Leyla Acaroglu, professora, designer, socióloga e empresária, foi premiada em 2016 como UNEP Champion of the Earth, pelas Nações Unidas. Fundadora da Unschool of Disruptive Design, Acaroglu tem sido uma voz ativa sobre a necessidade de alterarmos comportamentos, sobre os desafios de ética que a tecnologia coloca e sobre o poder da mudança disruptiva. Oradora na conferência anual do Conselho Empresarial para o Desenvolvimento Sustentável (BCSD Portugal), que decorre estas quarta e quinta-feira, dias 24 e 25, na Estufa Fria, em Lisboa, Acaroglu falou à VISÃO do seu modelo, a que chamou de Disruptive Design Method.
O seu método – Disruptive Design Method – parece simples e entendível. Poderia ser um modelo para explicar algo que é tão simples de compreender à primeira vista. Porque é que não funciona organicamente?
Estudo design, ou seja, como criar produtos e serviços. A maioria da edução de design ensina-nos, normalmente, a resolver problemas complexos de uma forma física, como a roupa. A engenharia tem um processo semelhante de investigação e de desenvolvimento criativo. Mas é raro sermos ensinados a pensar em sistemas complexos, é muito diferente de qualquer educação, que não nos ensina que os humanos fazem parte de um complexo e caótico sistema chamado Terra e que nós estamos inseridos nos sistemas naturais ao nosso redor, e não só para sobreviver. Todos os materiais que constroem as nossas vidas e tudo aquilo que precisamos para viver vêm da Natureza. Todos começamos pela base de não conhecermos um facto muito importante: que está tudo interligado (e não de uma forma hippie-dippie dos ciclos da lua). Somos parte da Natureza e a Natureza faz parte de nós. E este simples facto pode ser a base para tomar muitas decisões mais informadas e eficazes sobre como viver (enquanto indivíduos e sociedades), como devemos governar e criar (enquanto empresas e governos). Para mim, o método disruptivo é literalmente um andaime.
Como assim?
Quando se está a construir um edifício, temos de construir um andaime-extra para que não desabe. Esse andaime-extra é a estrutura inicial de suporte que ajuda o edifício a não desabar. Isso é o que os métodos disruptivos de design fazem, ou seja, uma estrutura para suportar qualquer coisa, de forma a aprender como pensar em sistemas complexos, como encarar problemas de uma forma sistémica e holística. Não é possível evitar as relações que existem, tem de se superar este pensamento redutivo que nos levou a muitos dos problemas com os quais temos de lidar. Trata-se de um andaime, pois é uma estrutura temporária que nos ajuda a aprender novas formas de fazer alguma coisa. Neste caso, é aprender a compreender os sistemas e as intervenções de design que definem o status quo do sistema para criar melhores resultados. Esta é, no essencial, a estirpe e a razão pela qual o criei, e também a razão pela qual se trata de um método simples.
Essa simplicidade é essencial?
A boa simplicidade é baseada na complexidade. Olhemos para a Natureza: as coisas mais bonitas são baseadas em coisas muito complicadas. Este método de design emergiu das minhas experiências enquanto designer. Aprendi a fazer design, mas, como não aprendi a ter um impacto positivo nas minhas escolhas diárias, quis descobrir como poderia ter esses efeitos positivos. Então, o pensamento dos sistemas, as ciências da sustentabilidade e a criatividade são os três pilares que suportam esta metodologia disruptiva de design.
Devemos ensinar isso às crianças?
Claro. É estúpido para qualquer geração não ser ensinada que fazemos parte da Natureza. Quando aprendi isto aos 19 anos, perguntei: porque é que ninguém me ensinou isto? E estava verdadeiramente perplexa com isso. O que entendi foi que, como a maioria dos adultos não pensava assim, então, o problema era dos adultos. Enquanto jovem, porque é que não fui ensinada a pensar em sistemas complexos e dinâmicos? Porque é que não aprendi a adorar problemas, em vez de evitá-los? Porque é que não aprendi que a criatividade é uma dádiva que ajuda a desenvolver as capacidades para mudar o mundo? Porque os educadores e todas as pessoas com o poder para decidir sobre o que está nos currículos são adultos. A razão pelo qual ensino adultos é porque não se pode esperar que as crianças mudem enquanto os seus líderes – os pais, professores, as pessoas ds media – não estão abertos à mudança. Por exemplo, acho que é absolutamente maravilhoso que haja jovens a alertar e a fazer exigências pelas alterações climáticas. Mas é uma tragédia estarem a perder a sua infância devido à responsabilidade de adultos que têm o poder de fazer melhores decisões e que não escolhem fazê-las.
Acredita que essa escolha é consciente? Acha que os adultos pensam sobre isso?
É muito difícil fazer uma escolha consciente se não se é educado sobre isso. Se pensarmos no movimento #Me Too e como muitos homens ficaram conscientes do género: “A sério? Este problema é nosso?” Foi a exposição e o diálogo sobre este assunto sistémico que permitiu a transformação do entendimento na população. Penso sobre a mudança porque, além de ser designer, acabei por me tornar socióloga, sou fascinada pela mente humana e o modo como a cultura e a sociedade influencia a Humanidade. A mudança não é linear, claro que há coisas que mudam de uma forma estrutural, mas a maioria das mudanças são nebulosas, nós é que só as entendemos quando estamos no seu interior, apenas acontece.
É, por exemplo, o que se passa com as alterações climáticas?
Justamente. Os cientistas estão há décadas a avisar-nos sobre isto. E agora que está a acontecer, nós apercebemo-nos de que o assunto é sério. É uma acumulação de efeitos. Penso que há certas pessoas que têm o poder para fazer melhores escolhas que são intencionalmente ignorantes, ou evitam ativamente informações que os ajudaria a fazer melhores escolhas. Sim, há imensa gente que, quer seja pela sorte da educação ou dos seus recursos pessoais, não estão numa posição de poder para tomar as decisões importantes. E é por isso que os que têm o poder – os CEOs e líderes, as startups e os disruptores que perseguem o poder – têm de ser informados para obterem resultados melhores e mais criativos. Também é por isso que gosto de ensinar pessoas de todo o mundo, porque não se sabe de onde é que a próxima grande ideia virá. Quero dar-lhes as ferramentas para que, quando estejam a pensar em ideias, possam mudar o mundo. Quero que o façam com informação, fundamentação e o mindset adequados para que os resultados sejam sistemicamente positivos, e que tenham intenções corretas. Este défice de que estamos a falar é em parte educacional, mas com isto não quero dizer que seja educacional no sentido do que se ensina no liceu: tem que ver com a educação social. Nós ensinamo-nos uns aos outros todos os dias. É também algo que chamo de agency, que é a habilidade de perceber que se tem o poder de mudar o mundo. Vejo que há imensas pessoas em organizações que se preocupam com isto e que querem ver mudança, mas que sentem que não têm a agency para o fazer. Trabalho com muitas empresas, e eles falam comigo porque querem que eu inspire as pessoas das suas organizações. Mas o que observo é que, na maioria das vezes, a organização em si não promove a capacidade de se tomar ações nos seus trabalhadores para realmente se fazerem mudanças. Também acho que isto está a mudar, há cada vez mais pessoas mais conscientes…
O que ouvimos é que há muita gente que está a ser contratada para novas posições em empresas, e que essas pessoas estão a exigir às empresas para serem mais ativas relativamente…
Porque está a haver uma mudança no mercado, porque isto é um mercado de emprego. Tenho dito às empresas para terem cuidado, para estarem verdadeiramente dentro desta conversa. Muitas delas não estão cientes de que este é um aspeto do processo de decisão: sobre quem se vai candidatar e quem vai ficar na empresa, pois atualmente isto é muito valorizado. Fizemos um estudo, em agosto de 2020, no início da pandemia, com mais de dois mil trabalhadores: no geral, 60% ou 70% pessoas indicou que a posição das empresas relativamente a assuntos ambientais e sociais era muito importante nas suas decisões de candidatura; uma grande percentagem também sentia que não lhe tinha sido dada formação suficiente sobre como agir, sustentavelmente, no processo das decisões. Quando falo com os CEOs, eles dizem: “Isso não é exigido no mercado”. Claro que existe uma exigência quando os estudos dizem que maioria dos clientes e dos consumidores diz que quer serviços e produtos mais sustentáveis. Sim, há uma desconexão entre o preço e o que estão dispostos a pagar, mas, ao mesmo tempo, as empresas têm sido capazes de gerar enormes lucros com um custo muito grande para a Natureza. Estão viciados num sistema, no qual não podem sofrer um golpe nos seus lucros. Se agarrassem nos seus orçamentos de marketing e os aplicassem num marketing eco-friendly, a promoção de produtos sustentáveis e de baixo-custo iria beneficiá-los mais do que qualquer anúncio na televisão. Eles pensam é de uma forma muito redutiva e linear, e isso é o status quo.
Vem a Portugal e vai falar com muitos CEOs. Sente que estão prontos para este sistema disruptivo?
Há um mês, tive conversas com os CEOs de 80% do PIB de Portugal, e o que eu descobri é que os vossos CEOs estão muito recetivos. Não acontece só em Portugal, globalmente, os CEOs estão numa posição muito bizarra, porque são contratados pelos acionistas das empresas para as valorizarem e, portanto, têm de ver um caminho dentro das restrições e exigências que lhes impõem. Das conversas que tive, acho que há um interesse. Onde estão os défices? Os défices estão numa exigência cultural e mental sobre o facto de que é este o momento para fazer a mudança, e que essa mudança vai conter ruturas e desafios e que precisa de ser um esforço coletivo para os alcançar. A transição dos combustíveis fósseis no setor da energia: eu dizia à EDP para olhar para o futuro, que está a melhorar, que provavelmente achavam isto um fenómeno estranho. Claro que se tem de interagir, eficientemente, com a tecnologia e com os sistemas para atingir a neutralidade de carbono, mas atualmente ainda dependemos da matéria orgânica milenar. A tecnologia existe, apenas depende das empresas – se estão ou não dispostas a investir na transformação inicial e na perceção-base do consumo. É uma relação dinâmica, e é também o medo de serem repreendidos. Cada cultura tem uma forma de repreender os seus líderes quando estes não fazem o que eles querem.
Nesse aspeto, conseguiu perceber qual é a cultura portuguesa?
No contexto português, há uma cultura do “isto é assim porque é assim”. Na verdade, existem muitos países que são assim, eu sou da Austrália e é terrível, porque lá não estão a fazer nada relativamente às alterações climáticas. Parte disso é explicado porque houve muita desinformação dos media sincronizados com o interesse dos investidores. Nessa cultura, temos CEOs que estão aterrorizados de virem a ter reações negativas dos media. Mas é o setor empresarial que está na melhor posição para fazer mudanças fora da realidade governamental. O consumo consegue mudar os comportamentos, e isso é bom, porque mostra às empresas, através dos sinais dos preços, que as pessoas estão dispostas a fazer coisas com uma consciência sustentável. Penso que existem muitos líderes que estão dispostos a ser corajosos. Portugal está numa posição única, já fizeram muitas transições no setor da energia, o que quer dizer que, se continuarem nesse caminho e alcançarem um nível de energia neutra de carbono, irão reduzir as vossas emissões de carbono nos setores produtivos e de fabricação. Então, isto dar-vos-á uma vantagem competitiva no mercado.
Nós ouvimos do Governo que eles querem falar com as empresas, e ouvimos das empresas que o Governo quer mais restrições. A questão é: porque é que não falam em conjunto, uns com os outros? Este tipo de métodos pode ajudar a melhorar a conversação.
Não tenho a certeza sobre a situação de Portugal, mas, por exemplo, sei que, aqui no Reino Unido, há legislação que incapacita a colaboração. Há legislação que, por exemplo, impede o setor retalhista e os supermercados de colaborarem na inovação relativa ao desperdício alimentar. Existe o problema de as empresas estarem a trabalhar isoladamente e não estarem a colaborar ou a comunicar. Não tenho a certeza se isso é assim em Portugal… Poderia fazer a suposição de que há muitos problemas com a corrupção, e que por isso talvez isto seja visto como perigoso para as organizações terem uma relação mais próxima. Por exemplo, muito da nossa insustentabilidade na cadeia de mantimentos tem origem em problemas jurídicos e burocracias. A União Europeia tem políticas sobre a economia circular, mas, ao mesmo tempo, ilegaliza a venda de arroz que não é empacotado em plástico. A legislação pode ser uma faca de dois gumes, pode ser muito eficaz em criar desincentivos a fazer coisas más, embora também possa criar muitas consequências não intencionais. As leis que são feitas de forma a encorajar melhorias contínuas são muito eficazes. As leis que são hiper-restritivas, que não criam inovação, são problemáticas. Por exemplo, a Califórnia aprovou agora um conjunto de leis que aborda os erros relativos ao símbolo da reciclagem: aprovaram uma lei que faz com que seja ilegal as empresas não identificarem nos seus produtos a informação relativa à sua reciclagem. Mas muitas das empresas colam um símbolo nos seus produtos a dizer “ainda não-reciclável”. Isto não impede que a contaminação da reciclagem continue a acontecer, apenas acrescenta custos adicionais à reciclagem.
É a falta de compreensão que é parte do sistema?
As leis são complicadas. Vivi em países pobres e fiquei muitas vezes perplexa. Em Portugal, há esta lei que proíbe transportar num veículo bens dos quais não se tenha um recibo. Obviamente que essa lei existe para prevenir más práticas, o que é de doidos (porque eu vivi no interior de Portugal e sei que, historicamente, é uma economia à base de trocas não monetárias). Mas isto é um mecanismo que assegura que o Governo pode lucrar com todas as transações, mesmo que sejam trocas não monetárias. Na altura, este exemplo ensinou-me muito sobre a oposição entre processos legais reacionários e processos legais proativos. O que estou a dizer é que há muitas leis que servem um propósito por um curto período de tempo e não deveriam ser de longa duração. Se estamos a enfrentar questões relativas às alterações climáticas, claro que precisamos de negociações e de acordos internacionais. Mas, a nível local, também precisamos de leis que incentivem as escolhas corretas. Em vez das leis restringirem, deveriam ser expansivas, proativas e promover a colaboração.
Para as pessoas que, como a Leyla, trabalham com sustentabilidade, isto tudo tem que ver com o dinheiro, ou não? É a sustentabilidade sobre o dinheiro?
Como nunca trabalhei numa grande empresa, não estou ciente das motivações. Tenho um profundo respeito pela Natureza e pelos humanos, porque a sustentabilidade é sobre garantir que não perdemos tudo o que criámos. Quando estava na escola a aprender sobre as grandes guerras, lembro-me de pensar: porque é que ninguém os parou? Ou seja, isto não é apenas só sobre o facto de a Natureza ter um valor intrínseco e de não a devermos destruí-la. Preferia que a minha vida desse mais do que tirasse, e esse conceito de se ser uma força regeneradora do planeta é, para mim, uma grande bússola moral. Se eu faço erros? Claro que sim… Se faço o melhor o que posso com a educação, os meios e os recursos que tenho? Acho que sim. Se quero inspirar outras pessoas para também serem conduzidas por estes valores? Sim. Do meu ponto de vista, posso usar recompensas económicas enquanto motivador para encorajar as pessoas e acredito verdadeiramente que as empresas que não adotarem isto não existirão no fim da década. Tudo isto é sobre inovação e transformação… E as empresas não estão dispostas a isso, serão como a Nokia quando se arrependeu de não ter lançado o smartphone quando o devia ter feito, porque estava com medo de interromper o status quo.