Sou um jovem, imigrante em Portugal há mais de 18 anos. Tenho 20, portanto quase toda a minha vida foi vivida na cultura do país que nos recebeu de braços abertos. Nasci na Moldávia, no país mais pobre da Europa, e foi aqui que encontrámos condições de vida dignas e humanas. Hoje estou no último ano da licenciatura em Finanças Empresariais, mas não me esqueço de que viemos para cá a muito custo.
Primeiro, emigrou o meu pai, em 1998, quando teve uma oportunidade na área da soldadura. Ele já namorava com a minha mãe, e um irmão dela estava emigrado na ilha da Madeira e falou-lhe bem de Portugal. Pouco depois de eu nascer, a minha mãe veio ter com o meu pai, para trabalhar na restauração, e eu fiquei na Moldávia, com a minha avó Tatiana, até aos 2 anos. A minha irmã mais nova nasceu em Portugal, mas para nós os três o processo de legalização não foi fácil.
Para trás ficaram sonhos, laços de família, aventuras, memórias, bravuras e “desbravuras”. Sendo a Moldávia um país que pertenceu ao antigo Bloco de Leste, a nossa família dividiu-se um pouco por toda a antiga URSS, com familiares na Ucrânia e na Rússia.
Com o conflito, deste lado ficámos cada vez mais asfixiados, numa ansiedade impiedosa que teima em apertar o coração. Na eventualidade de recebermos uma notícia, ou de não a recebermos de todo, o coração vai aguentando como pode, tentando chamar a máxima racionalidade, nem sempre com sucesso.
Quando a Rússia decidiu invadir a Ucrânia por todos os lados e o Sul começou a cair, a ficar bloqueado, mais do que muito surpreendidos, para nós foi um choque. Percebemos que os nossos estavam em grande risco.
Dos meus quatro avós, apenas tenho uma única avó viva, a avó Tatiana, que até já se tornou viral no Twitter através da minha conta pessoal, em que tenho relatado o dia a dia de uma família angustiada e distante dos seus que estão em guerra. Esta minha avó vivia sozinha em Zahoreni, uma pacata aldeia junto da fronteira entre a Ucrânia e a Moldávia, muito perto dos focos militares em Odessa. Quando, numa chamada por Viber, ela nos contou que a cada 25 minutos via um clarão ao longe, ouvia um estrondo e sentia o chão a tremer, percebemos que ela já não estava em segurança. Tinha de sair dali.
O irmão da minha mãe, aquele que esteve emigrado na Madeira, partiu, então, rumo à aldeia, para levá-la mais para oeste, para junto da capital, Chisinau, onde moram os restantes familiares, tios e primos. Foi um percurso muito difícil e lento. Foram necessários três dias para conseguirem fazer cerca de 200 quilómetros, por causa dos cortes de estrada e dos checkpoints., além de algumas das estradas nem sequer estarem alcatroadas.
Entretanto, ao mesmo tempo, na Ucrânia, um tio e um primo iam para a frente de combate lutar para defenderem a pátria. Insistiram em morrer pelo seu pedaço de terra, recusando-se a sair, e com isto não sei se os amo ou se os odeio; ou talvez ambos, ao mesmo tempo.
O meu tio esteve desaparecido durante dois dias em Kharkiv. Julgávamo-lo morto, mas está vivo. Contou-nos que foi apanhado num bombardeamento e que ficou sem comunicações e transporte. Fez 60 quilómetros a pé, apresentou-se no seu posto militar e já voltou de novo para a frente.
O meu primo está internado num hospital, parece que em estado grave, mas as informações que nos chegam são contraditórias.
Sentimento de impotência
É agressiva esta dualidade entre enfrentar a morte e reencarnar a vida, de um momento para o outro. A brutalidade de passar de uma tristeza extrema para uma felicidade efusiva corrói, por exigir de nós uma sanidade que teima em escassear. Nem 48 horas passaram destes acontecimentos, e recebemos telefonemas de Chisinau, de familiares que nos dizem que os seus, e que por isso também são nossos, fogem de Odessa, porque intensas colunas militares de aviões, navios e carros de combate chegam à cidade.
Volta a habitar em nós a ansiedade que, na verdade, nunca nos deixou – se é que alguma vez o fará num futuro próximo. Recebemos a indicação de que o avô da minha prima, residente em Odessa, decidiu ficar para trás para lutar pela família, e a mulher, que o ama, também fica com ele. Teimosos velhos carrancudos que teimam em encarar a morte de forma gloriosa e romântica, e nós temos de saber lidar e aceitar esta inerência brutal dos factos.
Neste momento, a nossa prioridade máxima é trazer a minha avó Tatiana para junto de nós, aqui em Lisboa, mas nem isso tem sido tarefa fácil. Além de a própria teimar em não querer sair da aldeia, os principais corredores que ligam estes países do Leste à União Europeia estão completamente entupidos e obsoletos.
A minha avó trabalhou no posto de correios da aldeia e hoje tem um grande terreno com vacas, porcos, gansos, patos, coelhos… Foi uma vida a lutar para juntar este património, e é-lhe difícil deixar tudo para trás. Tem apenas 70 anos, mas é uma pessoa com uma narrativa muito derrotista. Diz que está perto da morte e que, ao vir para Portugal, vai ser um peso.
Claro que nós acionámos os consulados de Bucareste e de Kiev, para que ela venha para cá em segurança. A expectativa, agora, é a de que apanhe um avião na Roménia. Conseguimos reservar um voo no consulado, mas para já ainda está numa espécie de lista de espera.
Este é o meu testemunho. O testemunho de alguém que, não estando no centro do conflito, sofre fortemente no epicentro da sua existência com ele, por saber tudo à distância e com um sentimento de impotência substancial. Só estaremos em paz quando os nossos estiverem em paz e em segurança, junto de nós.
O sentimento é de muita angústia, ansiamos pela falta de ansiedade.