Ulisses voltou para casa
Ulisses abriu o livro, a medo, e começou a ler. Quando era menino, o pai lia para ele. O pai, sentado na cama, lendo para ele, é a melhor lembrança que tem. Não apenas a melhor lembrança do pai. A melhor lembrança de toda a sua vida
O aroma das mangas
Sento-me num banco, diante do de Malan. Abro um livro, começo a ler um romance cubano e, seja pelo romance, que me leva para um outro mundo, muito diverso do meu, seja por estar tão próximo do antigo traficante, sinto que o tempo se expande e se dilui, como sal na água. A vida de Malan é um grande ruído acontecendo sem ruído, como os rios que correm sob a superfície da Lua. Antes de exercitar-se na arte de expandir o tempo, Malan correu atrás dele
A escrava portuguesa de Mutu-ya-Kevela
Em criança, ouvi velhos colonos contarem inúmeras histórias de Samacaca. Dizia-se que os vendavais lhe obedeciam, assim como as serpentes, e que era capaz de se tornar invisível aos olhos dos inimigos. Em algum momento, perdeu as artes mágicas. Foi aprisionado em 1905 e deportado para a Guiné-Bissau, onde terá falecido. Até hoje existe um pano, do vestuário tradicional, que tem o seu nome
Matulai, o vento Sul
A ilha é uma cápsula do tempo. Nada do que é presente nos alcança. Vez por outra, surgem turistas. Não lhes perguntamos de onde vêm, mas de quando. Naturalmente, vêm, todos eles, de algum instante no futuro
O exílio do senhor Palácios
Ivete lembrava-se dele quando ainda eram sete pessoas em casa, toda a gente falando ao mesmo tempo durante as refeições, e aquele silêncio sólido crescendo como uma nuvem negra à cabeceira da mesa
A menina que colecionava espantos
Desde bebé que Kalumba-Tubia conversa com vaga--lumes. Na verdade, com todo o tipo de animais, mas especialmente com aqueles capazes de voar. No início, os pais riam-se muito ao ouvi-la dialogar com os pássaros, os besouros e as borboletas. Depois, começaram a ficar preocupados. Um psicólogo tranquilizou-os: “Não há nada de errado com a menina. Conversar com os animais é uma forma que ela encontrou de estabelecer vínculos com o mundo que a rodeia”
Meu amigo Waldemar
Nunca se calou. Nunca se deixou comprar, nem pelo regime, nem pela principal força da oposição. Ao mesmo tempo, foi apoiando sempre todas as iniciativas visando a pacificação e a democratização do país. Marchei ao lado dele, em manifestações que não reuniam mais de quinze almas inconformadas, e noutras, muito mais raras, entre centenas de pessoas
A voz discordante
Maciel sentou-se no sofá, esquecido dos ovos que estalavam na frigideira: quem seria aquela mulher? Começou a imaginar rostos que se adaptassem a uma voz assim. Tinha de ser ruiva, com uma cabeleira em chamas e uns olhos azuis de fim de mundo. Durante 15 dias sonhou com ela
Todos os domingos
Cada uma daquelas estátuas pretendia perpetuar a memória e a grandeza do projeto escravocrata. Ao mesmo tempo, assinalavam um vazio, pois erguiam-se por entre o triste silêncio dos humilhados e esquecidos. Não disse nada. Ficaram os dois calados, assistindo ao espetáculo da turba que, depois de atirar baldes de tinta vermelha contra o rosto da estátua, se afadigava agora a amarrar grossas cordas nas pernitas marmóreas da mesma
A nova irrealidade
É verdade, sou tímido. Festas constrangem--me. Sou uma daquelas pessoas a quem o confinamento não desagradou, muito pelo contrário. Ou, pelo menos, eu pensava assim – até ontem. Vivi muitos anos em estado de semirreclusão. A mulher chamava-se Ingrid. – O que fazes? – perguntou-me. – Adivinha... – És professor de Matemática
O amor mascarado
As ruas de Lisboa, agora desertas, limpas e desafogadas, pareciam mais largas. A cidade inteira resplandecia, lavada e escovada, sob um doce sol de primavera. À porta da padaria encontrou uma fila de umas dez pessoas, a rigorosos dois metros de distância umas das outras, todas equipadas com máscaras e luvas. À frente dele postava-se uma mulher elegante. Pedro costumava vê-la ali
O domador de borboletas
Quando se sentia fatigada, a rainha estalava os dedos, e então as borboletas cobriam-na por inteiro, como uma cortina viva da mais pura seda, e ela, desaparecendo da vista dos presentes, reaparecia onde bem entendesse, a várias milhas de distância
O encantador de cães
Na varanda, retorcendo o denso bigode com dedos grossos e nervosos, estava o sujeito a quem vendera Maroto. O encantador de cães não o reconheceu logo porque o homem que lhe comprara o perdigueiro vestia-se de preto severo, como um padre, e aquele vinha fardado e parecia mais alto e mais sólido
Um terrível equívoco
Certa tarde, estando de passagem por Hamburgo, achou--se diante de uma manifestação de extrema-direita. Viu a sua gente avançar, uma multidão sólida, vestida de negro, gritando palavras ásperas, e, num impulso solidário, correu a juntar-se a ela. Infelizmente, o seu gesto foi mal-interpretado
O intérprete de pássaros
Entrevistei Emanuel Divino Tchimbamba há alguns anos, num imenso mercado, entretanto desaparecido, da capital angolana. O antigo guerrilheiro montara uma pequena barraca, no coração do irrepreensível caos. Recebia ali quem quer que estivesse interessado em conversar com uma velha coruja, que Tchimbamba afirmava ser o espírito do lendário soba Caparandanda. A coruja, ou Caparandanda através dela, respondia a todo o tipo de questões, das mais domésticas e triviais às mais complexas e inusitadas, tendo Tchimbamba como tradutor
O que disse Nadia
Ninguém lhe perguntava uma opinião, não lhes ocorria que ela pudesse dar-se ao luxo de ter ideias e juízos, servia apenas para cumprir ordens, lava isto, limpa aquilo, arruma aqueloutro, não te esqueças de dar alpista aos canários e de passear o cão
Uma volúpia carmim
Consta que o bode tinha sempre muita sede. – É essa a lenda. Que o bode gostava de parar para beber cerveja no bar do Moreira. Havia sempre alguém disposto a pagar-lhe uma cerveja. Até tinham uma tigela com o nome dele, no chão, num canto do bar
O escaravelho verde
“Alguns dos rapazes atravessaram o deserto. Dias ao sol. Noites ao frio. Sem comer, quase sem beber. E depois o mar, em lanchas rápidas, se você cai na água, você morre — já pensou? Eles viveram assim, com medo, sempre com medo, medo, muito medo, até desembarcarem em Espanha”
O escaravelho verde
“Alguns dos rapazes atravessaram o deserto. Dias ao sol. Noites ao frio. Sem comer, quase sem beber. E depois o mar, em lanchas rápidas, se você cai na água, você morre — já pensou? Eles viveram assim, com medo, sempre com medo, medo, muito medo, até desembarcarem em Espanha”
O triste fim de Jair Messias Bolsonaro
Quer saber mesmo o que acho da Amazónia?! Quero que aquela merda arda toda! Aquilo é só árvore inútil, não tem serventia. Mas no subsolo há muito nióbio
A árvore que engoliu o tempo
Aquele é o tempo das árvores. Elas olham para nós e veem pequenos animais correndo rapidíssimos de um lado para o outro, envelhecendo e logo morrendo. Para uma mulemba, um homem é um inseto efémero