Volta e meia, surge um artigo a lembrar-nos os benefícios que o ato de sonhar acordado pode trazer. E não é por falta de assunto nem uma fixação dos jornalistas – é porque foi publicado um novo estudo a corroborar aquilo que os cientistas não se cansam de provar por A mais B. Numa frase? Sonhar de olhos bem abertos estimula a criatividade.
Um dos estudos mais recentes, realizado por investigadores chineses e publicado na edição de fevereiro de 2022 da revista Human Brain Mapping, concluiu que o chamado devaneio positivo e construtivo (“caracterizado pelo planeamento, pensamentos agradáveis, imagens vívidas e curiosidade”) está associado à criatividade.
Adivinha-se que estes resultados não terão surpreendido Jonathan Schooler, um psicólogo da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, que anda há décadas a estudar a cognição humana e, em particular, o hábito de sonhar acordado.
Em 2019, ele e os seus colegas deram a conhecer o estudo When the Muses Strike: Creative Ideas of Physicists and Writers Routinely Occur During Mind Wandering (quando as musas atacam: as ideias criativas de físicos e escritores acontecem rotineiramente quando a mente vagueia). Para descobrirem quando é que as pessoas têm as suas ideias mais inovadoras, pediram a físicos e a escritores profissionais para manterem um diário ao longo de quinze dias, em que tinham de apontar a ideia mais criativa do dia, o que estavam a fazer quando ela surgiu e se sentiram um “momento aha”.
Segundo este estudo, publicado na revista Psychological Science, cerca de 20% das ideias tinham nascido quando esses físicos e escritores não estavam a trabalhar ou nem sequer estavam a pensar em alguma coisa relacionada com elas. Mais: as ideias que tinham surgido quando eles estavam a sonhar acordados eram mais suscetíveis de serem associadas à superação de um impasse sobre um problema incómodo (uma solução) e de serem vistas como “momentos aha”.
O próprio Schooler também não ficou particularmente surpreendido com estes resultados. Afinal, em 2012 ele já tinha participado num outro estudo que concluiu ser mais “produtivo” fazer uma pausa e levar a cabo uma tarefa pouco exigente enquanto se sonha acordado. Para os voluntários, tinha sido mais difícil chegarem a uma solução criativa quando se concentraram em tarefas complicadas durante a pausa.
“Se quiser que os seus pensamentos despertem a criatividade, pode querer adotar uma abordagem ligeiramente diferente e concentrar-se em ideias que considere curiosas e interessantes”, disse Jonathan Schooler ao The New York Times. Uma prática a que o psicólogo chama de “a mente a maravilhar-se”, seja com as ideias lidas num artigo ou ouvidas num podcast.
JÁ FREUD DIZIA
A relação entre a criatividade e o ato de sonhar acordado não é de hoje, sublinhe-se. Em 1907, Sigmund Freud proferiu uma palestra sobre os escritores e a “fantasia inconsciente” (Der Dichter und das Phantasieren, no original). Publicada no ano seguinte, a palestra começava por levantar a questão de onde os escritores extraíam as ideias, sugerindo que parte delas vinha dos seus “sonhos diurnos”.
Mais de um século depois, já não é novidade a importância de fantasiar para a criatividade, avançada pelo psiquiatra austríaco. Mas, se Freud fosse vivo, talvez se interessasse pelo transtorno do devaneio excessivo, que afeta uma em cada 40 pessoas e em breve deverá ser reconhecido formalmente como uma doença psiquiátrica.
Embora sonhar acordado seja bom, fazer disso uma compulsão pode ser mau. Sobretudo se os devaneios forem invulgarmente imersivos. No mínimo, são uma fonte de procrastinação; no máximo, podem impedir as pessoas de manterem as suas relações sociais ou mesmo de cuidarem da sua saúde, alertam os especialistas.
O psicólogo Eli Somer, da Universidade de Haifa, em Israel, foi o primeiro a identificar o transtorno do devaneio excessivo na sua prática clínica. Seis dos seus pacientes contaram-lhe que embarcavam em fantasias com o propósito de acalmarem a dor psicológica. Um deles mantinha na sua cabeça uma relação já terminada, outro inventava conversas para enganar a solidão. “O devaneio ajuda-me a não ter medo”, disse-lhe um dos pacientes, recordou o especialista ao The Guardian.
Eli Somer reconheceu nestes relatos uma dissociação que nunca vira antes descrita, e, faz agora vinte anos, escreveu sobre ela no Journal of Contemporary Psychotherapy. Aqueles devaneios invulgarmente imersivos não tinham nada a ver com meras deambulações mentais. E não eram psicoses – as fantasias não apareciam do nada e as pessoas não as confundiam com a realidade.
UM VÍCIO, COMO O DO ÁLCOOL
O problema, percebeu o clínico rapidamente, é quando o ato de sonhar acordado é levado ao excesso. Pode impedir a pessoa de enfrentar os problemas que a levaram a sonhar para não pensar e, pior ainda, pode acabar por provocar emoções negativas. Foi isso mesmo que Somer concluiu, num estudo realizado em 2018, com a sua colega Nirit Soffer-Dudek, da Universidade Ben-Gurion do Negev, em Israel.
Chegado a este ponto, o homem que identificou o transtorno do devaneio excessivo compara-o com um vício, semelhante ao do álcool.
“Sonhar acordado de maneira imersiva pode ser como beber um copo de vinho magnífico”, compara. “Mas beber uma garrafa de vodka todos os dias não é bom.” E defende que seja reconhecido formalmente como uma doença. “Não pode ser melhor explicado por qualquer outra condição psiquiátrica”, disse ao The Guardian, acrescentando já ter recebido feedback positivo nesse sentido.
Quanto ao tratamento, Eli Somer acredita que ele passa por as pessoas aprenderem a controlar o hábito de sonhar acordadas. Foi essa a abordagem que teve com um paciente, de 25 anos, que passava três horas por dia em devaneios imersivos. Ao fim de seis meses, conseguiu reduzir a tentação para metade.
Certo é não ser possível nem desejável acabar com os sonhos de olhos bem abertos. Afinal, o que seria da criatividade de não sonhássemos acordados?