“Poucas palavras descrevem tão bem o João Quadros como um gajo que chateia (…) O João só bate em quem tem corpo para apanhar. Um dos males do nosso tempo é o regresso da infeliz mania de só dar porrada nos mais fracos. O João faz o contrário (…) Há um desassombro e uma lucidez no seu humor que por vezes doem”, escreveu Rui Zink no prefácio do livro Certas Coisas Que Não Sei Explicar (2020) que reúne crónicas publicadas pelo argumentista ao longo dos anos, no programa Tubo de Ensaio, da TSF, e no Jornal de Negócios, entre outros.
Os dois foram entrevistados para o artigo sobre guerras culturais que está na edição da VISÃO desta semana. Os dois são contra o cancelamento, mas também são contra as pessoas fazerem as coisas sem esperarem consequências.
“Agora choram estes, os cancelados. Acho justo”, diz João Quadros. “Não gosto nem do que se passava antes nem do cancelamento, mas provem do veneno. Se isso servir para perceberem um bocadinho, que seja. Aquelas pessoas com quem gozaram, e que estiveram a diminuir, a maior parte nem sequer teve um décimo de oportunidade de se queixar como eles estão agora a vitimizar-se.”
Licenciado em gestão e argumentista há mais de vinte anos, João Quadros foi coautor de vários programas e séries de televisão, como Herman Enciclopédia, Contra Informação, Os Contemporâneos, Sal, O Som de Cristal ou O Último a Sair. Foi também autor da peça de teatro Antes Eles que Nós, com Bruno Nogueira, Maria Rueff e Manuel Marques, e do filme Arte de Roubar, de Leonel Vieira (para quem está atualmente a escrever uma nova longa-metragem).
No Twitter, onde tem mais de 218 mil seguidores, sofre “mas ainda bem”, diz. “Graças às redes sociais, com todo o mal que trazem (e trazem, como uma discussão no trânsito), ao menos não há só uma voz, a voz do poder.”
O João já foi alguma vez cancelado?
Já tentaram cancelar-me, por exemplo com a piada ‘do cancro’ – entre aspas, porque a piada não tinha nada que ver com cancro. Ia escrevê-la no Twitter e, antes de escrever, pensei: ‘Vão tentar destruir-te. Vem lá uma avalanche, até de pessoas que gostam de ti e que te respeitam. Vão cair-te em cima.’ Mas achei que era uma piada justa.
Justa?
O Passos Coelho tinha dito que este País estava a ter demasiados imigrantes e fiquei lixado. E eu, quando fico lixado, fico mesmo lixado. Não foi: ‘Ah, vou lixar a tua mulher!’. Nada disso. Pensei: ‘Este gajo acaba de ter um discurso xenófobo. Alguém que se atreve a ter esse discurso e que é primeiro-ministro… Não tenho de ter problemas em fazer uma piada, preocupado com se vou fazê-lo sofrer.’
Não se lembrou que a sua piada poderia magoar também a mulher dele?
Sempre tive respeito pela Laura. E já disse várias vezes que, se fosse um caniche que tinha rapado o cabelo lá em casa, fazia a mesma piada. Porque a minha piada não era sobre o cancro. Era sobre o facto de o discurso do Passos Coelho ser um discurso xenófobo, de um cabeça-rapada. E não voltava atrás, faria a mesma piada. Só queria fazer uma comparação entre cabeças rapadas.
Diz que hesitou.
Obviamente, quando digo que hesitei é porque sabia que as pessoas iam pegar na minha piada e iam fazer dela uma coisa mais feia do que aquilo que o Passos Coelho tinha dito. Não sou inocente. Sabia que ia acontecer alguma coisa. Passaram mais de cinco anos e, sempre que escrevo no Twitter que não admito que me mandem fotografias da minha filha com suásticas por cima ou que digam coisas sobre ela, vem: ‘Ah, mas gozares com o cancro da mulher do Passos Coelho já estás à vontade’.
Mas não foi cancelado.
É impossível cancelarem o Quadros. Cancelem-me, na boa! Não perdi um trabalho por causa disso, mas senti-me cancelado nos sítios onde ia jantar. Perdi restaurantes onde me sentia bem. Tornei-me persona non grata. Diziam: ‘Sempre gostei de ti, agora exageraste’. Se sofri com isso? Estou-me nas tintas, não posso estar preocupado com isso.
De todo?
Hoje são os gajos de esquerda que dizem: ‘Fizeste três piadas no Twitter sobre mulheres, vamos exterminar-te’. Depois, são os de direita: ‘Fizeste três piadas sobre o bigode do Hitler, vamos exterminar-te’. Ganha quem? Ninguém. Todos temos direito à indignação, a ter raiva para matar o outro que disse aquela coisa ofensiva, mas, felizmente, não podemos. Para alguma coisa existe a democracia. É para impedir que eu ponha na forca o gajo do Chega ou que ele queira matar-me.
A verdade é que caiu-lhe tudo em cima.
Percebo que as pessoas ficaram ofendidas, mas não deixo de ser bom gajo por isso. Não passei a ser pior pessoa por causa daquela piada, mas, de repente, sou confundido com alguém que não respeita pessoas com cancro.
As Capazes vieram dizer que eu era machista porque estava a atingir a mulher do Passos Coelho como se ela fosse um objeto ou algo dele. E que era racista, por ela ser negra. Racista, eu, o João Quadros?! Vão ver tudo o que escrevi até hoje sobre isso, no Tubo de Ensaio e noutros sítios.
Acho, aliás, que fui das primeiras pessoas a falar dessas coisas. Fui woke antes de a palavra ser conhecida. Já em pequeno, detestava quando diziam piropos na rua à minha irmã. Os gajos no andaime a mandar bocas e eu passava-me. Quem me conhece sabe que sempre fui assim. Mas, de repente, faço essa piada e sou atacado.
Lá está, as pessoas ficaram mesmo ofendidas.
As pessoas têm o direito de tentarem cancelar, percebo que se sintam ofendidas e que digam: ‘Vou querer que este gajo nunca mais trabalhe’. Acha que fico chocado com isto? Nem um bocadinho. Mas cabe a uma sociedade democrática fazer com que isso aconteça, não cabe a essas pessoas que têm essa raiva. Todas as pessoas têm o absoluto direito de reagir ao ponto de o sangue borbulhar e de quererem cortar o pescoço, mas não podem fazê-lo. É aí que se define o que é um Estado de Direito.
Percebo que a primeira reação, quando se sentem ofendidas, seja: ‘Nunca mais quero que este gajo apareça em mais nenhum lado’. Eu também digo: ‘Esses padres pedófilos, era pendurá-los pelo pescoço’. Mas, felizmente, não posso fazer isso. Tenho vontade de me virar para aqueles fascistas do Chega e dizer-lhes: ‘Todos para o Campo Pequeno!’, mas, felizmente, não tenho esse direito. Existe democracia, existem leis, e é isso que nos distingue dos animais. Acho que ainda não encontrámos o ponto certo, mas é isso que nos distingue de sermos animalescos.
Há pouco disse que foi woke antes de a palavra ser conhecida. O que pensa do wokismo?
Tudo o que é exagero e radical, no sentido ‘ou eu ou tu’, incomoda-me. Mas temos de pôr as coisas no contexto. Não concordo que se ande a pintar as estátuas dos colonizadores, mas também não concordo que a Assembleia da República tenha à entrada três ou quatro quadros que são um absoluto retrato do que fazíamos enquanto colonialistas, e percebo que qualquer pessoa que venha de África se sinta incomodada ao ver aquilo. Não acho que temos de ir de joelhos a Fátima, mas temos de nos sentir mal se fizermos daquilo um símbolo, se fizermos a apologia desse passado.
Não condeno quem fez naquela altura, era segundo a maneira de pensar de então. Mas, passados estes anos todos, devemos ter a noção de que, em relação ao que progredimos em termos de Humanidade, escusamos de ostentar isso. Não estou a dizer para pedirmos desculpa, mas há uma grande diferença entre pedir desculpa e ostentar. Não digo que se deitem abaixo essas estátuas, mas ponham-nas todas num sítio onde se conte uma história.
Começou a entrevista a dizer que tentaram cancelá-lo por causa de uma piada. O fim das suas crónicas no Jornal de Negócios não foi um cancelamento?
Associo o fim das minhas crónicas no Negócios a uma crónica específica. Quando escrevi O Desporto Sem Rei Nem Roque sabia o que ia acontecer, depois de dez anos a ser o mais lido, à frente de economistas, de toda a gente. Nunca fui surpreendido por um cancelamento. Penso sempre: ‘Vais escrever isto e já sabes o que vai acontecer’. Não posso dizer: ‘Ah, que espanto!’.
Isso irrita-me um bocado nas pessoas que são canceladas. Porra! Se eu penso ‘Embora aí desafiar um poder ou uma ideia ou qualquer coisa que vai contra a minha opinião’… Não sou, não me sinto vítima de absolutamente nada. Sei que aquilo vai acontecer. E tenho duas hipóteses: ou não escrevo ou escrevo e aguento as consequências.
Foi sempre assim?
Noutros tempos, nem se punha a hipótese de escrever contra o estabelecido. Fiz o Herman Enciclopédia e lembro-me do que aconteceu com A Última Ceia, escrita pelo [Nuno] Markl. Teve o Marcelo [Rebelo de Sousa], a Zezinha [Maria José Nogueira Pinto] e a irmã, a Maria João Avillez, contra… Pela primeira vez, não houve a corrida de touros do pessoal da RTP porque era patrocinada pela Opus, acho. A perseguição por causa de uma piada foi brutal. Foi um escândalo, na altura. E tocar em Fátima? Impossível.
Hoje é muito diferente?
A diferença, hoje em dia, é que há espaço para escrevermos sobre tudo. Essa é a grandessíssima diferença. Hoje podemos tocar em tudo porque existem redes sociais, stand-ups… Antigamente, havia a RTP e pouco mais. Havia cinco sítios onde podíamos fazer as piadas e elas tinham de ser aprovadas.
Benditas redes sociais, portanto?
Eu sofro no Twitter, mas ainda bem. Acho admirável que o grande problema da sociedade sejam as redes sociais – porque antes estávamos muito melhor?! Graças às redes sociais, com todo o mal que trazem (e trazem, como uma discussão no trânsito), ao menos não há só uma voz, a voz do poder. Também há a voz do taberneiro, ainda que ele seja completamente facho. Mas, de repente, descubro que o mundo antes das redes sociais estava perfeito? Agora estamos todos muito incomodados porque qualquer pessoa pode dizer as javardices que quer. Ainda bem. Não se combate a javardice não permitindo que os javardos tenham direito ao seu espaço.
Mas então…
Sei o que vai perguntar. Obviamente que o discurso racista deve ser punido. Obviamente que o discurso misógino deve ser punido. E o xenófobo, etc. Mas, lá está, a lei existe para isso. Seja nas redes sociais ou no Speaker’s corner, em Londres, existem regras.
E o fim das suas crónicas no Sapo? Não foi também um cancelamento?
Nesse caso, fui eu que quis sair. Um dia, não publicaram uma crónica porque ela tinha quatro vezes a palavra ‘masturbar’, e saí.
Isso lembra o que aconteceu a um texto sobre Gil Vicente, que lhe encomendaram para um manual escolar.
Esse é o melhor exemplo de sempre – o texto era para um manual do 10.º ano e não o publicaram porque tinha a palavra ‘mamas’. Tudo isto parece novo, mas só parece porque a censura sempre existiu. Faço um paralelismo entre o cancelamento e o ‘lápis azul’ ou mesmo com o politicamente correto.
Há sempre coisas que não se pode dizer?
Podemos dizer as coisas, mas obviamente temos consequências. Agora choram estes, os cancelados. Acho justo. Não digo que devem cancelá-los, mas experimentem um bocadinho do veneno. Estão a sofrer? Sofram. Pode ser que finalmente percebam o que sofreram todas aquelas pessoas. Antes choravam os paneleiros, agora estão a queixar-se do que foi admitido durante anos? Sempre odiei bullying e lixar o mais fraco, gozar com o gajo nitidamente efeminado. Os cancelados estão a sofrer? Que sofram.
Não estou a dizer que é justo serem banidos, mas ‘bora lá serem um bocadinho maltratados, ‘bora lá experimentar isso por uns tempos. Não gosto nem do que se passava antes nem do cancelamento, mas provem do veneno. Se isso servir para perceberem um bocadinho, que seja. Aquelas pessoas com quem gozaram, e que estiveram a diminuir, a maior parte nem sequer teve um décimo de oportunidade de se queixar como eles estão agora a vitimizar-se.