Aníbal Marinho é médico e diretor do serviço de cuidados intensivos do centro hospitalar universitário do Porto, mas aqui o entrevistamos na sua condição de presidente da associação portuguesa de nutrição entérica e parentérica (APNEP), no final da semana da sensibilização para a malnutrição em Portugal (7 a 13 de novembro).
Trata-se de uma iniciativa que pretende promover a literacia em saúde de utentes, famílias e cuidadores, apontando o foco a doentes nutricionalmente vulneráveis, em particular à população idosa.
Este ano, o mote é o direito humano aos cuidados nutricionais, com base na Declaração de Viena, e conta com o apoio do ministério da saúde e o apoio científico da sociedade portuguesa de medicina interna, da sociedade portuguesa de cirurgia, da associação portuguesa de medicina geral e familiar e da associação portuguesa de nutrição.
O que está em causa na Declaração de Viena, assinada recentemente?
Trata-se de uma declaração de direitos humanos. A comida é um direito, assim como nutrir adequadamente as pessoas e os doentes com incapacidade de se alimentarem convenientemente. Ou seja, deveria ser considerado um direito humano a nutrição clínica – não estamos a falar de nutrição culinária – adequada a essas pessoas que têm carências graves, que são essencialmente os doentes e os idosos.
Até agora isso não acontecia?
Já houve duas declarações anteriores, a de Cartagena e a de Cancun, mas foram ambas assinadas na América Latina. Esta é a primeira europeia, mas na verdade trata-se de uma carta de intenções de várias associações de nutrição clínica, que não é reconhecida pelas Nações Unidas.
O que acontece na realidade?
Gastamos exorbitâncias em medicamentos inovadores e esquecemo-nos do mais básico, que é manter as pessoas com autonomia muscular e bem nutridas. Por vezes, temos doentes com caquexia extrema [perda significativa de massa muscular], mesmo sendo obesos – assume-se que estão bem nutridos, mas o que têm é uma excessiva carga adiposa. E estas situações têm de ser valorizadas.
Que mais se faz durante a semana da malnutrição?
Existe um nutrition day para traçar uma imagem transversal da realidade das carências nutricionais da população que recorre aos hospitais. Este ano, também fizemos inquéritos nos centros de saúde a mais de dois mil doentes – só cinco países europeus aderiram a esta projeto-piloto de integrar o ambulatório.
Quais as principais conclusões a que chegaram nos últimos nutrition day?
Mais de 50% dos internados – em medicina interna, oncologia e cirurgia – precisam de uma abordagem nutricional, de serem acompanhados por um especialista. E um terço desses doentes em risco, cerca de 100 mil, necessitam mesmo de nutrição clínica, com base na suplementação. Mas raramente um médico escreve que há risco de desnutrição, por exemplo. É isso que queremos que mude.
Mais de 50% dos que estão internados precisam de uma abordagem nutricional, de serem acompanhados por um especialista. E um terço desses doentes em risco necessitam mesmo de nutrição clínica, com base na suplementação
Por que é que os idosos estão mais em risco?
A maior parte da sua comida é à base de hidratos de carbono e alguns lípidos. A alimentação mais comum é uma sopa à noite, que aporta alguma fibra, e às vezes umas torradas. A carga proteica apresenta-se baixa, até porque a proteína costuma ser o macronutriente mais caro. Além disso, alguns idosos não têm peças dentais para mastigar a carne de forma adequada. E é aí que reside a nossa maior preocupação para preservar a massa muscular.
É nestas alturas que recorrem aos suplementos proteicos?
Sim, porque são eficazes e fáceis de tomar. No entanto, somos dos poucos países europeus que não os comparticipa em ambulatório.
Quais são as principais consequências dessa malnutrição?
No caso dos doentes, não vão aproveitar os benefícios das terapêuticas inovadoras, pois ao estarem desnutridos terão défice imunológico e mais comorbilidades. Quando perdemos mobilidade, por exemplo, perdemos também muita qualidade de vida. De que importa a longevidade se ela não for igual a qualidade? No Japão, uma sociedade que consideramos ultracivilizada, as pessoas idosas roubam, para serem presas e assim assegurarem cuidados médicos e nutricionais, porque os mais novos não têm tempo para cuidar deles.
Numa sociedade em que os obesos são um problema, ninguém se lembra de que há pessoas malnutridas…
E ninguém se lembra de que às vezes essa obesidade pode ser sarcopénica, em que os doentes não têm massa muscular nenhuma. Parecem bem nutridas, mas não estão. Recuperar massa muscular numa pessoa nova é fácil, numa mais velha é quase impossível.
Se um idoso tem dificuldade em levantarem-se, em subir uma escada ou em carregar as compras é porque já terá uma debilidade muscular. Essa pessoa deveria logo ser indicada para um nutricionista
Que conselhos daria para não se chegar a um estado de desnutrição?
Há muita iliteracia, quer a nível dos profissionais de saúde, quer da população. Devíamos começar pelas escolas, pois muitas vezes quem está mais em contacto com os idosos são os netos. Eles precisam de saber que, se um avô ou avó tem dificuldade em levantar-se, em subir uma escada ou em carregar as compras, sem que isso tenha a ver com o seu sistema orto-articular, é porque já estará perante uma debilidade muscular. Essa pessoa deveria logo ser indicada para um nutricionista.
E a nível alimentar, o que não deve acontecer para não se chegar a esse ponto?
Nos casos em que não haja peças dentárias para mastigar a proteína ou dinheiro para a comprar, deve aconselhar-se suplementos alimentares. Quando isso não acontece, há que diversificar a alimentação com peixe, carne e ovos.