Comecemos pelo cheiro a roupa lavada. A francesa Gabrielle “Coco” Chanel (1883-1971) era filha de uma lavadeira e crescera entre cestos de lençóis acabados de passar a ferro. Aos 11 anos, após a morte da mãe, tinha sido mandada para um convento, onde as freiras faziam grandes barrelas e ela aprenderia a costurar. As suas memórias de infância estavam, por isso, povoadas pela sensação de limpeza que só o aroma do sabão dá.
No final do verão de 1920, quando o grão-duque russo Dimitri Pavlovich, seu amante, lhe apresentou Ernest Beaux, a estilista sabia o que queria pedir ao nez: “Um perfume artificial como um vestido, ou seja, fabricado.” Explicou-lhe, ainda, que detestava o cheiro forte a almíscar, com que muitas parisienses ricas disfarçavam os poucos banhos, e que acreditava que as mulheres podiam ser simultaneamente sensuais e “puras”.
Mesmo em Grasse, uma cidade da Côte d’Azur famosa pelas suas fábricas de perfume, onde os dois se conheceram, talvez só Beaux fosse capaz de lhe dar o que ela procurava. Aquele russo de origem francesa estava um passo à frente dos restantes perfumistas que recorriam ao limão, à bergamota e à laranja para criarem fragrâncias frescas, todos cítricos deliciosos mas que não perduravam na pele. Em 1913, fora pioneiro a incluir compostos sintéticos no perfume Bouquet de Catarina com que a casa Alphonse Rallet, fornecedora da corte russa, celebrara os 300 anos da dinastia Romanov.
Os aldeídos, que recriam artificialmente vários aromas, haviam sido isolados no final do século XIX, mas eram tão fortes que os nez hesitavam em usá-los. Beaux atreveu-se novamente e, ao fim de vários meses, tinha dez amostras para apresentar a Coco, todas com sintéticos incluídos, numeradas de 1 a 5 e de 20 a 24.
Reza a história que a estilista não hesitou ao escolher a amostra 5 e que, logo ali, anunciou o nome do primeiro perfume da sua marca: Chanel Nº 5. A apresentação da próxima coleção de alta-costura estava prevista para 5 de maio de 1921 e há muito tempo que ela acreditava que o número 5 lhe trazia sorte.
Para a petite histoire ficou também que essa amostra levava por engano uma quantidade enorme de aldeídos. Teria sido um erro de pesagem no laboratório, uma distração do assistente de Beaux, mas já não havia como fazer marcha-atrás porque Coco adorara aquela fórmula ao mesmo tempo sofisticada e fresca.
Em termos olfativos, a amostra 5 tinha notas de cabeça ácidas (aldeído com aroma de laranja, entre outras), notas de coração florais (nomeadamente, jasmim e rosa) e notas de fundo mais masculinas (como o sândalo e o musgo). Entre os 80 aromas, muitos são sintéticos. “A coisa interessante sobre os aldeídos é que um deles cheira a sabão”, lembra a historiadora Tilar J. Mazzeo, autora do livro The Secret of Chanel Nº 5, citada pela BBC. “E, assim, Coco podia equilibrar na sua cabeça a infância num convento e, depois, a vida luxuosa como amante.”
Amor e morte
Naquele 5 de maio de há um século, a estilista estava quase com 38 anos e Dimitri Pavlovich era só mais um de uma longa lista de amantes. Primo de Nicolas II, o último czar da Rússia, exilara-se em Paris como milhares de compatriotas seus durante a Guerra Civil Russa, entre 1917 e 1922. Coco conhecera-o através da irmã, Maria Pavlovna, que abrira um negócio de lantejoulas e colaborara com a Chanel. Bissexual e mais novo 11 anos do que ela, Dimitri reinventara-se na capital francesa a vender champanhe.
O romance seria breve e talvez apenas tenha servido de panaceia para o desgosto em que Coco mergulhara após a morte de Arthur “Boy” Capel. Esse, sim, um dos grandes amores da sua vida, tanto que os biógrafos gostam de sublinhar que o perfume Chanel Nº 5 não existiria se ele não tivesse desaparecido repentinamente na vida da estilista.
Esta assunção tem algum fundo de verdade. Coco tinha 23 anos quando conheceu Étienne Balsan, um ex-oficial de cavalaria que herdara uma fortuna ligada aos têxteis. Mudou-se, então, para o seu castelo em Royallieu, no Norte do país, onde começou a fazer os próprios chapéus para se entreter. Em pouco tempo, estava a receber encomendas, mas se Royallieu entra neste relato é porque foi lá que ela se apaixonou por Boy Capel, amigo de Balsan.
Um perfume aspiracional
1 – Catherine Deneuve
Em 1972, a atriz protagonizou a campanha mais icónica de sempre, que vivia apenas da sua cara fotografada por Richard Avedon
2 – Nicole Kidman
Dezassete anos depois do anúncio The Film, realizado por Baz Luhrmann, ainda nos lembramos de a ver perdida em Nova Iorque, ao lado do ator brasileiro Rodrigo Santoro. O estilista Karl Lagerfeld, que desenhou o seu vestido, também aparece fugazmente nesta megaprodução
3 – Brad Pitt
O anúncio é envolvente e, ao mesmo tempo, bizarro. Talvez por causa da entrega tão shakespeariana do ator, que aceitou dar a cara pelo perfume, em 2012
O sentimento era recíproco e a relação durou até Capel morrer num acidente de mota, a caminho de um jantar com Coco. Aristocrata e muito rico, seria ele a proporcionar-lhe a entrada no negócio da moda, arrendando-lhe uma pequena loja na Rue Cambon com uma boa montra para os seus chapéus.
Dali, a estilista iria dar o salto para Deauville, quase por acaso. Numas férias a dois nessa estância balnear francesa, deparou-se com a falta de roupa confortável e decidiu usar calças, camisas e camisolas de Capel. Causou tanta sensação que começou a desenhar vestidos práticos e o amante financiou-lhe uma loja. Dentro em pouco, estava a abrir uma segunda loja, em Biarritz.
O idílio acabaria ao fim de quase 10 anos, quando o aristocrata teve de casar-se com Lady Diana Wyndham. Os dois continuaram a encontrar-se secretamente até ao acidente, em vésperas do Natal de 1919. O desgosto de Coco foi tão imenso que se fechou no quarto a desenhar roupa durante meses, até que, no verão, a sua amiga Misia, então casada com o pintor catalão José María Sert, a convenceu a ir com eles a Veneza.
Coco Chanel era filha de uma lavadeira e crescera entre cestos de lençóis acabados de passar a ferro. O aroma do sabão estava entre as suas memórias de infância
A cidade emergia finalmente após os anos de guerra e de pandemia, num clima de euforia contagiante. Numa conversa com o casal Sert, também Coco sairia da sua letargia com a ideia de criar um perfume, cujo frasco se inspirava no frasco de uísque que Capel costumava levar no bolso do casaco.
O êxito do Chanel Nº 5 foi enorme, como se sabe, e esta história seria cor-de-rosa se a estilista não se tivesse associado aos irmãos Pierre e Paul Wertheimer, que eram donos da casa Bourjois e de fábricas e de redes de distribuição mundiais. Coco ficaria com apenas 10% da sociedade, percebendo mais tarde ter feito “um mau negócio”, conta Mazzeo, e o azedume seria grande.
Quando rebenta a II Guerra Mundial, os Wertheimer, judeus, refugiam-se nos Estados Unidos da América e passam o negócio para as mãos de Félix Amiot, católico. É, então, nessa altura que a estilista “perde a cabeça”, desculparam-lhe os amigos. Apaixona-se por um oficial alemão, aceita missões de espionagem para a Alemanha nazi e, sem olhar a meios para tentar ficar com toda a sociedade, consegue que seja aberta uma investigação para verificar se Amiot é um verdadeiro ariano.
Hoje, poucos saberão que a empresa (Chanel S.A.) pertence a Alain e a Gérard Wertheimer, netos de Pierre. O que mais haverá para saber, ainda?