E de repente, não mais que de repente, do riso fez-se o pranto. É assim que começa um dos mais belos e tristes sonetos de Vinicius de Moraes, intitulado Separação. Esta semana a minha crónica não tem sexo, só sensibilidade, amor e bom senso. Sensibilidade para a vida que nos escapa por entre os dedos por causa de uma doença crónica, de um ataque fulminante ou de acidente estúpido. De repente, não mais que de repente, um carro que vem na faixa contrária entra na nossa, o carro que segue à nossa frente vê o perigo e desvia-se, mas como seguimos atrás de um veículo que nos tapa a visibilidade, chocamos de frente com a morte.
A vida está cheia de acidentes estúpidos como estes. Acidentes que Deus não assina por baixo, citando António Lobo Antunes. Quando a morte leva alguém, digo sempre o mesmo: não existem palavras certas para os momentos errados. Quem ia naquela estrada àquela hora estava à hora errado no lugar errado. E de repente, não mais que de repente, a vida de todos aqueles que dependem daquela pessoa e que lhe são próximos, são violentamente obrigados e enfrentar uma nova realidade que não podem recusar: continuar a viver sem aquele ser amado. Filhos, irmãos, primos, amigos, ex-maridos ou antigos casos, a todos irá faltar um bocado para sempre. E cada um reage como consegue ao choque e à inevitabilidade. A partir daquele dia, as pessoas são obrigadas a viver outra vida, outra realidade. A morte de alguém próximo faz-nos olhar para o mundo com estranheza e perplexidade. O mundo mudou para sempre e demoramos tempo a ajustar-nos. É como se, de um dia para o outro, a cidade em que vivemos tivesse sido destruída e não conseguimos reconhecer ruas, prédios, igrejas e praças. O mundo ruiu em nosso redor e o nosso coração foi na enxurrada da destruição.
O que fazer então? Cada vez que alguém morre, agarro-me mais à vida. Dou mais atenção, carinho e amor aos meus. Dou mais tempo aos estranhos que me querem falar. Dou mais espaço ao coração para as coisas boas. Dou mais abraços e mando mais mensagens com corações. E rezo. Rezo pela alma de quem partiu e pela alma daqueles que deixou órfãos. Rezo para que aqueles que partem encontrem a paz e aqueles que fiquem encontrem a força suficiente para aceitar a perda, até que, daqui a alguns anos, consigam também alcançar a paz aqui na terra. Há pessoas que nunca recuperam e essas eu entendo-as, porque nem todas conseguem ultrapassar as dores mais profundas. Entendo-as porque só quem sente a perda sabe o que sente. A empatia não chega tão longe para captar esse tipo de tristeza. E uma perda irreparável é sempre uma perda irreparável, porque cada pessoa é única e insubstituível. Nunca existiu nem irá existir outra igual. Aquela pessoa era única. Ninguém poderá ter o mesmo sorriso, o mesmo olhar, o mesmo encolher de ombros perante um contratempo, os mesmo suspiros ou o mesmo perfume na pele depois de um dia de praia. Filhos e netos vão herdar a mesma cor de cabelo ou o mesmo ondulado selvagem, um pouco daquela pessoa que partiu fica nos genes, mas é apenas uma parte, nunca o todo.
Esta não é uma crónica para as pessoas se rirem com tiradas de humor mordaz, é uma crónica para pensarem na vida. Na vida de cada um e na nossa missão na terra, aquilo que nos foi destinado e que devemos fazer, para nosso bem e para o melhor do mundo. Falo de amor e de bom senso: amor aos mais próximos e tolerância para aqueles de quem menos gostamos; o colega de trabalho invejoso, uma paixão que nos deixou sem aviso, o irmão que tentamos ajudar sem sucesso, o vizinho que furou os pneus do nosso carro depois de uma festa até tarde. Amor como prática quotidiana como princípio, meio e fim. E bom senso para fechar a porta de vez a quem não merece nem o nosso tempo nem o nosso amor, porque ambos são escassos e preciosos.
As pessoas vivem como se fossem imortais. Pensam sempre que as desgraças só acontecem aos outros. Nunca pensam na morte, a não ser que estejam doentes ou que já a tenham visto de frente. Eu vi-a, há alguns anos, quando estive deitada numa cama de hospital, entre outros doentes na mesma enfermaria. As máquinas apitavam, os fios emaranhavam-se pelos meus braços acima, nas camas da mesma sala ouvia o medo na respiração alheia. Eu vi-a, com ar de ceifeira, a olhar para mim, mas tive sorte. Cheguei ao lugar certo à hora certa. Uma semana depois estava em casa. E tive direito a uma segunda vida. Aprendi a não ser orgulhosa, a não me zangar com minudências, a não me perder em pequenas zangas que afinal não têm qualquer importância. Aprendi que a vida é frágil e breve, e que de repente, não mais que de repente, aquela pessoa que nos fazia rir e nos dava abraços maravilhosos, já só viverá na memória e no coração daqueles que a amam.
A morte não brinca e nunca ninguém a enganou, por isso precisamos de amor, de sensibilidade e de bom senso para viver a vida o melhor que soubermos, a cada dia que passa; devemos mimar aqueles que amamos enquanto cá andamos, até que a morte nos separe.