Uma caneta na mão e os pássaros todos a voar
Boca cheia, de verbo e de vontade
(E mulheres que dançam até ao amanhecer)
Nota prévia
Volto a estas páginas com um propósito de grande responsabilidade e, sobretudo, de enorme atrevimento. Sei que falho à partida, por ser impossível aproximar-me das Três Marias, tanto no verbo como na coragem. Até porque, onde escrevo, não paira sombra de castigo ou de repressão que se equipare à que Elas enfrentaram com impassível dignidade. Porque de onde escrevo, muita coisa mudou, na lei e na vida. Apesar de, ainda assim, persistir a velha lógica patriarcal do mundo e dos seus muitos pesos e muitas medidas. E porque não tenho em mim o mesmo desígnio de talento e de rasgo (sem falsa modéstia). No entanto, como é grande a honra de poder homenagear publicamente as Novas Cartas Portuguesas e o seu legado, e, considerando que calar a síndroma da impostora é sempre uma poderosa reação contra uma cultura que mina a autoconfiança das mulheres, tomemos esta homenagem também como um ato de resistência (e assim sempre tenho uma boa desculpa para ter aceitado este convite).
Sobre a exaustão
Estamos exaustas. Exaustas por ainda estarmos exaustas, tanto tempo depois. Exaustas por, apesar do tanto que mudou, tanto ter mudado tão pouco. Exaustas de que a igualdade real ainda seja um privilégio. Exaustas da excecionalidade que contraria o viés – porque a norma está inclinada para o outro lado. Exaustas de ter de provar muitas vezes mais para conseguir um pouco menos do que. Exaustas de não haver folga, não vá o descuido dar-lhes uma razão. Exaustas de pedir desculpa, de pedir licença, de não incomodar. Exaustas de podar a nossa ambição e a sua afirmação. Exaustas de sermos decorativas, de sermos acessórias. Feias demais. Gordas demais. Determinadas demais. Modestas de menos. Exaustas de duvidarem se foi por cunha, se foi por sorte, se foi por dormir com alguém. Exaustas de o mérito (puro e simples, sem adversativas) estar reservado para os outros. Exaustas de conviver com a mediocridade premiada da rapaziada. Exaustas de nos explicarem o que sabemos na carne. Exaustas de nos explicarem outra vez com condescendência. Exaustas da boa moça, da boa samaritana, da boa mãe, da boazona. Exaustas de receber menos pelo mesmo trabalho – e com mais qualificações. Exaustas por nossa pobreza ser sempre maior. Exaustas por a nossa pobreza ser a pobreza das crianças. Exaustas de perder o emprego primeiro, de a crise chegar mais cedo. Exaustas de ficar na sombra para outros brilharem, de sustentar com trabalho gratuito quem supostamente nos sustenta. Exaustas de dizerem que somos más umas para as outras, enquanto nos incitam a disputar ferozmente a vaga unipessoal que sobrou. Exaustas de celebrarem o nosso sucesso apenas enquanto não lhes faz sombra. Exaustas de conquistar a pulso, de trabalhar o dobro, da carga mental, e dos horários impossíveis, das conciliações acrobáticas, do multitasking e das reuniões que podiam ser um email, marcadas por quem pode não se preocupar com as horas a que chega a casa. Exaustas de ter de parecer como com filtro, como com uma base, como com um botox, como se fosse fácil. Exaustas de não podermos envelhecer, de não podermos pertencer à realidade. Exaustas de tentar caber no molde, de cumprir com a expectativa. Exaustas de performar. Exaustas de ter medo de andar na rua depois do anoitecer, de saber (desde cedo e ainda que ninguém nos diga) que lá fora não é seguro (sabendo também que isso é ter menos liberdade). Exaustas de temer pelas nossas filhas, de ter de ter filhos. E ainda assim continuar a performar, como se nada fosse.
Exaustas de ainda ter de explicar o que é o feminismo, para que serve o feminismo e porque é que ainda é preciso feminismo. Exaustas de descre-dibilização das nossas lutas
Voltando depressa à produtividade e novamente à reprodutividade. Performando sempre. Exaustas de carregar a barriga, de encolher a barriga, de empurrar os sonhos com a barriga. Exaustas de fingir naturalidade, de evitar a espontaneidade, de sentar de perna fechada. Exaustas de evitar o vernáculo, de andar em círculo, de ecoar no vácuo. Exaustas da autocrítica, da hiperexigência, da autossabotagem e da falta de autoestima. Exaustas da solidão, do silenciamento e da servidão, de não saber onde acaba o serviço e começa a maternidade. Exaustas de maternar sob julgamento, da martirização da mãe-guerreira e da romantização da exaustão materna. Exaustas de criar filhos sozinhas. Exaustas de parir sem liberdade. Exaustas de impunidade. Exaustas de morrer nas mãos do companheiro. Exaustas do dedo apontado à vítima. Exaustas dos medidores de saias, da justiça injusta e dos desculpabilizadores de marmanjos. Exaustas de assédio, mascarado de piropo sem importância, da nossa responsabilização pela inimputabilidade da testosterona. Exaustas de coação, de desprezo pela nossa vontade ou falta dela. Exaustas de ainda ter de explicar o que é o feminismo, para que serve o feminismo e porque ainda é preciso o feminismo. Exaustas de descredibilização das nossas lutas, de sermos as exageradas, as histéricas, as mal-amadas. Exaustas de explicar mais uma vez que isto não é um Porto-Benfica. Exaustas de gastar energia dizendo o óbvio e, ainda assim, ter de repetir – sobretudo a quem não faz a sua parte, a quem não lê uns livros, a quem não questiona o seu privilégio, a quem não sente o seu próprio perfume, a quem não faz terapia, a quem tem a faca e o queijo na mão e está confortável demais para se pôr em perspetiva e demasiado cheio de si para se pôr em causa. Exaustas de sermos interrompidas, infantilizadas, estereotipadas e generalizadas como uma coisa só, quando somos tão diversas e, cada uma, um universo de especificidades e de contradições. Exaustas de que não considerem as que, sendo mulheres, nascem sem vulva. Exaustas de que desconsiderem as que amam outras mulheres, as que preferem ser homens, ou nem uma coisa nem outra, ou ambas as coisas, as que são de todas as cores, as que são de outra cor, as que têm um corpo diferente ou com limitações. Exaustas de que todas essas identidades e condições sejam condicionantes das oportunidades de todas e de cada uma. Exaustas de validações externas – pelo olhar masculino, pelo estado civil, pelo “sucesso” reprodutivo. Exaustas das questões eternas, do sexo dos anjos, de mau sexo, de sermos tomadas por objeto. Exaustas de que nos subestimem, de que não nos vejam como agentes do nosso próprio desejo, livres de uma conceção servil do prazer (sempre alheio). Exaustas de ter de dizer que sim quando não apetece, ou de apetecer, mas não assim. Exaustas das pequenas humilhações do dia a dia. Exaustas de piadas secas e de ouvir que temos pouco sentido de humor. Exaustas das armadilhas do amor, de príncipes encantados, salvadores de donzelas desprotegidas e proprietários de cavalos brancos. Exaustas de reacionarismo, de broncos, de beatos e de outros moralistas. Exaustas da negação. Exaustas da exaustão. Exaustas de décadas de luta na conquista pelo espaço público, com a casa às costas, os filhos ao colo e o marido à espera do jantar.
Assim, pelo nosso cansaço, não nos esqueçamos nunca de que o que conquistámos foi à nossa custa e de que não devemos nada a ninguém. Tudo sem que o trabalho doméstico e reprodutivo se tenha repartido ou aligeirado. Estamos exaustas e o patriarcado não perdoa. Queres tudo – toma tudo – agora aguenta! Não nos esqueçamos de deixar cair a culpa, a insegurança e as expectativas alheias. Deixemos cair o acessório, o convencional, o suposto, imposto por interposta pessoa. Deixemos cair o hábito. Pelo nosso cansaço, não nos esqueçamos de nos elevar, desarmadilhando o caminho a cada etapa, recorrendo à sororidade como bálsamo para o desgaste, desengatilhando os automatismos, limpando as lentes dos enviesamentos. E sobretudo não esqueçamos o prazer, o autocuidado. Celebremos as mulheres. Todas as mulheres. As que nos abriram o caminho, pagando caro por isso, as que nos inspiraram, as que nos suavizaram os dias difíceis, as que dedicaram a sua vida à abnegada missão de criar uma família e todas as que dedicaram a sua vida à generosa missão da criação. Se chegámos à ágora, dancemos. Já não seremos mais as figuras desnudas e dóceis que decoram as estátuas alheias. Seremos estátuas-próprias, estátuas-vivas e é em nosso redor que tudo gira. Ainda temos muita luta pela frente, mas temos já muito que celebrar. Dancemos, pois, até ao amanhecer e que seja de festa o nosso cansaço. A luta segue amanhã.
Nota Final
O Porto, onde vivo, cidade de muitas e grandes estátuas, tem apenas cinco de mulheres com nome próprio: Guilhermina Suggia, Sophia de Mello Breyner Andresen, Rosalía de Castro, Virgínia Moura e Carolina Michaëlis. É tempo de mais.
Capicua
39 anos
Nasceu Ana Matos Fernandes, no Porto. Licenciou-se em Sociologia, mas foi na música – e com o nome artístico de Capicua – que se tornou conhecida do grande público. Rapper militante, mantém o espírito colaborativo da cultura do hip-hop e não tem problemas em exibir uma linguagem politicamente engajada. Da sua discografia, fazem parte duas mixtapes, três álbuns em nome próprio e um disco de remisturas, um disco luso-brasileiro, partilhado com Emicida, Rael e Valete, e um disco-livro para crianças em parceria com Pedro Geraldes, projeto do qual acaba de ser lançada uma segunda parte (com a colaboração de António Serginho e de Francisca Cortesão). Entre 2015 e 2021, assinou crónicas quinzenais na VISÃO.
PARA LER AQUI:
A Nova Carta Portuguesa de Alice Neto de Sousa – “Contração”
A Nova Carta Portuguesa de Filipa Martins – “O que fazer com estas mulheres?”