A pasta do vizinho
Chamavam-lhe o “Doutor da Pasta” porque o homem caminhava invariavelmente com uma pasta apertada contra o peito. E fazia-o com tal zelo que uma vizinha chegou a especular que se tratava de uma carga explosiva
O nome do pai
Aquela bagagem servia apenas para encher a vista dos outros. Um viajante é medido pelo tamanho da bagagem
A próxima visita
Não importa o tamanho da espera. A diferença está na idade de quem espera. É o que ele diz enquanto acaricia os joelhos como se neles se desenhasse o redondo da velhice
Viúvas vizinhas
Quase não havia distância a separarmo-nos. Como não haviam de ressoar dentro de mim os gritos de socorro da vizinha?
A estátua em segunda mão
Samora finge ignorar a solidão que o afasta da realidade. Talvez por isso, para fugir à sua condição, esteja de fato de treino
Os números mortos
Era a moça mais linda, no tempo do liceu. Exibia essa beleza que só existe para ser eterna
A cicatriz
O meu pai teve um destino engrandecido: foi dono de uma funerária. A empresa chamava-se “Eterna Esperança”. O pai recebia os clientes como se estivesse numa agência de viagens
A Tabuleta
– As pessoas para mim são como nuvens – divagou o mais novo dos três. – Passam por nós e cada uma parece ser única, mas depois são todas iguais
O tamboreiro
A guerra que agora vivemos espalhou tanta pólvora sobre os caminhos que é bem possível que os vivos e os mortos se tenham perdido uns dos outros
Lição de caligrafia
A escrita pretende ser uma arrumação do caos. E como há muita variedade de caos, também há muitos modos de os ordenar
O vendilhão do tempo
Dizem os antigos: deixemos o tempo sossegado para que ele possa dormir dentro de cada pessoa
O descrucificado
Às vezes penso que, desde há milénios, estamos todos, no mundo inteiro, abrindo a mesma estrada
A roupa e o nome
As razões dela eram simples de explicar: em casa ou no hospital, os nossos mortos são nossos, lavámo-los com as nossas lágrimas
O colchão
Com o andar do tempo, as mãos da minha mãe foram perdendo agilidade. Deitada sobre o seu colo, eu sentia um desgosto antigo travando-lhe os dedos. Não é no rosto, é nas mãos que a idade se revela
Morrer de raça (2)
Sabíamos que o mundo era grande, mas estávamos longe de pensar que houvesse uma tal variedade de raças
Morrer de raça (1)
Aconteceu o que receávamos: saiu daqui "muno mutema" e voltou "murungu". Noutras palavras, quando saiu era dos nossos, um negro congénito. Quando regressou, era branco
Uma submissa desobediência
Tudo isso recordo, sentada na minha cozinha, em frente à porta que nunca mais se abre. O locutor da rádio insiste: hoje pode ser o primeiro dia de uma vida nova
O eterno retorno
Conversa entre pedras
Agitado, Gama alertou: andava pelo mundo um movimento reclamando o derrube das estátuas. Se não as derrubavam, desfiguravam-nas com tintas sujas e frases feias. O poeta encolheu os ombros e relembrou os seus próprios versos: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”
A alma têxtil
Cancelara os serviços de telefone quando recebeu a notícia da morte do seu companheiro de armas, o general Acácio Teixeira Lobo. Teve medo de que aquela fosse a primeira de outras notícias fúnebres. E havia uma outra mágoa: anúncios de baixas fazem-se em visita solene, olhos nos olhos. Nunca por telefone
A libélula
No sonho, o filho corria por entre os arbustos à procura do que faltava no corpo da mãe. Esgueirava-se por entre a folhagem, e o ruído dos passos convertia-se num rastolhar de bicho. Mariana tinha olhos de caçadora, mas foi perdendo o rasto de Madzina. De súbito, escutou tiros. Conhecia bem esse estampido que faz suspender o mundo