As greves dos professores têm marcado o dia-a-dia nas escolas portuguesas, neste início de ano. Visto com bons olhos pelos docentes, em março de 2022, o ministro João Costa perdeu o “estado de graça”, menos de um ano depois de ter substituído Tiago Brandão Rodrigues na pasta da Educação.
O formato para a colocação de professores e a reposição do tempo de carreira continuam no topo das prioridades e a servir de combustível aos protestos, apenas comparáveis aos registados aquando da passagem de Maria de Lurdes Rodrigues pelo Ministério da Educação, entre 2005 e 2009. E nem as garantias de diálogo de João Costa parecem ser suficientes para travar a contestação.
Na linha da frente, a FENPROF mantém-se como a organização sindical mais representativa do setor. Mas são os novos movimentos – como o STOP – que têm dado um novo ímpeto aos protestos, unindo e mobilizando em massa os docentes, como provou a marcha engrossada por dezenas de milhares de professores, que, no passado dia 14 de janeiro, invadiram as ruas de Lisboa.
De fora, os portugueses assistem com atenção – principalmente, os que têm filhos em idade escolar. Discutem o assunto, muito. E as opiniões dividem-se, como não poderia deixar de ser. Ainda esta semana, novo tópico fez soltar as línguas e os dedos de teclado: a excessiva burocracia que povoa as escolas portuguesas e que os professores exigem que termine. Imediatamente.
Na noite de terça-feira, no programa É ou Não É – O Grande Debate, da RTP, conduzido por Carlos Daniel, o professor Ricardo Silva, presidente da Associação de Professores e Educadores em Defesa do Ensino (APEDE), lançou o lamento, dando o pontapé de saída para a discussão. Com vista a elucidar “os pais dos alunos”, Ricardo Silva enumerou as tais “tarefas burocráticas [para além da função de ensinar] a que são ‘forçados’, quotidianamente, todos os professores” – nomeadamente, o preenchimento de plataformas e papéis, identificados por siglas amontoadas e incompreensíveis, a que se somam pilhas de planificações, listas, fichas, justificações, planos de recuperação e relatórios, entre outros.
O momento(ver vídeo acima) tornar-se-ia viral, somando milhares de visualizações; e centenas de reações. Mas será, de facto, assim? A VISÃO foi tentar perceber junto de quem está no terreno.
“É simplesmente impossível um professor trabalhar apenas as 35 horas por semana”, afirma Celina Oliveira
Celina Oliveira, 49 anos, é professora de Português e História, na Escola Básica António Gedeão, em Odivelas. Ontem, entrou pelos portões daquele estabelecimento quando o relógio batia as 8h00. Questionada sobre as palavras da véspera de Ricardo Silva, não tem dúvidas: “É mesmo verdade!”, garante.
Com um horário preenchido, Celina Oliveira leciona as (suas) duas disciplinas a cinco turmas e é ainda diretora de turma de uma outra. Acumula também a coordenação da estratégia para a Cidadania e Desenvolvimento da escola. Tudo, num horário semanal de 35 horas… ou talvez não.
Professores têm horário de 35 horas por semana, mas estudos indicam que docentes trabalham… 46 horas nesse período
“Hoje, é simplesmente impossível um professor trabalhar apenas as 35 horas por semana. Um professor, simplesmente, não tem horário… Para além das horas letivas, temos reuniões com os encarregados de educação, temos reuniões de grupo, temos reuniões de departamento; todas as outras atividades que o professor tem de assegurar. E, depois, ainda temos de preencher todas as plataformas e papeladas. É uma vida à frente do computador, a receber e enviar e-mails; a preencher espaços em branco”, descreve.
Para as aulas com os alunos, falta tempo. “Neste momento, admito, opto, basicamente, por recorrer a livros e documentos para dar as minhas aulas. Não tenho tempo para prepará-las de outra forma. Para dar um contributo mais personalizado às crianças que ensino. É muito frustrante”, afirma Celina Oliveira.
Esta conversa, diga-se, aconteceu às 20h, assim que a professora voltou a cruzar os portões da EB António Gedeão, de regresso a casa. Tinham passado 12 horas desde que o fizera pela manhã.
“Estou muito desiludida pela falta de reconhecimento da sociedade portuguesa pelos professores”, diz Ana Paula Leão
Ana Paula Leão tem uma longa carreira. Aos 64 anos, a professora de Educação Visual e Tecnológica, na Escola Básica Parque das Nações, em Lisboa, perdeu o otimismo que, durante mais de quatro décadas, passeou no interior da pasta pelas escolas da capital.
“Confesso que não estava à espera de chegar à minha idade nesta situação. Não esperava aplausos, obviamente. Mas levo muito a sério a minha profissão e, hoje, lamento sentir-me tão cansada. E também desiludida pela falta de reconhecimento que a sociedade portuguesa tem pelos professores”, refere.
Como a lei indica, Ana Paula Leão viu-lhe serem reduzidas as horas letivas, a partir dos 60 anos. Hoje, está dentro da sala de aula apenas 14 horas por semana, mas as restantes também estão ocupadas… e vão muito além das 35 horas previstas. A professora continua a trabalhar, todos os dias, das 08h00 às 19h00, não beneficiando – na prática – daquilo que a lei prevê e exige para uma profissão desgastante.
“No restante horário, fui colocada no espaço de indisciplina, designado nesta escola como gabinete de gestão de comportamento, onde são colocados os alunos com comportamento desadequado em contexto escolar. Depois, tenho de tratar de tudo o resto”, diz Ana Paula Leão. O resto, são as plataformas e papeladas. As reuniões; o contacto com os encarregados de educação. “35 horas? Não chegariam para nada!”, sublinha, acrescentando que a situação “é cada vez mais difícil”.
Esta conversa aconteceu às 21h00. Ana Paula Leão tinha acabado de jantar, depois de chegar do trabalho. À sobremesa, deixou um último lamento: “A opinião pública continua com uma ideia enviesada do que é o dia-a-dia de um professor”.
“Até o próprio Ministério da Educação reconhece este problema, mas nada foi feito”, lamenta Mário Nogueira
Mário Nogueira não tem dúvidas. O histórico secretário-geral da FENPROF – Federação Nacional dos Professores reconhece o problema (a fundo) e a necessidade de serem feitas alterações; opinião partilhada, aliás, pelo próprio Ministério da Educação, garante o líder sindical – mas já lá vamos.
“Por lei, como se sabe, os professores trabalham 35 horas por semana. Isso é o que está previsto. No entanto, os estudos que já estão feitos dizem-nos que, afinal, os professores portugueses trabalham, em média, mais de 46 horas por semana, e a culpa passa muito por estas tarefas burocráticas. É ‘infernal’”, afirma.

O líder da FENPROF explica que “todos temos a ideia que quando se opta pela digitalização os processos se simplificam, mas, na realidade, isso não aconteceu no setor da educação. Bem pelo contrário”, diz. Segundo Mário Nogueira, a redução do papel nas escolas levou a que “os professores tenham de preencher mais de 60 plataformas que o Ministério da Educação foi criando, ao longo dos anos, para tudo e mais alguma coisa”, acrescentando que “muitas destas tarefas são, de facto, necessárias, simplesmente não deveriam ser os professores a fazê-las”.
Aos protestos pelo processo de colocação de professores e pela recuperação do tempo de serviço, a FENPROF juntou também este tema, através de um parecer, enviado ao gabinete de João Costa, que enumera todos os trabalhos burocráticos que, atualmente, têm de ser realizados pelos docentes, e que Mário Nogueira descreve como “mais um elemento de intolerável sobrecarga do horário dos docentes”, em Portugal.
À VISÃO, o secretário-geral da FENPROF admite que “até o próprio governo reconhece este problema”, mas lamenta que, até ao momento, “nada tenha sido feito” para alterar este cenário.