensou-se também em atividades lúdicas, como ficar a saber mais sobre o mel, com o senhor Manuel, participar no descamisar do milho, aprender como se cultiva numa horta vertical, fazer um atelier de queijo e broa, ou seguir a Elsa e as suas cabras, que aos 55 anos, é a única pastora da serra.
Apadrinhar uma árvore e vê-la crescer
Assim que se entra nesta aldeia, que tem o seu epicentro junto à loja das Aldeias do Xisto, porque também é café e ponto de encontro de todos os que por aqui passam, lê-se um enorme cartaz a anunciar uma maternidade de árvores. Quisemos saber do que se tratava, e mais uma vez demos de caras com Jorge Lucas. Por entre as filas de estufas em socalco, vai explicando que, através deste projeto que já é antigo, podemos apadrinhar uma árvore que aqui cresce desde a semente (€10). E, no Natal, até se recebe um postal com uma fotografia da afilhada. Assim que chega à fase de poder sair daqui para ser plantada na natureza, pergunta-se ao padrinho se quer acompanhar o processo.
A variedade não será um problema, porque ao passar os olhos rapidamente pelas placas com os nomes, registamos quase todas as espécies naturais da região: azevinho, tramazeira, bétulas, teixo, azereiro e, claro, carvalhos. “A maioria das pessoas dispensa estas árvores porque não dão madeira de forma rápida”, lamenta Jorge, lembrando que com elas não há trabalho de manutenção, porque estão perfeitamente adaptadas ao clima. “Depois dos incêndios, recebemos chamadas de meio mundo, mas os carvalhos – que eram o que procuravam – só devem ser plantados em período fresco, lá mais para o outono. Noto que agora as pessoas estão mais sensíveis ao assunto.”
Aigra Velha, mesmo ali ao lado, também só tem uma pequena rua, e antes ela terminava num portão, sempre fechado por causa dos lobos. Ainda cá está uma cancela de madeira, que dá entrada para umas hortas, que só podem ser da família Claro, a única que ainda reside neste pequeno casario.
Depois de levá-las a pastar logo pela manhã, Elsa guarda as suas cabras num cabril de pedra, que fica do lado esquerdo de quem desce. Mesmo em frente, é a casa dos cunhados e o núcleo do forno e alambique da família, visitável desde 2012. Quando se bate à porta para espreitar o espaço, recebe-nos o casal Maria do Rosário Claro e Coriolano Barata, ambos com 73 anos, porque são eles quem utiliza os equipamentos com valor histórico, ora para fazer aguardente e licores ora para fazer a tão afamada broa. Nos poucos tempos livres que o trabalho do campo proporciona, Coriolano cria esculturas em madeira e expõe-nas por aqui, ao ar livre.
A mulher dedica-se às flores e são tantas e tão desordenadas que a circulação exige agilidade.
Quando deixamos esta aldeia, já ao final do dia, encontramos a Bonita e o Pintas, o casal de cães adotados por este grupo de gente que quer fazer e mostrar como ainda se faz bem.
Um país surpreendente
A barragem de Santa Luzia fica no concelho de Pampilhosa da Serra e pede mesmo que se suba ao miradouro para a apreciar mais de cima e aos enormes rochedos que parecem suportá-la. A fotografia torna-se quase obrigatória, a não ser que se opte por descer para seguir o percurso pedestre que a circunda ou agarrar-se à via ferrata para fazer escalada pelas paredes rochosas, galgando os 200 metros que nos separam de chão firme.
Como nesta manhã o calor já ferve e a imobilidade das pás das eólicas mostra, sem truques, que não haverá nem uma brisazinha para o atenuar, decidimos, em vez de opções mais ativas, descer até ao Casal da Lapa, uma praia fluvial com areia e palhotas e uma estrutura flutuante que permite banhos mais controlados para quem não gosta de água de rio.
É lá que se refrescam Filipa Falcão, 42 anos, e Carlos Manuel, 55 anos, um casal de lisboetas de férias na região. Estão a dormir na aldeia de São Francisco de Assis, mesmo em frente às minas da Panasqueira, e durante o dia procuram as praias fluviais, ou piscinas naturais, como lhes chamam, para passar o dia. “Temos visto sítios muito bons e praias bem trabalhadas”, afiançam, antes de voltarem para a água, que o sol, agora perto de estar a pique, não pede outra coisa.
Sorte a deles. Azar dos pescadores que se avistam na outra margem, lá ao longe, que esses não se molham.
Cá por nós, deixamos a água para trás e vamos fazer uns quilómetros até à Mata da Margaraça, na serra do Açor, que já pertence ao concelho de Arganil. Mal lá chegámos, percebemos que foi uma pena não ficar por aqui toda a tarde, abrigados na frescura que a densidade desta floresta proporciona. Mal se vê o céu, por entre a folhagem que se entrecruza lá no alto. “Podemos tentar adivinhar a idade destas árvores… eu diria que algumas têm para cima de cem anos, tendo em conta a sua envergadura”, arrisca Rui Simão, 42 anos, coordenador da ADXTUR, a agência para o desenvolvimento turístico das Aldeias do Xisto.
Adoraríamos ficar aqui neste jogo de adivinhas, mas o caminho de regresso à cidade ainda é longo e já se faz tarde. Antes de nos metermos à estrada, e só porque aqui há uma nesga de sinal de telemóvel, ouvimos o aviso de chegada de uma sms. “Bom-dia Luísa, creio que viu um país surpreendente!” Mais uma vez, Marli Monteiro, do Turismo da Região Centro, a ser oportuna na hora da partida e nada exagerada quanto ao adjetivo escolhido para o pedaço de mundo que acabávamos de descobrir.