“Em doze anos de trabalho nos Médicos Sem Fronteiras já estive em cenários muito complicados: no Iraque, na Palestina, no Darfur.
Mas nunca vi nada assim! Morre muita gente e, o pior de tudo, morre-se sozinho. Sem toque humano. Os médicos e enfermeiros não podem estar muito tempo no local de internamento o calor que sentem com os fatos vestidos é insuportável e numa hora chegam a perder mais de um quilo. Além disso, o pessoal médico tem de tirar o fato ao fim de 45 minutos a uma hora, por razões de segurança.
As equipas saem dos locais de isolamento numa grande angústia. Os fatos não permitem o contacto físico. Custa muito ver uma pessoa morrer sem um abraço.
É um trabalho muito violento. Estamos no terreno sete dias por semana, 16 horas por dia. Normalmente as equipas passam cá cinco a seis semanas, descansam 21 dias e acabam por regressar. Há um esgotamento completo das equipas, precisamos de mais mãos.
Estamos fartos de pedir. Só os Médicos Sem Fronteiras e o Ministério da Saúde da Libéria é que estão a tratar os doentes. É um problema mundial, mas tem de ser tratado aqui.
Não temos falta de material, nem de dinheiro.
Acabamos de recusar uma doação australiana. Precisamos é de pessoas que venham para cá tratar dos doentes. Os cuidados são simples, não tem nada de especial.
Há profissionais que gostariam de vir, mas é preciso que as organizações onde trabalham os enviem.
No nosso centro hospitalar, o Elwa-3, em Monróvia, o maior na Libéria, temos 250 camas. Estão sempre ocupadas. Os doentes passam em média 14 dias internados.
Já atendemos 1 200 pacientes com ébola, confirmados, e 800 morreram. Há alturas em que temos de dar prioridade aos que estão numa fase mais avançada da doença, com mais sintomas logo mais contagiosos.
Há um medo que é irracional. O risco pode ser controlado. E os Médicos Sem Fronteiras têm duas décadas de experiência no combate a esta doença. Temos todos os procedimentos muito bem definidos e uma logística irrepreensível. Fazemos uma formação de dois dias, antes de vir para cá. Aprendemos a vestir e, sobretudo, a despir o fato. Uma manobra que nunca se faz sozinho. Há sempre alguém a observar, a verificar tudo. O pânico não faz sentido. Mas há um nível de alerta que é saudável. Que nos impede de roer as unhas ou dar um aperto de mão.
Um dos problemas na contenção da epidemia tem sido o facto de as pessoas não chegarem ao hospital. O sistema de ambulâncias não funciona bem, os táxis não as querem trazer e há quem recuse vir porque sabe que se morrer no hospital vai diretamente para o crematório há dois meses que é obrigatório cremar as vítimas do ébola.
Nós tiramos fotografias para mostrar às famílias, mas mesmo assim é difícil aceitar.
No meio de tudo isto, também acontecem coisas boas. Aqui no centro temos sobreviventes do ébola estão imunes, apesar de ainda não se saber por quanto tempo, e são eles que tratam das crianças. É terrível ver uma criança internada, sem ninguém poder cuidar dela.”