O príncipe Harry está a ser “trucidado” pelos jornais ingleses. Chamam-lhe “Harry, the nasty”, qualquer coisa como “o desprezível”. E quando não há ódio, há humor. O crítico do jornal Guardian faz a Spare, a autobiografia agora lançada, uma paródia deliciosa: “Eu estava sozinho. Abandonado. Com apenas duas casas e cem milhões no banco”.
Acusado de querer destruir a monarquia não deixando pedra sobre pedra, na verdade isto ainda não foi nada, garante o príncipe. O jornal Daily Telegraph já tinha citado fontes do palácio real, justificando o silêncio da monarquia com uma frase lapidar: “Os piores receios do Palácio de Buckingham [sobre as revelações de Harry] não vieram a lume.”
Agora vem Harry Windsor, no mesmo jornal, deixar o recado de que tem o suficiente para escrever outro livro. “O primeiro rascunho era diferente, tinha 800 páginas. A versão final tem 400. Houve coisas que aconteceram entre mim e o meu irmão e, até certo ponto, entre mim e o meu pai, que eu não quero que o mundo saiba. Acho que eles nunca me perdoariam”, afirma em entrevista ao Telegraph.
Já de si é duvidoso que o perdoem por esta primeira parte que agora veio a lume, cheia de rancor – justificado ou não fica ao critério de cada um – que se adivinha logo no título da obra: Spare, o suplente ou o sobresselente da monarquia britânica. Uma sombra do irmão.
Com Diana, esta casa real viveu um dos seus piores momentos e, recorde-se, antes de habitar o coração de todos, também ela foi muitas vezes acusada de querer destruir a monarquia. Há sempre uma postura altamente conservadora em que estes “peões” da família real devem aguentar tudo, casamento com amantes incluído, calar-se bem caladinhos e sorrir debaixo do chapéu. Porque a instituição assim o exige.
A grande diferença é que Diana não parecia uma “privilegiada” tão sem noção do seu privilégio como parecem muitas frases de Harry no livro. E isso tem sido desastroso. Vamos então às revelações e ao que elas nos dizem sobre estas pessoas que herdam a chefia de um estado. Mas sobretudo sobre uma instituição que se baseia neste imenso privilégio.
Camila, a “garganta funda”
Há muitos pontos de vista no amor de Carlos e Camila. Começámos por ver o de Diana. Camila era uma mulher casada de quem Carlos era amante antes de se casar com Diana, tendo mantido a ligação. “Éramos três neste casamento”, disse a princesa na famosa entrevista televisiva.
Após a morte de Diana, Camila era odiada, chegou a pensar-se que nunca seria rainha. E aí está ela, rainha consorte, com uma imagem que foi sendo reabilitada ao longo do tempo. Afinal, teria sido uma linda história de amor, impossível porque começara como um triângulo (Camila, o namorado e Carlos) e a instituição decidira que ela não servia para o herdeiro da coroa. Separados por conveniência.
Do ponto de vista de Harry, ela é a amante do pai que fez a infelicidade da mãe – e logo esse facto é difícil de ultrapassar. Pior: ela é “perigosa”, diz o príncipe, no sentido em que, para reabilitar a sua imagem, seria capaz de prejudicar outros. “Isso tornava-a perigosa por causa da ligação que ela estava a tentar criar na imprensa britânica. E havia disposição de ambos os lados para troca de informações”, explica.
Um exemplo: segundo Harry, terá sido Camila a dar à imprensa informações sobre a primeira vez que se encontrou com o príncipe William, informações tão “precisas” que, não vindo de William, só podiam vir da outra pessoa presente na sala, alega Harry. Terá sido, de facto, o seu secretário privado à época, confirmou o Telegraph. Os dois rapazes pediram ao pai que não se casasse com ela, escreve Harry.
Era-me difícil lidar com o facto de ter uma madrasta que, estava convicto, pouco tempo antes tinha-me sacrificado para melhorar a sua imagem pública.
Harry Windsor
Kate e Meghan, o choque
As mulheres que entram para a família real são sempre o elo mais fraco, literalmente carne para os canhões dos tablóides. É assim com todas, explicava Carlos a Harry, segundo este, naturalmente. E quando o príncipe, já desesperado com os ataques de que a sua mulher era alvo, escreve uma carta pública a defendê-la, o pai e o irmão ficaram furiosos. “Porque, como não tinham feito o mesmo pelas suas mulheres, poderiam ficar mal vistos”.
Antes de ser a menina bonita dos britânicos, Catherine foi mais do que enxovalhada e de forma misógina. Os jornais chamavam-na “waity Katie” por ter esperado tanto tempo por um pedido de casamento de William. Mas os ventos mudaram – a postura de Catherine parece tão encaixada com o que se pretende dela, como futura rainha, que os ataques se transformaram em louvores.
A popularidade de Meghan trouxe ciúmes, alega Harry nas entrevistas que deu. Não fala diretamente de Kate, mas do seu pessoal, sobretudo o gabinete de imprensa, preocupado em promover o titular, o herdeiro do trono. Já no livro, o príncipe descreve episódios de confronto entre as duas mulheres um tanto ou quanto ridículos.

A cena em que Kate fez Meghan chorar (e que passou para a imprensa que tinha sido Meghan a fazer Kate chorar) por causa dos vestidos das damas de honor, “de alta-costura francesa, costurados à mão”. Mensagem de Kate: “O vestido de Charlotte está demasiado grande, demasiado comprido, demasiado folgado. Chorou quando o experimentou em casa”. Meghan: “O alfaiate está à espera aqui no palácio. Podes levar a Charlotte para se fazerem as alterações, como as outras mães estão a fazer?”. Kate: “Não, todos os vestidos têm de ser refeitos”. Escreve Harry: “As mensagens de uma para a outra sucediam-se. Pouco tempo depois, cheguei a casa e encontrei Meg no chão, num pranto”.
Há outro episódio contado pelo príncipe. Depois de ter um bebé, Kate não se lembrava de algo e Meghan comentou que estava com “baby brain”, era das hormonas. Disse-lhe Kate: “Não temos intimidade suficiente para falares das minhas hormonas”. Meghan pediu desculpa, disse que era assim que falava com as amigas. William apontou-lhe o dedo: “É falta de educação. Aqui não falamos assim”. E Meghan: “Tem a bondade de tirar o teu dedo da minha cara”. Isto é que é um choque cultural!
William, o titular agressivo
William, o irmão mais velho, o herdeiro do trono, é descrito por Harry como um homem bastante agressivo. Na infância, os dois rapazes brigavam como os irmãos sempre fazem… Só que o mais novo agora tem uma autobiografia e escreve isto, após a descrição de uma luta: “Atrás de nós, mal conseguia distinguir o futuro rei de Inglaterra que arquitetava a sua vingança contra mim”.
E por aí continua, cheio de ressentimento. William é o “irmão amado” e o “arqui-inimigo”. O que o ignorava na escola, o que não lhe dava a mão, que o chamava de “carente”. O que ficava sempre com a melhor parte. “Balmoral tinha 50 quartos, um dos quais foi dividido para mim e para Willy. Willy ficou com a parte maior, com uma cama de casal e um lavatório grande, um roupeiro com portas espelhadas, uma bonita janela que dava para o pátio lá em baixo, a fonte, a estátua de bronze de um veado imponente. A minha metade do quarto era muito mais pequena, menos luxuosa”. Pobre menino rico.
Harry descreve uma competição feroz entre irmãos, à medida que cresciam, que acabava com o mais novo a ser atirado aos leões dos tablóides. Ele foi “Harry, o skinhead” porque os rapazes do colégio lhe raparam o cabelo; foi “Harry, o nazi” quando se mascarou com um uniforme nazi, aconselhado pelo irmão e pela cunhada, segundo conta; era sempre Harry, o problemático, das festas e das drogas, o duplo que protegia, também na imprensa, o ator principal.
Prefiro ser destruído pela imprensa do que alinhar neste jogo e nesta prática de trocas. Ver o gabinete do meu irmão copiar as mesmas coisas que prometemos que nunca faríamos, foi devastador.
Harry Windsor, documentário da Netflix
No documentário disponível na Netflix, compara-se o tratamento nos jornais dado às mulheres. Kate grávida a acariciar a barriga é “ternurenta”; Meghan a fazer o mesmo é “exibicionista”. Kate a mostrar os ombros “arrasa”; Meghan a fazer o mesmo “quebra o protocolo”. E por aí adiante. Harry diz que o William aceitou a narrativa de que Meghan era a “duquesa difícil”, como era chamada nos jornais em notícias sussurradas por fontes do palácio – “inventadas”, garante o marido. Em Spare, descreve a já famosa cena em que William diz a Harry que a mulher dele é “mal educada”, “difícil” e “abrasiva”, os dois discutem e o mais velho agarra o mais novo pelo colarinho, deitando-o ao chão, por cima da tigela dos cães, “que rachou com o impacto”.
Na sexta-feira, 13 de janeiro, William e Kate apareceram em público, visitando um hospital no norte de Inglaterra. Ignoraram as perguntas sobre o livro. Harry, por ser lado, nunca teve a sua popularidade tão em baixo como agora, mostram as sondagens inglesas.
Carlos, o submisso
O pai, agora rei, é descrito no livro Spare como um homem aterrorizado com o que a imprensa possa escrever sobre ele. E, portanto, joga o jogo dos tablóides. “Eles foram levados a crer que a única maneira de as suas caridades terem sucesso, a única maneira de melhorar ou aumentar a sua reputação é aparecer nas capas dos jornais”, afirma Harry no documentário.
Os duques de Sussex quiseram processar os tablóides ingleses por estes terem publicado a carta privada que Meghan escreveu ao pai, pedindo-lhe que parasse de falar com a imprensa, alegando a “imensa dor” que lhe causava. A monarquia britânica normalmente não processa os jornais; remete-se ao silêncio – é a sua estratégia habitual.
Harry foi chamado ao palácio. Disse o agora Carlos III: “A vossa queixa-crime vai complicar a nossa relação com a comunicação social. Qualquer coisa que faças afeta toda a família”. Responde-lhe o filho: “Qualquer coisa que você faça também nos afeta. Como, por exemplo, levar a um bom restaurante os mesmos jornalistas que me têm atacado e à minha mulher…”
Há algo de muito podre no reino de Sua Majestade. Algo que qualquer um de nós, pobres mortais, nem sonha: a vida debaixo dos holofotes. “O grande volume de revelações do livro ajuda o Palácio de Buckingham. Os jornais estão muito felizes por escrever sobre o pénis ‘congelado’ de Harry em vez de se focarem nas críticas às suas próprias práticas”, escreve Helen Lewis na Atlantic.
Porque, de facto, as mais “chocantes alegações” feitas por Harry Windsor, o que o levou ao exílio, foi que a sua própria família conspirou com a imprensa para “plantar” histórias negativas sobre ele e assim distrair os jornais sobre os seus próprios erros, continua Helen.
Histórias sobre vestidos, hormonas, brigas em cima de tigelas do cão são apenas episódios deprimentes de quem vive num sistema que se protege a todo o custo na figura do herdeiro. A pessoa que nasce para lhe cair a chefia de um estado em cima. Harry não vai destruir a monarquia, mas está a dar que pensar.