Ufa, chegamos!
Desligo o rádio e olho para trás. Já era de estranhar tanto silêncio…. Sofia e Isabel dormem, cabeça contra cabeça, boca aberta, dois anjinhos.
Ligo outra vez o rádio à espera que acordem. O dia foi longo. Para mim e para elas. Às sete fora da cama, às oito fora de casa, às oito e trinta na escola, às dezasseis fora da escola, às dezasseis e trinta fisioterapia da Sofia, depois natação da Isabel, dezanove ainda no carro.
– Mãe, já deu o “Dó-li-tá”?
– Penso que está a começar. Acorda a Isabel, se querem ver.
Isabel chora com sono. Quatro sacos, casacos a minha carteira e pasta.
Em casa finalmente. “Que vamos comer?”. Elas escolhem e eu ponho-me a cozinhar. O pai chega, entretanto. Estoirado.
Jantamos.
– Meninas, lavar e cama.
– Só mais um niquinho….
– Seja!
Pijamas vestidos, camas abertas.
– Mãaae, a históoooria….
Quase adormeço a ouvir-me. “Era uma vez…”
– Conta mais uma!
– Hoje não, estou muito cansada. Amanhã conto. Contem vocês uma à mãe.
Silêncio. Deitadas no beliche, a Sofia em baixo, a Isabel em cima, oiço-as respirar enquanto pensam.
-Mãe, sabes que hoje morreu o peixinho da nossa sala? Fizemos um enterro.
-Puseram-no num caixãozinho?
-Não, metemo-lo na terra ,assim. A Goreti diz que foi para o céu.
Silêncio.
-Mãe, como é que o peixinho voa para o céu se não tem asas?
-Não sei, filha.
-Ó Sofia, não vês que é o Jesus que vem buscá-lo e o leva na mão?
-Mas o Jesus também não tem asas. Os anjos é que têm .
-Pois é. Então como voam, Sofia?
-Já sei, Isabel. O Jesus pega numa caixinha, põe-lhe um volante, pousa o peixinho a um canto e voam até ao céu. Num é, mãe?
-Deve ser, Sofia.
-Ó mãe, mas o peixinho no céu fica outra vez vivo?
-Fica, Sofia.
-Ó mãe , mas lá no céu não tem água! Como é que ele vive?
-O Jesus arranja-lhe água – diz a Isabel
-Mas depois a água cai-nos em cima da cabeça!
– É a chuva – diz a Isabel.
-Ó mãe, no céu as pessoas comem?
– Não sei Sofia, penso que sim.
-Ó mãe, já imaginaste se comem ovos estrelados e o prato cai? Vai-nos cair na cabeça!
Rimos as três.
– Bem, agora toca a dormir! Amanhã temos que nos levantar muito cedo.
A Sofia diz:
– Que bom mãe, amanhã é dia de nada.
– “De nada”, Sofia?
– Não tenho fisioterapia!
Sinto um arrepio. Que andamos nós a fazer? Lembro-me de uma conversa que tive há pouco com uma amiga em que falávamos de “meninos executivos”. Os meninos do ballet, música, inglês, karaté, iniciação à computação, natação, ténis, vida social ao fim de semana. Revejo os meus dias e os das minhas filhas. Será que não podemos abrandar um pouco? Perderemos assim tanto? Claro que a fisioterapia lhe faz muita falta, mas mesmo assim…Ela tem pouco tempo para brincar.
– Queres mais “dias de nada” , Sofia?
– Dás-mos, mãe?
– E porque não? Agora, dormir! A mãe ainda tem muito trabalho antes de ir para a cama.
Faz a dobra do lençol, puxa bem os cobertores e aconchega-os à volta dos corpinhos dando-lhes pancadinhas no rabo, retira-lhes os cabelos debaixo da cara e puxa-os para cima, dá-lhes mil beijinhos pela cara toda.
– Durmam bem meus amores.
Mais beijinhos, fecho a luz, encosto a porta.
A roupa por estender, arrumar a cozinha, fazer as mochilas para a aula de ginástica, corrigir os testes dos alunos. De repente, sente-se sem forças. Ouve barulho na cozinha. O marido arrumou-a, entretanto. Vai à lavandaria e a roupa também já está estendida. Faz as mochilas. Faltam os testes. Meu Deus, que sono! O marido já está no sofá a ver o “Seinfeld “. Dá gargalhadas com gosto e ela sorri só de olhar para ele. Lembra-se da filha. “Mais dias de nada”. Toma uma decisão.
-Vou já para a cama ler. Espero por ti.
Pisca-lhe o olho e atira um beijo no ar.
Noite de nada.