Estou de férias no Algarve. Deitada numa espreguiçadeira em frente à piscina e por baixo de um guarda sol, delicio-me a ler “Morte em Veneza” do Thomas Mann. A minha irmã foi dar um passeio na praia e deixou as suas coisas na cadeira ao lado.
– Posso-me sentar nesta cadeira?- pergunta um homem ainda jovem, com uma pronúncia estrangeira.
– Pode sim. A minha irmã não volta tão cedo – e coloco no chão a toalha, o saco e o livro aberto com a capa voltada para cima.
– Ah, “Paris, França” da Gertrude Stein! Eu sou francês!
– Mas fala muito bem português!
– Também falo alemão, inglês, russo, mandarim e italiano – responde dum fôlego e com uma voz monocórdica.
Poisa a sua toalha na cadeira e desaparece em passo rápido. Continuei a ler “Morte em Veneza” à sombra do guarda-sol. Passado algum tempo o choro de uma criança fez-me interromper a leitura e olhei para a piscina à minha frente. O mesmo homem que ocupara a cadeira ao meu lado estava a entrar a medo na parte mais baixa da piscina, onde se encontravam a brincar as crianças pequenas. Descia os degraus a medo, dava uns passos com a água a chegar-lhe às coxas e em seguida saía da água subindo novamente os degraus. Um senhor já idoso, sentado no beiral da piscina a tomar conta de uma criança, olhava com ar desconfiado e hostil para ele. Na verdade, que faria um adulto de pé, na parte mais baixa da piscina e no meio daquelas crianças pequenas? Indiferente a tudo, o francês repetiu estes movimentos de entrada e saída da piscina pelo menos dez vezes, mas de cada vez percorria a pé um caminho mais longo conseguindo, ao fim de uma hora, atingir o centro da piscina onde a água lhe chegava a meio do tronco. Enquanto permanecia na água, a espaços de tempo regulares, dava três pulinhos. De repente fez-se-me luz e percebi tudo. Autismo. Isso explicava a forma estranha como se dirigira a mim pedindo para ocupar a cadeira a meu lado onde se encontravam os pertences da minha amiga; a apetência extraordinária para falar diversas línguas; os movimentos repetitivos e bizarros na piscina. Para mim, médica especializada em alterações neuro-comportamentais era óbvio, mas não o era para os outros. Imagino, por exemplo, que o senhor que o observava desconfiado, pudesse estar a pensar que se tratava de um pedófilo….
O termo “autismo” deriva da palavra grega “autos” que significa “o próprio”. O autismo é um “saco” enorme onde estão muitas doenças diferentes, a grande maioria ainda sem um marcador biológico. A gravidade dos sintomas é também muito diversa, existindo pessoas com esta perturbação e défice intelectual profundo e outras dotadas com capacidades extraordinárias em algumas áreas do conhecimento. Em comum, todos têm alterações da comunicação, podendo ter uma linguagem muito rica mas não eficaz. Habitualmente a fala tem um tom monótono, sem entoação. Muitos repetem em eco o que dizemos, outros fazem perguntas obsessivamente. Para além disso, os seu interesses são restritos, sendo habitual um interesse extraordinário e obsessivo por história, geografia, informática, arquitetura, línguas estrangeiras, etc. Têm comportamentos repetitivos e ritualizados sendo frequente, sobretudo naqueles que têm défice intelectual mais grave, movimentos repetitivos com as mãos, rodar à volta de si mesmo, inspecionar de forma repetida um objecto, andar em pontas de pés, etc. A sua forma de funcionar é rígida e gostam de rotinas e repetição.
Não existem tratamentos eficazes, e apenas vamos tentando melhorar os seus problemas de comportamento com a ajuda de terapias psicológicas específicas ou fármacos , e tentar inseri-los em meios adequados .
A maioria das famílias com filhos com autismo têm vidas muito difíceis. Lembro-me que há pouco tempo observei dois gémeos de oito anos. Iguaizinhos. Lindos. Altos, esguios, olhos azul mar, ombros largos e anca estreita. Tão bonitos como o pai, que ali se encontrava. A mãe era também uma mulher atraente, embora muito pouco cuidada. Eram os dois empregados fabris e tinham um ar exausto.
A mãe sentou-se à minha frente, mas o pai ficou de pé em frente à porta.
– Sente-se, por favor – pedi.
– Tenho que estar aqui, doutora. Eles vão tentar sair.
Percebi de imediato que tinha razão. O Tiago tentou afastar o pai e rodou a maçaneta da porta. O pai segurou-o com força pelos ombros e disse-lhe “não” com veemência, tentando buscar-lhe os olhos. Um som agudo e gritado saiu-lhe da boca. Em seguida deu meia volta e pulou repetidamente, agitando as mãos ao mesmo tempo, como que para sacudir algo. Paulo, o irmão, descobriu entretanto um pequeno automóvel no cesto dos brinquedos a que fez girar continuamente uma das rodas. De vez em quando parava, colocava o automóvel à altura dos olhos e mirava-o com o canto esquerdo dos mesmos. Em seguida continuou a girar as rodas. Se medíssemos o tempo, tenho a certeza que de tantos em tantos minutos fazia exatamente a mesma sequência de gestos. Parecia ter lá dentro um relógio.
Tocavam repetidamente na mesa. Alternavam o peso corporal, apoiando-se ora numa ora noutra perna, parecendo o pêndulo de um relógio. Colocavam as mãos em frente à cara e lambiam-nas, depois cheiravam-nas e em seguida agitavam-nas em frente aos olhos, fixando-as com o canto dos mesmos, como que a inspecionarem partículas microscópicas que só eles conseguiam enxergar. Não paravam quietos e por vezes batiam com o punho fechado na cabeça. Pareciam o espelho um do outro, mas desfasados no tempo. Por vezes um caminhava para um lado e para o outro ininterruptamente na sala e o outro mantinha-se sentado numa cadeira, roendo um objecto de borracha que traziam ao pescoço preso por um fio. Não fixavam o olhar em nós. Atravessam-nos com ele. Não sossegaram nem um minuto.
– Doutora, posso levá-los à casa de banho? Habitualmente ponho-lhes fralda quando vimos às consultas , mas hoje não tive tempo e, se me descuido, urinam-se todos…. Tenho que os sentar na sanita de duas em duas horas.
Saíram os três e de repente fica um silêncio quase constrangedor entre mim e o pai, que estava sentado à minha frente.
– Quer aproveitar para dizer alguma coisa?
Olhou-me nos olhos com cenho franzido, procurando algo para dizer.
– Não tenho nada para dizer.
– Como é a vossa vida em casa? Vocês conseguem descansar?
– Não sei o que a doutora chama “descansar”. Eu e a minha mulher trabalhamos numa fábrica de calçado. Levantamo-nos às seis. Vestimo-los e damos o pequeno almoço. Depois levamo-los a casa dos avós. Às oito passa por lá uma carrinha que os leva à escola. Vêm trazê-los às cinco da tarde a casa da minha sogra. Quando chegamos, às sete, ainda temos que os lavar e fazer o jantar. Depois deitamo-los lá para as dez, onze da noite e em seguida vamos nós para a cama. Mas nós até preferimos as semanas ao fim de semana. Eles gritam muito e não param quietos. Não consigo estar um minuto sentado quando eles estão acordados. Às vezes lá param um bocado a ver o tambor da máquina de lavar a roupa a girar. Parecem hipnotizados. Também gostam muito de automóveis e conseguem procurar na internet os que eles preferem . Não sei como. Não sabem ler, mas conseguem .
Bateram à porta. Eram eles novamente.
Um começou a pular com os pés juntos como um canguru. Os movimentos eram rígidos, quase robóticos. O outro começou a rodar um objecto nas mãos, pondo-o em seguida a rodopiar no chão. Eu nunca conseguiria fazer tal habilidade.
O que pulava, aproximou-se de mim por trás e observou atentamente o ecrã do computador. Em seguida debruçou-se e, colando a sua face à minha cabeça, fez uma inspiração profunda ao cheirar o meu cabelo.
– Têm problemas com a comida?- perguntei.
– Agora já nem tanto, mas nos primeiros anos foi muito difícil dar-lhes novos alimentos. Só queriam arroz ou massa. Agora já comem carne e peixe mas tudo tem que ser como eles querem. O arroz não pode ter um quadradinho de cenoura ou uma ervilha. Retiram tudo. Até nem se importam de comer cenoura ou ervilhas, mas cada alimento tem que estar isolado do outro em montinhos que não podem tocar-se.
– Conseguem vestir-se sozinhos?
– Não. Só com ajuda. Precisam de nós para tudo. Não se lavam, não vão à casa de banho, não falam. As pessoas olham para eles, assim tão bonitos e não acreditam que eles dependem de nós para tudo. São como dois bebés de um ano. Não brincam, nem nunca o fizeram. Caminham sem parar, gastam o chão.
Um deles sentou-se ao colo da mãe e inspirou-a profunda e repetidamente, com a face colada à dela. Entretanto, o outro gémeo descobriu a torneira do lavatório e meteu as mãos em frente do sensor de forma a por a água a correr.
– Têm uma obsessão por água, doutora. Temos que fechar à chave as portas da casa de banho e da cozinha para eles não mexerem nas torneiras. E também não podem ver garrafas com líquidos. Despejam tudo. Outro dia fomos com eles a uma festa de bodas de ouro de uma tia. As bebidas estavam todas numa mesa. Distraímo-nos um bocado a conversar e quando fomos procurar uma bebida eles tinham esvaziado mais de trinta garrafas de vinho. Ficamos tão envergonhados que nos viemos embora sem jantar.
Quando saíram da consulta fiquei a pensar no futuro daquela família. Que ajuda mais lhes poderia dar? Quem iria tomar conta dos gémeos após os 18 anos de idade?
Lembrei-me de um outro doente que observei em Cabo Verde. Igualmente grave.
Edinilson, 6 anos, Ilha do Fogo. Entrou como uma bala e, sem nunca ter olhado para nós, pôs-se de costas, virado para o lavatório, onde fez rodar a torneira para observar a água a correr. De vez em quando cerrava as pálpebras com força e emitia ruídos estranhos, guturais. Depois batia palmas a intervalos de tempo regulares. A mãe, uma crioula alta, muito elegante e de feições finas era casada com um dinamarquês que um dia tinha ido de férias para a ilha e por lá ficara. Daí os olhos e cabelo claro da criança. Perguntei à mãe quais os problemas do filho. Respondeu em crioulo:
– Diferença.
Pedi para especificar, contar a história do filho desde o nascimento.
– Ele parecia normal. Começou a andar aos 10 meses e com ano e meio dizia palavras com sentido. E compreendia quase tudo. Já comia com a colher. Era uma alegria. Depois teve uma diarreia com febre e começou a ficar diferente. Deixou de rir, parecia que olhava através de nós. Chamava-o pelo nome e não parecia compreender. Deixou de responder, parecia surdo. Começou a meter tudo à boca e a comer com as mãos. Gritava toda a noite, não nos deixava dormir. Depois passou a abanar as mãos, a rodar à volta dele. Nunca mais brincou. Pega nos carrinhos e só liga às rodas. Parece que o nosso filho se foi embora e deixou connosco o corpo! Olho-o nos olhos e não vejo nada. Nada. “Pa undi ki nôs fidjo bai?” (Para onde foi o nosso filho? )
Apesar de Cabo Verde ser um país de terceiro mundo com poucos recursos na área da saúde e educação, o futuro de Edinilson será provavelmente muito semelhante aos dos gémeos portugueses que observei. Têm um défice intelectual grave, não têm linguagem nem comunicam eficazmente de outra forma. Com ou sem ensino especial, irão ser sempre muito dependentes.
O autismo é uma condição tão complexa e com uma diversidade tão grande que necessita de pessoas extraordinárias a interessarem-se por ele, a diagnosticarem, investigarem, tratarem de diversas formas, educarem.
Desde que foi descrito pela primeira vez nos anos 40 do século vinte, por dois psiquiatras, Hans Asperger, Austríaco e Leo Kanner , Americano, pouco se progrediu no conhecimento dos mecanismos desta entidade. Muitos tratamentos têm sido tentados, mas nenhum eficaz.
A minha maior preocupação como médica é, depois do diagnóstico, tentar dar aos meus doentes e às suas famílias uma vida equilibrada, tentando inserir as crianças, sempre que possível, em ambientes que lhes permitam desenvolver e ser felizes. A grande maioria das pessoas com autismo não tem uma vida autónoma e necessita do suporte da família ou de uma instituição para viver. Existem contudo casos mais moderados e mesmo pessoas que cumprem os critérios de autismo e têm uma vida independente, embora sejam particulares na sua forma de funcionar. São exemplos disso Temple Grandin e outras figuras conhecidas que conseguiram descrever como vêm o mundo. Este último grupo, quanto a mim, não tem uma doença mas sim particularidades que os torna diferentes da maioria. Um antropólogo diria que pertencem a uma outra cultura e que devemos respeitar as suas diferenças.
Mas tal como Levy Strauss disse : “A humanidade está constantemente às voltas com dois processos contraditórios: um tende a criar um sistema unificado, enquanto o outro visa manter ou restaurar a diversificação.“ Penso que o grupo de crianças e adolescentes com autismo “moderado”, isto é, com ligeiro a moderado défice cognitivo, linguagem e compreensão da mesma, necessita efetivamente de programas especiais e intensivos de educação. As associações de doentes e os profissionais de saúde podem e devem pressionar os órgãos sociais para que tal aconteça. A grande maioria dos pais das crianças com défice intelectual grave e alterações de comportamento, vive no limite da exaustão física e psicológica. Vive também com o medo do futuro. “Com quem irá ficar o meu filho quando eu desaparecer?” perguntam-me. É necessário criar mais instituições, residências com técnicos especializados, onde estes doentes possam passar os dias ou o resto das suas vidas. É também necessário dar formação a jovens adultos de forma a permitir que adquiram competências para serem cuidadores auxiliares nestas famílias. Para que tal aconteça, temos todos que olhar à nossa volta, ser empáticos com os outros, importarmo-nos também com o que acontece fora das nossas vidinhas rotineiras. Porque, se pensarmos bem, também somos, nós os ditos normais, autistas. Paremos de vez em quando de rodopiar à volta de nós mesmos. Olhemos nos olhos quem nos rodeia. Importemo-nos.