Consegues ouvir os tambores?
Semanas antes, eu fora chamada às Caritas e convencera as senhoras voluntárias a darem-me a saia verde com florinhas cor-de-rosa em vez da camisola esquisita que me queriam impingir
SOLU para mim
Acerto a minha respiração com a dele, tento escorregar para um sono comum. Seria bom que fosse assim tão simples. Não é
Imortal
O meu pai doente foi substancialmente diferente do meu pai saudável. O meu pai saudável não permitia que eu me abraçasse a ele
Foto #8: As escadas em pedra
Finja que está a descê-las, pediu-me. Não fui capaz de confessar que o meu corpo não sabe fingir. É um corpo tristemente verdadeiro
No silêncio de um cântico
A loucura não tem de resultar de um engano dos sentidos ou da razão, pode corresponder apenas a um entendimento cúmplice dos outros
Coisas
O meu vestido tinha uns guizinhos presos ao cinto, que tilintavam de cada vez que eu me mexia, alarmando-me mais para a má vontade do professor
Contar
Já falei da minha última festa de passagem de ano em Luanda, mas o mais importante é quase sempre o que fica por contar, o que não consigo contar
Foto #7: Blue
Pedras, pedregulhos, descaem para a água. A maré terá começado a baixar, mostrando pedras mais negras. Devem estar molhadas ou cobertas de limos
De A a Z, de amante a zeladora
Passávamos os domingos juntos. Íamos até à Ponta da Ilha, deliciávamo-nos com os gelados do Baleizão, fazíamos piqueniques perto da estrada do Catete
Amor confinado
Mantinham-se legalmente casados, moravam na mesma casa, mas ambos juravam que não se falavam há mais de dez anos
Para a Cristina, com amor
Aprendemos a conviver com tudo. Até mesmo com os nossos inimigos. Adaptamo-nos a tudo e tudo domesticamos. Até mesmo a morte
Correspondência #2: cuidar, cuidou, cuidado
Ultimamente há uma imagem que não me larga, a imagem de uma batalha, da linha da frente de uma batalha. E eu estou lá. Quando temos de cuidar dos nossos pais, já estamos, também nós, a morrer
Seis, eles eram seis
Com o indicador sobre os lábios, ele impôs silêncio e empurrou-a para dentro. Acendeu o isqueiro, queimou as teias de aranha e fechou a porta atrás de si
Esperar. A crónica de Dulce Maria Cardoso sobre Annie Ernaux, Prémio Nobel da Literatura 2022
Passava a noite acordada, à espera do aviso sonoro do chat do Yahoo. Ainda hoje me arrepio se o ouço. Insone, tomada de uma febre juvenil, punha corretor de olheiras, testava que roupa ficava melhor na câmara, tinha atenção à iluminação e ao cenário como se fosse entrar num filme
A passagem secreta
Será que não desliguei a luz do escritório? Ultimamente, tem-me custado adormecer. Com o cansaço a moer-me o corpo, a cabeça divaga entre assuntos insignificantes
Espécies invasoras
Gosto de ouvir os nossos passos sobre o chão de caruma, do cheiro a aldeia, uma mistura de lareiras, hortas, pinhais, mato, capoeiras
Férias, esse tempo adiário
Pego num dos livros que trouxe. Ando sempre com livros a mais, livros que, desarrumados em pilhas sobre a mesa, me culpam por não conseguir lê-los
A sombra fugaz de um cavalo alado, ou de uma gaivota apenas
Em vez de me entregar desarmada ao desejado encontro, insisti em fazer coincidir o que estava a viver com o que durante tanto tempo imaginara
Quem se lembrará do que me irei esquecer?
Quero contar que até há pouco tempo a minha mãe sabia de cor a morada da pensão, mas agora esqueceu-se, e por isso não poderei lá ir, nem chegar perto, sequer
Foto #6: A menina do papá
O meu querido pai morreu há mais de 20 anos. Os anos de morte não se deviam contar da mesma maneira que os anos de vida
Se isto é uma mulher
Nunca dei por mim a pensar, Ah, como gostava de ter um filho. O que há em mim que mereça ser continuado?