Uma vez perguntaram-lhe o que é que levava da vida. “Vou satisfeito” (Revista E do jornal Expresso, em 2017). Faria 92 anos em dezembro, mas costumava dizer a amigos, colegas e alunos que tinha por meta chegar pelo menos aos cem. Estivesse no meio de uma consulta, de uma entrevista, numa conferência ou no lançamento de mais um livro – o décimo, Laço de Seda (Climepsi), no final de 2019 – era um bom ouvinte e observador, sempre pronto a contar histórias, a usar o sentido de humor sem reservas e a fazer comentários provocadores, mordazes, que faziam pensar.
Apreciador de vinhos – também era produtor da Região Demarcada do Douro – e de boas conversas, o “mestre” transmontano não perdia uma oportunidade para questionar e desafiar os seus interlocutores a saírem da caixa e a pensarem pela sua própria cabeça.

Nascido na Lixa, em Felgueiras, mudou-se para o Porto aos dez anos e aí se formou em Medicina, casou e teve o primeiro filho. Especializou-se em psiquiatria em 1959, altura em que escolheu viver em Lisboa e tornou- se uma referência incontornável da Psicanálise, com um papel decisivo na abordagem da depressão.
Esteve ligado à fundação e direção de serviços nos meios clínico e académico, de que se destacam o Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos, o Centro de Saúde Mental Infantil e Juvenil de Lisboa e as Sociedades de Psicossomática e de Psicanálise, tendo-se desvinculado da segunda por divergências quanto ao método de ensino e prática analítica. Foi ainda professor no ISPA – Instituto Universitário e na Faculdade de Psicologia de Lisboa.
Em conjunto com Carlos Amaral Dias, fundou a Associação Portuguesa de Psicanálise e Psicoterapia Psicanalítica – AP, onde era, atualmente, presidente honorário. Há nove anos, recebeu o título de Distinto Professor de Psicanálise, nos Estados Unidos, e foi condecorado pelo Presidente da República, em 2013, como Grande Oficial da Ordem da Instrução Pública.
Coração lutador
Filho de católicos, Coimbra de Matos cedo se declarou ateu e um forte defensor do pensamento livre. “Não caiam no erro de seguir o modelo do A ou do B, observem investiguem”, costumava dizer, uma e outra vez, por entender que nunca seriam poucas.
Quando a pandemia bateu à porta com estrondo, Coimbra de Matos fez saber que este era o tempo certo para usar o pensamento lento em detrimento do registo imediato, reforçando assim a humanização da espécie.
Com um ritmo de trabalho invejável, era conhecido pelo seu sentido crítico apurado e por cultivar uma atitude destemida, nas ações e nas palavras, que chegavam a ser mordazes e viscerais. Por exemplo: “Só puxa dos galões quem não tem colhões”. Um registo inconvencional no meio académico e que terá contribuído, de algum modo, para fazer chegar ao cidadão comum uma disciplina considerada hermética e fechada sobre si mesma.
Todas as lutas que travou foram no sentido de desfazer ideias feitas, com persistência, com uma fé indestrutível na capacidade de transformação através da qualidade dos relacionamentos e na qualidade reparadora do amor. Quando a pandemia bateu à porta com estrondo, Coimbra de Matos fez saber que este era o tempo certo para usar o pensamento lento em detrimento do registo imediato, reforçando assim a humanização da espécie.
“Assistimos à explosão de uma gigantesca onda de solidariedade social”, disse à VISÃO, numa altura em que se questionava o que viria a seguir, admitindo que “o afeto tenderá a sobrepor-se ao lucro e à conveniência nas interações quotidianas”. Face à incerteza e ao medo, insistia na possibilidade de funcionarmos menos como animais e mais como humanos: “Num momento tão propício ao reforço do poder como ao triunfo da convergência, os animais alfa podem optar pela segunda. Os afetos vencerão.”
Amor com humor

“Para mim será sempre o meu mestre e o grande humanista da Psicanálise, pela honestidade intelectual e por ser um homem de afetos”, observa Maria do Rosário Belo, psicanalista didata, fundadora e membro da Comissão de Ensino da AP.
Entre as muitas coisas que poderia contar sobre o professor, recorda um episódio marcante que diz muito acerca da personalidade do homem de quem vai sentir muitas saudades e guardará muitas e boas memórias: “Eram onze da noite. Estávamos numa sessão de supervisão e havia a ameaça de um terramoto em Lisboa. Fomos para a varanda do consultório, que era ainda na Rua Padre António Vieira, e continuamos o que estávamos a fazer e a contar anedotas pelo meio.” À saída, Coimbra de Matos não resistiu a tecer mais um comentário: “Ponha uma velinha junto à cama, não vá haver uma réplica!”
Certa de que lhe vão faltar as conversas e momentos como este, a psicanalista sente-se grata por tudo o que aprendeu e pela “amizade, cumplicidade e intimidade singulares”.
Da depressão para a nova relação
O psiquiatra Domingos Neto, fundador da Psicoterapia Emocional- Bonding em Portugal, tinha trinta e poucos anos quando o seu caminho se cruzou com o do “psicanalista com uma maneira de falar vernácula”. Iniciou com ele uma supervisão sem imaginar que seria “uma viagem de oito anos, com uma enorme influência em mim e me levou a ser admitido na Sociedade Portuguesa de Psicanálise”.

O que fazia dele uma personalidade tão carismática? “Era mais próximo dos doentes do que os outros psicanalistas, estava face a face com eles e tinha um poder psicoterapêutico maior, acabando por formar muitas pessoas neste modelo.”
Outra das características do pensador e clínico que fascinavam Domingos Neto revelava-se no seu método de trabalho: “Costumava fazer anotações em guardanapos enquanto estávamos sentados à mesa, no café; foi assim que escreveu os livros e conferências.” A sua ausência deixa uma grande falha, porque “médicos que sejam grandes pensadores e com capacidades didáticas há poucos”. Sobre o legado de Coimbra de Matos, o psiquiatra assinala o conceito de “nova relação”, que apelidava de “desenvolutiva” (desenvolvimento + evolução), por ir além da “transferência”, centrada no passado – “Freud era tímido e por isso é que usou o divã”, brincava – possibilitando à pessoa a descoberta de novos aspetos de si mesma durante o processo clínico. Outro fator diferenciador do grande teórico da depressão foi a Psicanálise Relacional, “com menos sessões do que o formato clássico e mais dialogantes”.
Ver mais longe

A meta do autor de vários artigos científicos era “desempoeirar o pensamento e varrer o velho para dar lugar e força ao que há de autêntico nas relações que permitem expandir o desejo de futuro”. A afirmação é da Vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática e membro da Direção da AP. Patrícia Câmara sublinha outro aspeto definidor de Coimbra de Matos: “Recusava acompanhar-se dos arautos da desgraça, de que não seriam palavras de cunho científico o amor, a empatia e a relação genuinamente cooperante para o centro do discurso sobre a saúde mental e, porque não dizê-lo, da saúde em geral.”
A psicanalista recorda o dia em que defendeu a tese de licenciatura, no ISPA, e o professor, membro do júri, lhe disse: “Só quero fazer-lhe uma pergunta.” Ela não respondeu de imediato e, quando ia a fazê-lo, recebe esta observação: “Não precisa de responder, já deu que baste.” Patrícia retorquiu: “Deixe-me pensar um bocadinho, já respondo!” O professor: “Só com essa resposta já respondeu, não diga mais nada!”
O que se lhe oferece dizer acerca disto, hoje: “Ele fazia-nos andar, dar corda aos sapatos, através de uma relação boa; trouxe a Psicanálise para o quotidiano e e queria que pensássemos por nós, contribuindo, assim, para a sua ‘imortalidade simbólica’ em nós, personificando, ainda em vida, essa mesma imortalidade”.
Últimas palavras
No passado dia 11 de junho, enviou um mail enviado a amigos e colegas, intitulado “O Mal-estar da civilização”. Não por acaso, uma alusão a “O Mal-Estar na Civilização”, escrito por Freud antes do colapso da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929 (e publicado em Viena um ano depois), sobre as origens da infelicidade, o conflito entre indivíduo e sociedade e uma visão psicanalítica do universo político. Nessa obra seminal, apontava-se a doença mental como tendo origem na repressão da líbido, no sacrifício do instinto sexual e da espontaneidade e na sublimação da agressividade, canalizada para o mundo do trabalho, em nome do progresso social e cultural.
Em jeito de despedida, o homem que queria viver até aos cem anos, deixou poucas linhas com a sua visão de um novo mundo, de um novo homem, onde os direitos e a cooperação prevalecem.
O que é novo não é o recomeço, mas, sim, o novo padrão de relação – do autoritário para o igualitário, da colheita narcísica para a dádiva objetal. É um Novo Homem
António Coimbra de Matos, na mensagem enviada a amigos e colegas
“Começar de novo é evitar cometer os mesmos erros, vale dizer, corrigir os erros do passado (…) É mudar radicalmente de padrão relacional: da domesticação, hierarquia e obediência para a liberdade, mutualidade e espontaneidade – na vida como na análise, no privado como no público, com a família como com o estranho.”
O Coimbra – como era chamado pelos mais próximos – referia-se a “uma revolução, e não uma reforma”, porque “começar de novo ou começar nova vida não é a mesma coisa”. Há uma diferença e passa por mudar a estrutura da relação: “O que é novo não é o recomeço, mas, sim, o novo padrão de relação – do autoritário para o igualitário, da colheita narcísica para a dádiva objetal. É um Novo Homem.”